25/04/2024 - Edição 540

Especial

Democracia representativa

Publicado em 20/07/2017 12:00 -

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

Você provavelmente nunca ouviu falar de Sólon, político grego que deu seu último suspiro há mais de 2 mil anos. Mas deveria. Sólon é considerado um dos pais da democracia porque decidiu que os postos mais importantes do governo deveriam ser ocupados apenas pelos cidadãos mais ricos. Não, você não leu errado, é isso mesmo: quanto mais alto fosse o cargo, mais dinheiro precisava ter o sujeito que quisesse ocupá-lo. Não parece o sistema mais democrático do mundo (e não é), mas antes disso os cargos políticos passavam praticamente de pai para filho, e nem mesmo os “milionários” da velha Atenas podiam participar do governo se não ostentassem um sobrenome importante.

Na teoria, o sistema de Sólon pelo menos dava a qualquer um a oportunidade de governar — bastava enriquecer fabricando toneladas de azeite de oliva ou vendendo milhares de miniaturas das esculturas de Zeus por $1,99. Mas, na prática, o governo continuava formado por meia dúzia de homens brancos endinheirados, exatamente como era antes.

De lá para cá, quase tudo mudou: Galileu foi condenado por afirmar que a Terra não girava ao redor do Sol; Edison inventou a lâmpada elétrica; o direito ao voto tornou-se universal; e a seleção brasileira levou sete gols da Alemanha na última Copa. Mas pelo menos uma coisa continua quase igual: com algumas honrosas exceções, o governo ainda é basicamente formado por meia dúzia de homens brancos endinheirados.

No Brasil, que hoje é a quarta democracia do mundo em número de eleitores, só 20% dos deputados federais são negros — entre a população, eles são mais de 50%. No caso das mulheres, a situação é ainda pior: elas são 51% dos brasileiros, mas apenas 9,9% do parlamento. E os empresários, sozinhos, ocupam mais de 40% das cadeiras.

Mas, se todos os brasileiros podem votar, por que conti­nuam elegendo pessoas que representam muito mais os interesses das empresas e de grupos que os da própria população? Frank Underwood, protagonista da série House of Cards e provável ídolo de muitos dos nossos representantes, disse uma vez que “a democracia é superestimada”. Não é. Mas o voto talvez seja.

Pacato Cidadão

A democracia grega que Sólon ajudou a criar funcionava como uma grande reunião de condomínio: da mesma forma como todos os moradores podem ir ao salão de festas do prédio opinar sobre a reforma do elevador ou o som alto do vizinho, todos os cidadãos gregos podiam ir à assembleia popular debater os rumos da pólis. Esse sistema só era viável porque, como apenas cerca de 10% dos moradores da cidade se encaixavam na condição de “cidadãos”, ficava fácil reunir todo mundo em um mesmo espaço físico.

Depois disso, levou pouco tempo, coisa de 2 mil anos no máximo, para que a humanidade concluísse que valia a pena incluir trabalhadores e mulheres no processo democrático. Só que aí já não dava mais para reunir todo mundo em um lugar só. A alternativa encontrada foi a democracia representativa, em que cada cidadão tinha o direito de votar em um representante que supostamente seria seu elo de ligação com o governo. O voto seria, portanto, a forma de garantir que todo mundo tivesse seus interesses representados. Mas, como agora já deve estar claro, essa garantia isolada na verdade não garante coisa nenhuma.

“O voto é um meio muito pouco expressivo de participação política. Ele tem limitações que são claras”, diz Luis Felipe Miguel, professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB).

A história está de prova: quando operários europeus conseguiram o direito ao voto, no século 19, os aristocratas movidos a Moët & Chandon morriam de medo de que o resultado fosse uma redistribuição radical da riqueza. Com as mulheres, o processo foi parecido, com o receio de que a igualdade de voto fosse o primeiro passo rumo à igualdade de direitos. E não é preciso ser um Aristóteles para perceber que essas previsões passaram longe de se concretizar.

O problema é que, hoje, os eleitores têm menos liberdade do que parecem ter na hora de decidir quais números vão digitar na urna eletrônica. O voto de cabresto continua existindo — só ficou mais discreto. Ninguém vai até a cabine eleitoral para garantir que você votou, digamos, no coronel Calçada (personagem fictício, qualquer semelhança com nomes ou pessoas reais é mera coincidência) —, o que não significa que você não tenha sido influenciado de muitas outras formas.

