25/04/2024 - Edição 540

Especial

Elas resistem

Publicado em 09/08/2017 12:00 -

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O brutal assassinato da violonista campo-grandense Mayara Amaral, de 27 anos, é mais um dos muitos casos que reacendem na imprensa o tema da violência contra a mulher. Mayara é mais uma entre milhares de vítimas que todos os anos contabilizam a trágica estatística da covardia de gênero no país.

Segundo dados do Mapa da Violência 2015: Homicídio de Mulheres no Brasil, 4.762 assassinatos de mulheres foram registrados em 2013 no Brasil. O alto índice faz com que o ocupemos a quinta posição do ranking de países com maiores índices de homicídio feminino, segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde) que avaliaram um grupo de 83 países.

“Não temos como saber exatamente quanto dessas mulheres morreram em razão das circunstâncias da violência de gênero”, esclarece Alice Bianchini, advogada e doutora em direito penal. No entanto, já é comprovado que 50,3% deles foram cometidos por familiares, sendo que em 33,2% destes casos, o crime foi praticado pelo parceiro ou ex. 

Quando o recorte é feito da perspectiva das negras, o índice é ainda mais cruel. Em dez anos, o assassinato de mulheres negras cresceu 54%, passando de 1.864, em 2003, para 2.875, em 2013.

Feminicídio é um homicídio qualificado – com pena de no mínimo 12 anos de reclusão – cometido contra uma mulher pelo simples fato de ela ser mulher. “A Lei nº 13.104/2015 prevê o feminicídio como um crime que envolve violência de gênero numa relação doméstica, familiar ou íntima de afeto, assim como menosprezo ou discriminação à condição de mulher”, explica Alice.

Em 2016, uma em cada três mulheres sofreu algum tipo de violência (física, psicológica, moral, patrimonial). Em média, a cada hora, 503 brasileiras deram queixa de violência física. Uma em cada cinco mulheres sofreu ofensa, totalizando 12 milhões de vítimas.

Nada menos que 10% das brasileiras sofreram ameaça de violência física; 8% das mulheres foram vítimas de ofensa sexual; 4% das mulheres foram ameaças com armas de fogo ou facas e 3% (1,4 milhão) das mulheres levaram pelo menos um tiro. O número de mulheres que afirmaram conhecer alguém que já sofreu violência praticada por um homem é hoje de 71%. Em 2015, eram 56%.

É pela vida das mulheres!

“Feminicídios são assassinatos cruéis e marcados por impossibilidade de defesa da vítima, torturas, mutilações e degradações do corpo e da memória. E, na maioria das vezes, não se encerram com o assassinato. Mantém-se pela impunidade e pela dificuldade do poder público em garantir a justiça às vítimas e a punição aos agressores”, diz Nadine Gasman, representante da ONU Mulheres no Brasil.

Para Alice Bianchini, o que falta ao Estado na hora de atuar sobre o problema são instrumentos para que a proteção das vítimas seja garantida, já que o assassinato é o último estágio de um ciclo longo de violência. “Quem atua nesta área já sabe que o número de ameaças que se concretizam é muito grande. Mas, por exemplo, quando a vítima recebe uma medida protetiva e o Estado determina que o companheiro não pode se aproximar dela, ele não consegue fiscalizar e nem prever nenhum descumprimento da ordem”, conta Alice.

Quando o assunto é frear o avanço de uma realidade tão brutal às mulheres, a conscientização é o meio mais eficaz, garante Alice. “A gente precisa começar a sentir vergonha da maneira como a mulher é tratada no Brasil. Nossa sociedade ainda naturaliza muito a violência, acha que a mulher é culpada, não leva a sério essa situação. Precisamos de educação voltada às questões de gênero”, diz a advogada. “As pessoas precisam entender que a diferença entre homens e mulheres existe, mas não pode ser identificada como desigualdade. Isso não gera mais direitos, obrigações, nem deveres para nenhum dos lados.”

Lado sombrio da família

Mais da metade das mortes violentas de mulheres (50,3%) no Brasil foram cometidas por familiares e 33,2% por parceiros ou ex-parceiros, revela o “Mapa da Violência 2015: Homicídio de Mulheres no Brasil”.

