28/03/2024 - Edição 540

Camaleoa

Cantada, assédio e o inevitável estupro

Publicado em 02/05/2014 12:00 - Cristina Livramento

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Um cartaz pregado em um dos corredores na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) rendeu comentários no mural do Facebook do nosso editor, Victor Barone e até uma matéria no Campo Grande News. “CARO PEDREIRO NÃO PRECISAMOS DAS SUAS CANTADAS PARA NOS SENTIRMOS GOSTOSAS 1ª Semana de Combate à Cultura do Estupro” deixava claro para quem era o recado.

Me surpreende que um cartaz com uma frase dessas possa ser publicada por universitárias e em um espaço de reflexão como deveria ser uma universidade. Não são os pedreiros os seres mais desprezíveis do universo, nem os médicos, nem os ricos, nem os pobres. Os indivíduos que atravessam a fronteira do admissível são seres doentes ou sem caráter. Ainda não desenvolvi o tema com um especialista para entender se a ausência de caráter é também uma doença. Talvez.

Podemos começar pelo aspecto mais doloroso, que vai muito além da cantada, o estupro. Acredito que toda ou a grande maioria das mulheres, infelizmente, tenha passado pela experiência em algum momento da vida. Claro que não é um assunto fácil e ninguém vai falar sobre isso em uma roda de bate-papo, mas a verdade é que isso é muito mais comum do que a gente imagina. Nossos travesseiros é que sabem.

Não são os pedreiros os seres mais desprezíveis do universo, nem os médicos, nem os ricos, nem os pobres. Os indivíduos que atravessam a fronteira do admissível são seres doentes ou sem caráter.

Falar sobre a cantada, assédio e estupro é muito mais complexo do que escrever um recado estúpido para pedreiros. O cartaz, a motivação, a insatisfação e a repercussão refletem o contexto difícil sobre o comportamento sexual do ser humano. São raros os indivíduos que se aventuram a reconhecer e a lidar com o feminino e o sensual, a libido e o ego, os fetiches e as fantasias de cada um.

Mas vivemos em uma sociedade que opta por confundir e ser confundida, em esconder e se mostrar dissimuladamente, a mentir e a negar seus próprios desejos, sendo assim, a capacidade de se falar claramente sobre o tema é ainda, em pleno século XXI, um tabu. Quem sou eu ou você, sexualmente falando, para estabelecermos uma relação social saudável? Não sabemos.

Se, por exemplo, você vai à uma festa e bebe além da conta, há uma grande chance em se tornar vítima de um estuprador. A verdade é que na hora da loucura, ninguém se importa, e uma mulher bêbada, com dificuldades para ficar em pé, é uma presa fácil para esses imbecis. Apesar da implicância com o pedreiro no cartaz, o estuprador da vez não será um pedreiro, mas provavelmente um cara muito querido do dono da festa que jamais vai acreditar na sua história. Afinal de contas, quem estava semiconsciente?

Desde o filme com Jodie Foster, em Os Acusados, de 1988, a sensação é de que tudo continua na mesma. Quantas histórias como essa se repetem todos os dias nos mais diferentes lugares deste Planeta?

Desde o filme com Jodie Foster, em Os Acusados, de 1988, a sensação é de que tudo continua na mesma. Quantas histórias como essa se repetem todos os dias nos mais diferentes lugares deste Planeta? Nós queremos respeito, mas somos as primeiras a apontar o dedo para a saia curta, a risada alta demais e o decote da colega. Arrastamos atitudes confusas e contraditórias.

Mas falávamos do cartaz pregado em um mural da UFMS. Quando li “pedreiro” na foto postada no Facebook, lembrei do pedreiro que vi em um andaime em uma rua qualquer em Porto Alegre. Ele estava sem camisa, corpo suado, e era lindo. Era uma imagem e tanto naquela tarde quente, voltando de carro para casa.

Isso é uma imagem bonita, bem diferente da mente deturpada que pode vir a ler este último parágrafo e pensar que o que eu desejava naquele dia era, na verdade, ser molestada. Convivemos com essas mentalidades e elas não mudam. Infelizmente. Somos nós quem precisamos aprender a detectar quem pensa desta forma e a nos proteger da melhor maneira possível.

Mas o que é uma cantada vulgar? Assim como alguém gosta do azedo, há aquele que gosta do melado e outro ainda que curte um amargo. Não dá para classificar.

Mas o que é uma cantada vulgar? Assim como alguém gosta do azedo, há aquele que gosta do melado e outro ainda que curte um amargo. Não dá para classificar. Quando se trata de libido, flerte, atração e comportamento, cada um se manifesta de um jeito muito peculiar. O que pode ser ofensivo para mim, para uma outra garota pode ser o máximo da diversão. Assim é a vida desde sempre.

Minha vó dizia, “você ri feito puta”, e isso não era na década de 50. E hoje, aos 40 anos, já ouvi o mesmo comentário – claro que em outras palavras – de pessoas até mais novas do que eu. A humanidade é muito esquisita, é o que eu tenho a dizer.

Sobre cantadas, há em cada grupo dos mais diferentes níveis de instrução, beleza e saldos de conta bancária, uma série de imbecis que se acham os caras mais incríveis da face da Terra a ponto de verbalizar qualquer bobagem para uma mulher bonita ou gostosa que passe na frente deles. Esse cara não tem dúvida nenhuma de que ele tem esse direito.

A violência pode vir do cara mais fofo da festa, do carinha mais divertido do bar, do sujeito cinco estrelinhas na igreja, mas a gente nunca sabe com quem está realmente lidando. A atenção é imprescindível.

A única coisa que eu sei, até este momento da minha vida, e ensino para minha filha é que nunca sabemos quem é o carinha sentado ao nosso lado. A violência (física, psicológica, moral) pode vir do cara mais fofo da festa, do carinha mais divertido do bar, do sujeito cinco estrelinhas na igreja, mas a gente nunca sabe com quem está realmente lidando. A atenção é imprescindível.

Sobre as cantadas, claro, assim como quando levamos um fora do namorado ou do marido que jamais imaginaríamos que seria tão baixo e tão vil, quando superamos, eles se tornam indiferentes. Assim devem ser tratadas as péssimas cantadas que ouvimos diariamente, dentro do ônibus, pela rua, dentro da sala de aula, no corredor da empresa onde trabalhamos. A indiferença é a melhor maneira de lidar com o fugaz e o dispensável.

Mas vamos retomar o bom humor, garotas. Quando eles lançarem a cantada, não custa dar um aceno ou levantar a mãozinha e fazer um positivo.

Ou quando o caminhão de lixo passar e a rapaziada falar que você é linda e coisa e tal, dá um tchauzinho ou um sorriso para o pessoal que leva nossos restos para aquele grande depósito de memórias em que nenhuma de nós faz questão de pisar ou pensar no assunto.

A vida é curta e bem difícil para todo mundo, melhor ser leve e tentar ser feliz.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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