“A democracia eleitoral se baseia na presunção de que cada um tem um entendimento esclarecido de suas próprias preferências. Mas essa presunção, que até faz sentido na teoria, é pouco defensável na prática”, explica o professor da UnB. Basicamente, os ricos e poderosos têm mais condições de influenciar outras pessoas e fazer que seus pontos de vista prevaleçam. “A classe política profissional é, da perspectiva social, uma elite que tem recursos, e por isso ela é majoritariamente formada por brancos, homens, empresários. Todos os grupos privilegiados são super-representados pelo Congresso”, diz Cláudio Gonçalves Couto, professor do departamento de gestão pública da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

A festa da democracia funciona assim: todo mundo está convidado, mas o espaço vip com bebida que pisca fica reservado para os poucos reis do camarote que podem pagar por ele.

Lascados

Desde os tempos da Grécia Antiga, a democracia por definição pressupõe a igualdade política de todos os cidadãos. Mas o sistema representativo divide automaticamente a população em um pequeno grupo de tomadores de decisões e um grande conjunto de governados cuja influência sobre essas decisões é quase nula. “A igualdade de voto não consegue se traduzir em igualdade de representação, e muito menos de influência política”, diz Luis Felipe Miguel.

Hoje, cientistas políticos e ativistas do mundo todo buscam formas de tornar a democracia representativa um pouco mais participativa. “Precisamos criar instituições mais abertas às demandas das ruas. O parlamento está longe de esgotar toda a representação da sociedade, e os partidos também”, diz o deputado federal Chico Alencar (PSOL-RJ).

Na Espanha, o partido Podemos, criado no início de 2014 por professores universitários, reproduz o sistema grego da antiguidade: todos os filiados se reúnem em assembleias pelo país e ajudam a decidir tanto os candidatos quanto as posições do partido em relação a determinados assuntos. Além das assembleias, voluntários — filiados ou não — também se reúnem em “círculos”, grupos de discussão que debatem questões que podem ser territoriais (relativas a um bairro ou cidade) ou setoriais (condições de trabalho de uma categoria específica, por exemplo) e repassam suas conclusões à cúpula do partido.

Já o Partido de la Red, da Argentina, tem uma pro­posta um tantinho mais radical: a ideia é que os eleitores escolham não um representante, mas um “delegado” que estará no Congresso apenas para votar de acordo com o que foi decidido pela maioria em discussões feitas pela internet. Essas discussões acontecem em uma plataforma de código aberto chamada DemocracyOS, criada pela desenvolvedora argentina Pia Mancini. Além do Partido de la Red, a Legislatura de Buenos Aires, o equivalente da nossa Câmara de Vereadores, também aderiu à plataforma para pedir a opinião da população sobre assuntos como o horário de funcionamento do metrô e a criação do Dia da Trabalhadora Sexual.

Se ainda não foi encontrada uma solução definitiva para a crise da democracia representativa, o Podemos e o Partido de la Red surgem como alternativas para tornar a relação de poder entre os eleitores e seus representantes um pouco menos desigual. “Sempre será necessário ampliar a capacidade de supervisão dos representados sobre os representantes, não só porque isso contribui para a promoção da igualdade política, mas sobretudo por uma questão de realismo”, explica Luis Felipe Miguel. “Só há uma lei universalmente válida que a ciência política foi capaz de estabelecer em toda a sua história: se dependermos da boa vontade de quem tem poder sobre nós, estamos lascados.”

Cidadania e educação

Democracia representativa é o exercício do poder político pela população, através de seus representantes, que atuam em seu nome e por sua autoridade, isto é, legitimados pela soberania do voto popular. Soa bem não? Ocorre que, como o poder fica concentrado nas mãos de poucas pessoas, surgem oportunidades para que ele seja usado para finalidades privadas em benefício dos próprios representantes e grupos a eles associados – corrompendo-os. O povo acaba perdendo o controle sobre as decisões. Daí para o surgimento de uma casta de iluminados que se imagina ungida pelo divino ou pelo povo para em seu nome governar é só um pulinho. O resultado é a corrupção, o autoritarismo e sociedades menos democráticas sob o ponto de vista da soberania popular.