Segundo o estudo, entre 1980 e 2013 106.093 mulheres foram assassinadas, 4.762 delas só em 2013. O país tem uma taxa de 4,8 homicídios por cada 100 mil mulheres.

Entre 2003 e 2013, o número de vítimas do sexo feminino passou de 3.937 para 4.762, aumento de 21% na década. As 4.762 mortes em 2013, último ano do estudo, representam 13 mulheres assassinadas por dia no país.

De autoria do sociólogo argentino Julio Jacobo Waiselfisz, radicado no Brasil, o levantamento analisa dados oficiais nacionais, estaduais e municipais sobre óbitos femininos no Brasil entre 1980 e 2013, passando ainda por registros de atendimentos médicos.

As maiores vítimas da violência são as mulheres negras, cujas mortes passaram de 1.864, em 2003, para 2.875 em 2013. No mesmo período, a quantidade anual de homicídios de mulheres brancas caiu 9,8%, saindo de 1.747 em 2003 para 1.576 em 2013.

Para Nadine Gasman, o estudo inova ao revelar a combinação cruel e extremamente violenta entre racismo e sexismo no Brasil. “As mulheres negras estão expostas à violência direta, que lhes vitima fatalmente nas relações afetivas, e indireta, àquela que atinge seus filhos e pessoas próximas. É uma realidade diária, marcada por trajetórias e situações muito duras e que elas enfrentam, na maioria das vezes, sozinhas”, disse, segundo o material de divulgação da pesquisa.

Atlas da Violência 2017

O Atlas da Violência 2017, lançado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em junho passado coinfirmam os números do Mapa da Violência. Segundo o estudo, em 2015 cerca de 385 mulheres foram assassinadas por dia. A porcentagem de homicídio de mulheres cresceu 7,5% entre 2005 e 2015, em todo o País.

As regiões de Roraima, Goiás e Mato Grosso lideram a lista de estados com maiores taxas de homicídios de mulheres. Já São Paulo, Santa Catarina e Distrito Federal, ostentam as menores taxas. No Maranhão, houve um aumento de 124% na taxa de feminicídios. 

Segundo o Atlas, em inúmeros casos, as mulheres são vítimas de outras violências de gênero. A Lei Maria da Penha categoriza essas violências como psicológica, patrimonial, física ou sexual.

A Lei do Feminicídio, aprovada há dois anos, foi importante para dar mais visibilidade aos assassinatos de mulheres. As informações do número de feminicídios, porém, ainda não aparecem na base de dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), constando como homicídio de mulheres.

Segundo dossiê realizado pelo Instituto Patrícia Galvão, o feminicídio corresponde à última instância de poder da mulher pelo homem, configurando-se como um controle “da vida e da morte”.

Daniel Cerqueira, coordenador de pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública,  entende que esta e outras categorizações de assassinatos, como o feminicídio, são importantes pois “desnudam o enredo por trás das mortes”. O Brasil ocupa a quinta posição em número de feminicídios num ranking de 83 países. 

“A criação de políticas públicas passa pelos dados angariados através dessas categorizações”, afirmando que, para combater esses assassinatos, o Estado não deve apenas se concentrar em aumentar o número de policiais nas ruas. 

Lei Maria da Penha: onze anos de luta

Você já ouviu o ditado “Em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”? Pois era assim que a violência doméstica era tratada até 7 de agosto de 2006, dia em que foi sancionada a lei 11.340, Maria da Penha. Ela recebeu este nome graças à luta de uma farmacêutica cearense, baleada em 1983 por seu marido enquanto dormia – a lesão a deixou paraplégica. Mantida em cárcere privado, sobreviveu, no mesmo ano, a outra tentativa de assassinato, dessa vez por eletrocussão durante o banho.

Hoje a lei é a principal ferramenta legislativa no combate à violência doméstica e familiar contra mulheres no país. Mais do que física, ela abrange abusos sexuais, psicológicos, morais e patrimoniais entre vítima e agressor – que não precisa necessariamente ser cônjuge, basta que tenha algum tipo de relação afetiva.

