29/03/2024 - Edição 540

Entrevista

Desmoralização da política não colabora para o avanço social

Publicado em 28/06/2017 12:00 -

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O sociólogo Daniel Estevão Ramos de Miranda, doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de São Carlos e coordenador do curso de Ciência Sociais da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) afirma que o fomento à democracia direta não combina com o sistema representativo e que as parcas experiências visando o fortalecimento da participação popular na política -como o orçamento participativo – esbarram no desinteresse da classe política.

“Se a própria população participa das decisões, da definição de orçamento, os políticos perdem aquele discurso, que hoje é muito forte, de que são responsáveis por encaminhar verbas para aquele município, obras para aquele bairro. Se a população pensar, ‘fomos nós que discutimos, decidimos e encaminhamos tal melhoria’, os políticos acabam perdendo força”, afirma.

Nesta entrevista, Miranda fala também sobre dois projetos de sociedade em conflito hoje no país. De um lado, os grupos que acreditam em valores preconizados pela Constituição de 1988 e em um Estado comprometido como bem estar social; e de outro, uma fatia da sociedade que aposta no Estado mínimo e no fortalecimento do mercado em detrimento dos mecanismos de proteção social.

 

O que está acontecendo com o Brasil no âmbito político?

Nos últimos anos, principalmente depois da queda da ex-presidente Dilma Roussef (PT) e da ascensão do Michel Temer (PMDB), observamos uma agenda que tem como propósito explícito rever o projeto de sociedade presente na Constituição de 1988, sob o argumento de que a sociedade não dá conta de sustentar o Estado projetado por ela (pela Constituição de 88). A proposta destes grupos é buscar caminhos alternativos para alcançar simultaneamente a proteção social dos mais vulneráveis (objetivo principal da chamada Constituição Cidadã) e um equilíbrio fiscal. Percebe-se claramente que há um confronto entre ideias, projetos distintos de sociedade.

É um confronto entre a ideia de um Estado que garante direitos mínimos e outro, que aposta em um Estado mínimo?

Na verdade, a ascensão do governo Temer reforçou uma agenda que já estava presente parcialmente no governo Dilma. Com Temer, esta agenda se assumiu com toda sua força. Uma agenda "anti-Constituição" de 1988. No âmbito da Reforma Trabalhista, este grupo tenta implementar mudanças com base na crença de que os trabalhadores e patrões devem ter mais liberdades para negociar entre si. Na Reforma da Previdência, por sua vez, as mudanças implicam que as pessoas vão ter que buscar proteção no mercado, com a contratação de planos privados.

Há uma importante fatia da sociedade, que passou a desacreditar da política.

De um lado, na extrema esquerda, há grupos que rejeitam a política partidária, que apostam na democracia direta. São setores minoritários, que acreditam numa revolução. Em outro campo, que reúne a maioria das pessoas, prevalece um purismo de fundo moral, que afirma que a política em si é corrupta. É um pensamento que vem se acentuando com a Operação Lava Jato, mas que tem origem no fascismo da década de 30, na desqualificação da democracia. Para estes, a política é inerentemente corrupta e todo político é corrupto.

No Brasil apela-se para a relação pessoal, para o campo informal, e isso enfraquece a lei, as regras formais, a própria dimensão de público. Queremos que a lei seja aplicada para todo mundo, mas quando chega no meu caso, ele é sempre especial, no meu caso é diferente.

Há um debate rasteiro, onde um lado classifica o outro como “petralhas”, “comunistas”, e outro rebate com “coxinhas”, “fascistas”.

Temos uma característica muito interessante no discurso político mediano que tende a se associar, no caso conservador, com um discurso anticorrupção e anticomunista. Estes grupos identificam o PT como uma espécie de ameaça comunista, como já acontecia nos anos 50. Porém, isso não significa que estas pessoas assumam uma questão política formulada, até porque muitas vezes nem sabem o que é capitalismo ou comunismo. E nem querem saber, porque na verdade esse elemento de moralismo, de paixão, é uma espécie de veículo para determinadas posições políticas. Suas principais lideranças reforçam essas paixões fazendo uso de "etiquetas" com as quais rotulam o adversário para resumir uma posição mais ampla. Se é contra a presença do Estado na economia, e não tem um nome para se referir a quem pensa o contrário, chama de comunista. Não é que a pessoa acredite que Dilma e Lula sejam comunistas.

Apesar das paixões, é clara a divisão da sociedade em grupos antagônicos que sustentam visões diferentes de sociedade?

A questão é que, para além dessas paixões, desses rótulos, dessas interpretações políticas pouco sofisticadas, para além disso tudo existem interesses estruturados, e dá para a gente ter uma visão mais ou menos clara da divisão ideológica. Penso que quando se trata de esquerda e direita, estes conceitos se remetem muito mais ao tipo de sociedade que a gente quer construir e, nesse sentido, é muito claro a identificação destes campos opostos.

Tradicionalmente atribui-se à esquerda uma visão mais liberal do comportamento. Mas, historicamente, não é bem assim. Nas primeiras décadas da revolução cubana, por exemplo, houve perseguição aos homossexuais. É possível separar a esquerda e a direita no campo comportamental hoje?

Existem setores do movimento LGBT que criticam os governos do PT porque eles deram pouca atenção as suas demandas, principalmente quando houve a ascensão do Marco Feliciano à presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal em um jogo de acordos políticos. Os partidos de esquerda tem que enfrentar este dilema: precisam vencer as eleições, e para isso têm que manter o discurso que a maioria da população digere. Em 2010 e 2014 tentaram encostar a Dilma na parede com a questão do aborto. A média do eleitorado brasileiro é conservadora do ponto de vista comportamental. Portanto, Dilma teve que fazer uma discurso retórico para não afirmar, com todas as letras, que era favorável ao aborto. Os governos de esquerda conseguem avançar naquelas áreas que há menos resistência.

Os políticos têm escolhas, e na medida em que eles desmoralizam a política, na medida em que determinados setores do judiciário e da imprensa criminalizam a política, não ajudam a reverter o quadro de inércia em que se encontra parte significativa da população.

Por exemplo?

No caso da Bolsa Família ou das Cotas Raciais, projetos que têm um apelo eleitoral explícito, que é o de combater a miséria. É fato que milhões de pessoas têm interesse nestes programas e formam um eleitorado. Tanto que, em 2014, ninguém teve coragem de atacar estes programas. Nem o próprio Temer mexeu no Bolsa Família. Quando a gente pega a questão LGBT é diferente, porque há setores muito organizados na sociedade civil, principalmente religiosos, que assumiram essa bandeira anti LGBT. O fato é que, quando se observa as posições da esquerda com relação as questões comportamentais, elas sempre estão em tensão com a sociedade que é mais conservadora.

Acredita que a longo prazo haverá fortalecimento na participação mais efetiva da sociedade na esfera política?

A partir dos anos 80, com o fim do regime militar, houve uma explosão do chamado associativismo civil, que depois desembocou no fortalecimento do terceiro setor. Paralelamente a isso, houve tentativas de implantação de modalidades do orçamento participativo. Infelizmente estas experiências acabaram sendo associadas a um único partido. Não era algo revolucionário, mas que permitia a participação, ainda que pequena, da população na definição de determinada parte do orçamento. O fomento à democracia direta, no entanto, não combina com o sistema representativo. Se a própria população participa das decisões, da definição de orçamento, os políticos perdem aquele discurso, que hoje é muito forte, de que são responsáveis por encaminhar verbas para aquele município, obras para aquele bairro. Se a população pensar, “fomos nós que discutimos, decidimos e encaminhamos tal melhoria”, os políticos acabam perdendo força.

O próprio sistema de representação eleitoral acaba colocando obstáculos à participação popular.

Sim. E como essa participação popular é muito fraca, frágil ainda, a população não tem condições de se auto-organizar para se impor sobre vereadores, deputados, senadores entre outros. O grande desafio da ampliação desses mecanismos de democracia direta é o próprio sistema eleitoral. Como não temos a cultura da participação – devido aos episódios de regime autoritários em nossa história – essas pequenas experiências acabam sendo facilmente esmagada pelo sistema de representação. Estamos caminhando a passos lentos nesta seara e, infelizmente, a criminalização da política não ajuda.

A participação tem a ver com a noção de cidadania, algo a que o brasileiro ainda não está familiarizado.

Temos avançando, mas ainda prevalece essa cultura predatória no Brasil em relação ao público. As relações pessoais na cultura brasileira são um aspecto muito forte na resolução de conflitos. Apela-se para a relação pessoal, para o campo informal, e isso enfraquece a lei, as regras formais, a própria dimensão de público, porque eu quero que a lei seja aplicada para todo mundo, mas quando chega no meu caso, ele é sempre especial, no meu caso é diferente. É claro que isso também não é um obstáculo intransponível, e não é toda a explicação. Não dá para atribuir somente à população os males da política brasileira, porque, por outro lado, os políticos têm escolhas, e na medida em que os políticos desmoralizam a política, na medida em que a determinados setores do judiciário e da imprensa criminalizam a política, não ajudam a reverter esse quadro. Não dá para culpar só o cidadão. O jeitinho brasileiro é um fator sociocultural que tem peso, mas as nossas instituições, que tem o papel de moldar o comportamento das pessoas, também precisam avançar muito, e isso parte, é claro, parte das pessoas que operam essas instituições.


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