Não é a toa que a democracia representativa anda bamba das pernas. Nos últimos anos, todas as pesquisas de medição de confiabilidade tem apontado para a desconfiança da população em relação a políticos e partidos. No ano passado, por exemplo, o Datafolha mostrou que os partidos políticos tinham a confiança plena de apenas 2% da população – 28% confiam um pouco e 69% não confiam neles enquanto instituição. Também no ano passado, o Relatório Confiança nas Profissões – uma pesquisa da organização alemã GfK Verein – concluiu que o brasileiro é o povo que menos confia em seus políticos entre as grandes economias do mundo. Apenas 6% disseram confiar em seus representantes. Outro estudo feito no ano passado – pelo Instituto Ipsos – mostrou que 79% dos brasileiros não se sente representado por nenhum partido político.

Em Campo Grande (MS) não é diferente. Um levantamento feito pela Semana On na primeira quinzena deste mês ouviu 100 pessoas sobre o tema. A esmagadora maioria (68%) disse não ter “nenhuma confiança” nos políticos. Outros 20% disseram ter “pouca confiança”: 11% (média confiança); 1% (muita confiança) e 0% (total confiança). Em relação aos partidos, o nível de desconfiança também é altíssimo: 63% (nenhuma confiança); 23% (pouca confiança); 12% (média confiança); 0% (Muita confiança) e 2% (total confiança).

O sociólogo Daniel Estevão Ramos de Miranda, doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de São Carlos e coordenador do curso de Ciência Sociais da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) aponta que esta sensação de engodo que rege a relação entre eleitores e representantes, somada a ausência de uma cultura de participação – devido aos episódios de regime autoritários em nossa história – acabam afastando o brasileiro dos mecanismos de participação política, mesmo aqueles que não são ligados a política partidária. “Os políticos têm escolhas, e na medida em que eles desmoralizam a política, na medida em que a determinados setores do judiciário e da imprensa criminalizam a política, não ajudam a reverter esse quadro”, afirma.

Esta rejeição a todos os aspectos da política também surge no recorte do levantamento feito pela Semana On. Arguidos sobre sua relação com a política, 46% disseram considerá-la importante, embora não participem. Outros 28% disseram que não participam da política e não a consideram um fator importante em suas vidas: 74% dos entrevistados disseram, portanto, que não participam da vida política de sua cidade, estado ou país. Apenas 26% afirmaram que a política é importante e que participam dela de alguma forma.

Se a rejeição da população aos políticos e aos partidos encontra-se uma alternativa na chamada micropolítica (aquela exercida nas associações de bairro, nos sindicatos, nas ongs, etc) o problema não seria tão grave. Ocorre que, nas chamadas democracias ocidentais, não há incentivo para a participação fora da política partidária – esta participação pressupõe uma população com nível educacional e de cidadania mais elevado que o nosso.

A consequência deste impasse leva a ascensão de salvadores da pátria e ditaduras. “As ditaduras e os Estados autoritários, de fonte militar ou não, frequentemente se instalam na sucessão de reiterados fracassos da política como instrumento eficaz para enfrentar os problemas propostos para as crises econômicas e sociais consequentes”, afirma o cientista social Roberto Amaral (ex-ministro da Ciência e Tecnologia e ex-presidente nacional do PSB).

O jornalista e cientista político Eron Brum resume o caos. “A população, inerte, é um joguete nas mãos desta cúpula. E somos todos culpados por esta inercia. Somos bons críticos, mas péssimos analistas, porque se nos soubéssemos analisar os fatos não estaríamos esperando milagres. É o nosso sebastianismo intrínseco”, afirma Brum, referindo-se a nossa tradição lusitana de esperar por salvadores da pátria que resolvam os nossos problemas.

Recall

“É curioso que as pessoas tenham aprendido rapidamente a reclamar quando um eletrodoméstico estraga ou a entrega do jornal atrasa, só que o sistema político não desperta o mesmo interesse”, diz Jairo Nicolau, pesquisador da UFRJ.