Segundo pesquisa realizada neste ano pela Datafolha, uma a cada três mulheres sofreram algum tipo de violência nos últimos doze meses – e o agressor, em 61% dos casos, é um conhecido. 19% das vezes eram companheiros atuais das vítimas e, em 16%, ex-companheiros. Em 43% a agressão mais grave foi dentro de casa. Sabe o que a maior parte delas fez? Nada! Em 52%, a vítima não procurou ajuda ou denunciou o agressor.

Uma década depois da aprovação da Lei, os avanços em relação ao assunto são inegáveis. O tema passou a ser mais discutido, e os abusos físicos e morais cometidos dentro de casa deixaram de ser impunes. A medida ajudou mulheres que sofrem violência doméstica a se enxergarem como vítimas – e não mais culpadas pela situação.

“A violência contra a mulher sempre existiu, mas com a Lei Maria da Penha houve uma quebra na tolerância do problema”, diz Silvia Chakian, promotora de Justiça e coordenadora do Grupo Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (GEVID), do Ministério Público do Estado de São Paulo. “A medida tirou esses casos do juizado criminal, que os avaliava sem considerar a integridade física ou psicológica da mulher. Antes, a mensagem para o autor das agressões era a de que saía barato espancar uma mulher e, para a sociedade, a de que esse tipo de violência não era importante”.

Apesar dos avanços notáveis, ainda há muito o que evoluir para que a Lei seja colocada em prática corretamente e para que os números de violência contra a mulher deixem de ser assustadores. Segundo os dados mais recentes do Governo Federal, o Brasil tem uma média de uma morte violenta de mulher a cada duas horas. Isso faz do país o quinto do mundo em feminicídios – atrás somente de El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia.

Não existem dados específicos sobre a Lei Maria da Penha. A Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180, porém, registrou as mais de 4 milhões de chamadas que recebeu na última década e mostrou que, entre elas, 500.000 foram denúncias de violência, a maioria física e psicológica. Assusta saber que, nesses dez anos, os relatos de estupro à Central mais do que dobraram e que, hoje, o sistema registra um caso de estupro a cada três horas.

É também preocupante notar que, na maioria dos casos de agressão (67%), a vítima e o agressor mantém uma relação afetiva e que quase 40% das denúncias indicam que a violência contra a mulher acontece diariamente.

Para a promotora Silvia Chakan, o principal aspecto a ser aperfeiçoado na Lei Maria da Penha é a capacitação dos profissionais responsáveis por garantir que ela seja colocada em prática. Ou seja, do delegado e escrivão ao médico legista.

“De nada adianta existir mecanismos de proteção garantidos na lei se esses profissionais não recebem capacitação de gênero”, diz a promotora. “Em relação a isso, avançamos muito pouco ou quase nada. Hoje, infelizmente ainda há profissionais que reproduzem estereótipos, que julgam a mulher e analisam o seu comportamento social ou sexual, às vezes até responsabilizando a vítima por aquilo que ocorreu. E essa reação pode ser determinante para que a mulher nunca mais busque ajuda em caso de agressão.”

4 fatos sobre relacionamento abusivo

“Louca.” “Puta.” “Fiz por amor.” “Incapaz.” “Ninguém vai acreditar.” Falas como estas fazem parte do cotidiano de milhões de brasileiras. Segundo relatório da ONU, três em cada cinco mulheres sofreram, sofrem ou sofrerão violência em um relacionamento afetivo no Brasil – e nem todas as feridas aparecem. São as cicatrizes das violências invisíveis – psicológica, moral e patrimonial –, também conhecidas como relacionamento abusivo, que cala e aprisiona.

Diante disso, Silvia Chakian, Alice Bianchini e Raquel Marques, presidente da Artemis (uma organização comprometida com a promoção da autonomia feminina e prevenção e erradicação de todas as formas de violência contra as mulheres) reuniram uma série de fatos capazes de esclarecer este tipo de agressão.

1. O relacionamento abusivo ainda é visto como uma simples briga de casal

A Lei Maria da Penha compreende que violência doméstica é “Qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”. E para configurar a violência, nos termos da Lei, ela não precisa ser continuada, nem atual, nem duradoura, bastando que exista uma relação afetiva entre a vítima e o agressor, mesmo que não residam no mesmo local.

“Apesar de todo esse esclarecimento, ainda tem sido muito difícil lidar com o machismo institucional, dentro do sistema de justiça”, aponta Silvia Chakian. “Vejo diariamente vítimas sendo desacreditadas em juízo e questionadas exaustivamente nas delegacias. Como se a mulher, por ser mulher, não fosse digna de crédito. Ela é confrontada, questionada e cobrada com uma coerência absurda e impossível de ser conhecida. O depoimento de quem sofre esse tipo de violência é muito marcado por incoerências, lapsos de memória, falas entrecortadas – próprios do pós-trauma. Deparamos-nos então com a recorrente revitimização e descrédito.”

Ainda segundo a promotora, quando uma mulher decide romper com o silêncio, a primeira reposta que ela vai receber, seja na delegacia, no ministério público ou em um centro de referência, pode ser determinante para que nunca mais busque ajuda e acredite que seu destino é viver em um relacionamento violento.

2. Ciúme pode não ser saudável, mas sinônimo de controle

Os sinais que antecipam um relacionamento abusivo às vezes podem ser sutis. Hoje, muitas mulheres ainda tendem a acreditar que um relacionamento sem ciúme, é uma relação sem amor. “O problema é que muitas vezes esse ciúme vem camuflado de zelo e cuidado, e não parece controle”, alerta Silvia.

“Quando um namorado diz para a namorada, ‘troque essa saia, porque assim você não vai sair comigo’, o problema não é a roupa. A mensagem que fica neste relacionamento é: quem mandar e quem obedece”, explica a promotora. “Mulheres tendem a minimizar o comportamento violento e a não interpretar a conduta abusiva como violência. Muitas vezes elas se responsabilizam – ‘Eu sou difícil’, ‘Estava nervosa’, ‘Realmente provoquei’ -, como se tivessem contribuído ou até mesmo merecido a agressão que não necessariamente é física.”

Em alguns casos, diz, a responsabilização pela conduta violenta é relacionada a fatores externos, como o consumo de álcool ou outras drogas. “Já ouvi vítima dizer: ’Ele me agrediu porque estava nervoso, porque bebeu’. Não, a motivação da violência de gênero é interna. O sujeito quando enche a cara no bar não agride o amigo, ele espera chegar em casa para violentar a companheira.”

3. Por que é tão difícil romper com o ciclo de violência?

“O ciclo de violência leva anos para ser rompido, em alguns casos chega a levar até dez anos”, diz Alice Bianchini. “E ela costuma ser gradativa, até alcançar seu ápice, que vem acompanhado de uma fase de reconciliação e promessas, que logo são quebradas, e assim o ciclo recomeça.” E a tolerância social com relação à violência contra a mulher é um dos impedimentos para a quebra deste circuito perigoso.

Uma pesquisa do Ipea de 2013 diz que 65,3% da população brasileira concorda com a seguinte frase: “Mulher que apanha e continua com o companheiro gosta de apanhar”. De encontro a esta estatística está uma pesquisa de 2015 realizada pelo Senado Federal. Um levantamento feito com vítimas de violência doméstica apontou que 24% delas se mantêm no relacionamento por preocupação com a criação dos filhos, enquanto 21% diz temer uma vingança por parte do agressor. Precisamos dar fim aos estereótipos de gêneros.

4. O feminicídio costuma ser o resultado de um ciclo violento de relacionamento abusivo

Uma pesquisa da ONU constatou que o Brasil é o quinto país do mundo com maior taxa de homicídio de mulheres – fim trágico de um longo histórico de violência. “O feminicídio não acontece abruptamente”, conta Raquel Marques. “Ele nunca é um episódio isolado na vida de uma mulher. A violência se desenvolve em uma escalada dentro de um relacionamento”, acrescenta Silvia.

O machismo e a misoginia predominantes no comportamento social, segundo elas, contribuem diretamente para esse índice. “Vivemos em uma sociedade que mata mulheres quando elas violam uma das duas leis do patriarcado. A primeira delas é a da submissão e a segunda é a da fidelidade. Em pleno século 21, nós ainda temos que lutar pelo direito do ‘não’ ser respeitado e isso está por trás dos assassinatos”, explica Silvia.


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