A democracia representativa não prevê qualquer contato direto entre eleitores e eleitos. “Existe um elemento elitista na defesa da manutenção da distância entre representantes e representados”, diz Luis Felipe Miguel, da UnB. “Precisamos ter mecanismos de interlocução capazes de permitir que os representantes respondam aos interesses que vão se formando na base inclusive ao longo dos mandatos.”

Um mecanismo neste sentido foi aprovado em junho pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado. O projeto inclui na Constituição Federal a possibilidade de revogação do mandato presidencial a partir da vontade popular. Agora, texto seguirá para análise do plenário do Senado, mas ainda não há uma data para ser analisado. Para ser aprovado, precisará dos votos de 49 senadores em duas votações. Se isso acontecer, o texto ainda será encaminhado à Câmara. Se Senado e Câmara aprovarem o texto, a medida só valerá a partir de 2019, não podendo ser aplicada, por exemplo, ao presidente Michel Temer.

Pela proposta, um pedido de revogação de mandato presidencial precisará ser assinado por 10% dos eleitores que compareceram à última eleição. Além disso, esse percentual deverá conter 5% dos eleitores que compareceram à última eleição em, pelo menos, 14 unidades da federação. Se atender a esses requisitos, o pedido de revogação do mandato deverá ser analisado pela Câmara e pelo Senado. Para ser aprovado pelo Legislativo, precisará contar com o apoio de, pelo menos, 257 deputados e 41 senadores. Depois de passar pelo Congresso, a revogação do mandato será submetido a um referendo popular para confirmá-la ou rejeitá-la.

O pedido de revogação não poderá ser proposto no primeiro ano e no último ano de mandato. Além disso, só poderá ser analisado um pedido por mandato. Pela proposta, caso a revogação do mandato seja aprovada pelo Congresso, assumirá a Presidência da República o vice-presidente.

A proposta de “recall” dos mandatos foi apresentada pelo senador Antonio Carlos Valadares (PSB-SE). Convenientemente, no entanto, o relator da PEC, senador Antonio Anastasia (PSDB-MG), retirou a possibilidade de revogação de mandatos de deputados e senadores. Como sempre, são os lobos cuidam do rebanho.

Parlamentarismo

O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), disse que a proposta de recall não avançará na Casa. Segundo ele, proposta criaria "fragilidade" e um cenário de "instabilidade" para os presidentes. A sugestão do presidente da Câmara é que, em vez do recall, discuta-se diretamente o parlamentarismo para o Brasil.

Diante da possibilidade de recall e de outras propostas que orbitam as discussões sobre reforma política no Congresso, o cientista social Vitor Marchetti acredita que, no fundo, está se desenhando exatamente um modelo parlamentarista, diante do enfraquecimento da estabilidade do presidente. 

"Se vamos ficar produzindo esse nível de instabilidade para o presidencialismo, para que ele se pareça cada vez mais com o parlamentarismo – com chefe do Executivo sem mandato, podendo ser revogado a depender da conjuntura – seria melhor discutir a sério tal possibilidade e não a criação de mecanismos para enfraquecer o presidente no presidencialismo", analisa o professor de Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC (UFABC). 

Para Marchetti, o mecanismo, da forma como está descrito na proposta, também tem potencial de agravar o clima de instabilidade política, uma vez que não há no texto uma definição clara dos motivos que poderiam levar à petição pela saída do presidente eleito.

“Já consigo antever que todo presidente eleito será vitimado pelo pedido de recall. Como o processo pede só 10% dos eleitores em 14 estados, os derrotados na eleição poderão facilmente se mobilizar para criar esse factoide”, afirma. 

O processo de recall, como descrito na PEC, reveste-se como um instrumento para aumentar o controle popular sobre os governantes. Na prática, porém, pode-se cair em um democratismo vazio, com a população a todo tempo opinando sobre autoridades eleitas, mas sem oferecer condições para dar sequência à agenda governamental.

"A PEC do recall falsamente empodera a sociedade civil, já que, na realidade, quem vai propor um recall nesses termos certamente serão os partidos derrotados nas eleições e organizações sociais. Não é um mecanismo para ouvir a vontade popular", diz.

Enquanto isso, continuamos tentando aperfeiçoar a ideia de Sólon.


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *