24/04/2024 - Edição 540

Especial

Campo em guerra

Publicado em 28/06/2017 12:00 -

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Por Thais Lazzeri – Repórter Brasil / Ilustrações Samuel Buono /  Infográficos Eugênia Pessoa e João Diaz

 

O primeiro semestre de 2017 não terminou e três grandes tragédias no campo entraram para a história do país. No Mato Grosso, em abril, nove trabalhadores rurais foram mortos com requintes de crueldade. Em maio, um ataque contra os índios Gamela, no Maranhão, deixou duas vítimas com as mãos cortadas, cinco feridos por bala e outros quinze machucados. O terceiro caso também foi em maio, mas no Pará, foi uma violenta ação da polícia que terminou com dez trabalhadores sem-terra assassinados. "A polícia chegou atirando”, disseram testemunhas que conseguiram fugir.

Os três casos estão inseridos no contexto da disputa por terras, mas esse não é o único elo entre eles. A Repórter Brasil foi aos locais investigar os ataques e descobriu outro traço comum ainda mais alarmante: o tom premonitório. Em todos os casos, havia sinais de que a violência estava por acontecer. Em alguns deles, as vítimas pediram ajuda às autoridades antes dos crimes. Os sobreviventes continuam pedindo. No cemitério de Mato Grosso, onde cinco dos trabalhadores foram enterrados, o coveiro cavou covas extras para adiantar o serviço para a próxima chacina.

A crueldade dos ataques choca, mas não surpreende quem acompanha a escalada dos números sobre a violência no campo.

Para seguir esse cenário, lançamos o especial multimídia Campo em Guerra. Nele, investigamos as motivações dos ataques, o contexto em que as ilegalidades proliferam, as histórias por trás dos números e as ligações dessa violência com os setores produtivos que abastecem as grandes cidades do Brasil e do mundo. A série, ilustrada em linguagem HQ, combina ainda fotos, vídeos, áudios e infográficos com reportagens.

O ano de 2016 já entrara para a história recente como o que registrou o maior número de mortes por disputas no campo nos últimos 13 anos. Foram 61 vítimas fatais. A brutalidade dos conflitos na primeira metade desse ano anunciam que 2017 pode ser ainda pior. "Vemos no Brasil rural um acirramento do conflito que sempre esteve presente na história do país”, diz Jurema Werneck, diretora-executiva da Anistia Internacional no Brasil.

Em maio, moradores atacaram índios Gamela, no Maranhão. Dois índios tiveram as mãos cortadas. Vinte ficaram feridos – cinco por bala

Quase um milhão de pessoas envolveram-se em mais de 1.500 conflitos por terra, pela água ou trabalhistas, segundo o relatório de Conflitos no Campo da Comissão Pastoral da Terra (CPT) de 2016. Recorde brasileiro desde 1985, o número é equivalente à quantidade de sírios em deslocamento interno em decorrência da guerra civil.

Parte da culpa pela escalada da violência está na ausência de ações por parte do estado. Ou pior: nas ações que fortalecem apenas um lado da disputa, os proprietários rurais.

Em dezembro de 2016, em plena escalada da violência, o governo Michel Temer extinguiu a Ouvidoria Agrária Nacional, única instância federal responsável pela mediação de conflitos no campo. Depois de protestos de movimentos sociais, o órgão foi recriado sob nova gestão. Em 2017, um projeto de lei foi apresentado pela bancada ruralista propondo pagamento de trabalhadores rurais com comida ou casa.

Enquanto a violência cresce também contra populações indígenas e tradicionais, medidas concretas são debatidas em Brasília para promover mudanças que fragilizam essas populações. Em janeiro, o Ministério da Justiça criou um grupo que dá poderes a representantes do governo de fora da Funai para declarar limites e desaprovar identificações de terras indígenas. Até então, o Ministério seguia o parecer técnico da Funai. Em março, o novo Ministro da Justiça Osmar Serraglio (PMDB-PR), ligado ao agronegócio, declarou “Terra enche a barriga de alguém?” em entrevista sobre a situação dos indígenas ao jornal Folha de S.Paulo. Serraglio deixou a pasta em maio.

Criada no final de 2016, a Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a Funai e o Incra apresentou relatório final em maio desse ano. O documento recomendou o indiciamento de mais de 90 pessoas, entre elas antropólogos, indígenas e até procuradores da República que atuaram em defesa dos direitos indígenas e de trabalhadores rurais.

O Brasil é campeão de assassinatos de ativistas e defensores do meio-ambiente no mundo, de acordo com a ONG Global Witness, que há mais de duas décadas estuda os vínculos entre a exploração de recursos naturais e conflitos, dentre outros. Entre 2002 e 2013, 448 defensores brasileiras morreram, mostrou relatório da Global. O levantamento da CPT mostra o mesmo cenário. O número de casos de violência contra a pessoa saltaram de 615 para 1079 entre 2007 e 2016. Os de criminalização cresceram 185%. "Institucionalizaram a luta por direitos como crime no Brasil, como se as pessoas que se manifestam fossem bandidos", diz Cesar. "Se você tem um estado mais repressivo, você dá licença para a violência e legitima ações paramilitares", diz.

A brutalidade em terras brasileiras alcançou a Organização das Nações Unidas (ONU) em maio de 2017. "Estamos preocupados com o aumento dos ataques no Brasil contra defensores de direitos humanos. O Estado precisa lidar com a impunidade”, disse Zeid Ra’ad Al Hussein, o alto comissário da ONU para Direitos Humanos. A declaração foi dada uma semana antes do Brasil ser desqualificado em Genebra por sua política social nos últimos anos. A estratégia da ONU foi a "naming and shaming", que é basicamente envergonhar o país focando nas violações cometidas. No caso, pelos direitos indígenas, que sofrem a maior ofensiva desde a ditadura. Em junho, relatores da ONU e da Comissão Interamericana de Direitos Humanos declararam que “os direitos dos povos indígenas e o direito ambiental estão sob ataque no Brasil”. A estratégia do governo brasileiro, já fragilizado internacionalmente, foi pior do que os analistas poderiam prever. O Ministério das Relações Exteriores, em nota, chamou de “infundadas” afirmações dos relatores.

"A situação é catastrófica", diz Márcio Meira, ex-presidente da Funai. "O governo está fazendo barbaridades em direitos conquistados a duras penas desde 1988." Na avaliação de Meira, os índios são sempre os primeiros a sentirem mudanças graves. "Isso significa que, depois, os desastres chegarão para outros grupos vulneráveis, como os trabalhadores rurais."

​Para Werneck, da Anistia Internacional, as soluções não são simples, mas elas existem. Ela cita a Constituição de 1988, que estabeleceu um prazo para a demarcação das terras indígenas. “Veja quanto tempo se passou sem que este compromisso da sociedade brasileira e ainda esta obrigação estatal saísse do papel. O processo de demarcação de terras é lento demais e ainda se arrasta com inesgotáveis recursos jurídicos", diz.

Combater a impunidade nos conflitos no campo também é prioritário para que vidas não sejam ceifadas. De acordo com dados da Anistia Internacional, um levantamento feito no Pará mostrou que trinta dos quarenta municípios do sul e sudeste do estado têm taxa de 100% de impunidade em relação aos assassinatos de trabalhadores rurais nos últimos 43 anos. "É preciso romper com as ameaças e inseguranças, acabar com a impunidade para crimes relacionados à disputa por terra e recursos naturais e avançar nos processos de demarcações e titulação”.

Diante desse cenário, a equipe da Repórter Brasil lança o especial multimídia Campo em Guerra. A série, ilustrada em linguagem HQ, combina ainda fotos, vídeos, áudios e infográficos com reportagens de fôlego sobre a guerra que se instaurou no campo brasileiro. Investigamos as motivações dos ataques, o contexto em que as ilegalidades proliferam e as ligações dessa violência com os setores produtivos que abastecem as grandes cidades do Brasil e do mundo.

Eles são mesmo índios?

Por Ruy Sposati, do Maranhão – Repórter Brasil / Ilustrações Samuel Buono / Infográfico Eugênia Pessoa / Vídeo Ruy Sposati E João Diaz

O padre Clemir Batista está acostumado a atender doentes, mas, no dia 7 de maio deste ano, precisou lidar com uma situação especialmente delicada. Coordenador da Comissão Pastoral da Terra do Maranhão, ele entrou na ala de ortopedia do Hospital Tarquínio Lopes Filho. Procurava por Aldeli de Jesus Ribeiro, uma das vítimas do linchamento ocorrido em 30 de abril, quando mais de trinta indígenas foram atacados depois de ocuparem uma fazenda no Maranhão.

Ribeiro tinha o corpo coberto por pinos, parafusos e fios de metal, resultado de seis cirurgias. Ao lado do paciente, o padre assumiu uma tarefa difícil: mostrar para a vítima sua foto logo depois do ataque. Ribeiro ficou em silêncio ao ver sua imagem coberta em sangue, com cortes profundos nos pulsos. Suas mãos pendiam, quase que inteiramente cortadas, presas aos braços apenas pela pele.

A brutalidade da imagem, que fez o caso alcançar o Alto Comissariado da Organização das Nações Unidas, fez a vítima desviar o olhar. “É você aqui?” o padre insistiu. “Disseram que não era você”. Com semblante assustado, Ribeiro confirmou sua identidade em frente à câmera.

Batista precisou submeter a vítima àquela imagem e gravar o encontro para provar ao Brasil que a violência daquele dia 30 existiu.

A comprovação era necessária porque uma polêmica fora fomentada a respeito dos acontecimentos. O caso ganhou o noticiário com ênfase para a informação de que uma vítima tivera as mãos decepadas. Dois dias depois do ataque, o governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), escreveu no Twitter: "Até agora, não foi localizada nenhuma pessoa com mãos decepadas.”

A Secretaria de Saúde do Maranhão, em nota, informou que “não houve decepamento (amputação) de nenhuma parte de seu corpo. As lesões foram cortantes gravíssimas, mas não levaram a amputação de nenhum membro”, informou a Secretaria de Estado da Saúde do Maranhão, por meio de nota.

A controvérsia sobre a etimologia da palavra – que define o tipo de corte nas mãos de Ribeiro – foi o início da desconstrução da versão das vítimas. Na sequência, questionamentos foram feitos sobre o conflito. Seria massacre ou um confronto? Por fim, colocou-se em dúvida a identidade das vítimas. Eles eram índios ‘mesmo’?

A pergunta partiu de moradores locais, fazendeiros e policiais. Ecoou entre figuras do alto escalão do governo maranhense. Por fim, ganhou o noticiário. Os meios de comunicação ecoaram o mesmo questionamento que provocou o ataque.

Eles são índios?

Além das mãos cortadas, Ribeiro levou um tiro de raspão no tórax, foi espancado, e quase perdeu uma perna. Os Gamela contaram cinco feridos por balas, duas pessoas com as mãos cortadas e outros quinze machucados – sendo três menores de 18 anos. Todos foram atacados por um grupo composto, majoritariamente, por moradores locais que saíam de uma manifestação onde o questionamento à identidade dos indígenas era a pauta principal.

No mesmo dia do ataque, o major da Polícia Militar Nilson Silva Fonseca referiu-se aos Gamela como "esses que dizem ser índios". Um dia depois do crime, em nota, o Ministério da Justiça classificou os Gamela como "supostos indígenas". O termo "supostos" foi posteriormente eliminado da nota e, num terceiro retoque, a palavra "indígena" desapareceu.

O locutor da rádio local, a Maracu AM, referiu-se a eles como gente "que se passa por índio". O diretor da rádio, Benito Coelho, é ex-prefeito de Viana e irmão do dono das terras recém ocupadas pelos Gamela.

Além da violência recente, os questionamentos também refletem ecos do motivo histórico pelo qual os Gamela esconderam a própria identidade por décadas. Hoje, boa parte dos cerca de 1,5 mil Gamela vivem na beira da estrada. Entre os argumentos para reivindicar a demarcação de uma área, eles apresentam um documento da Coroa Portuguesa, datado de 1759. É um registro dos 14 mil hectares que eles possuíam naquela época, em documento reconhecido pelo Estado, mas que não tem validade jurídica desde a declaração de independência do Brasil, em 1822.

De lá pra cá, os Gamela foram perdendo território. No final dos anos 60, parte das terras onde viviam foi registrada em cartórios da região como propriedade privada. “Lembro da minha avó explicar que não podia falar a nossa língua porque o branco proibia, porque isso de não falar a língua facilitava da gente viver com ele”, diz Francisco Gamela. Expulsos da terra e estigmatizados, o grupo se espalhou pelos povoados da região, escondendo a identidade para se integrar à sociedade dos não-índios.

Em 2014, houve um movimento de retomada da identidade e do território. Processo maior que os Gamela, pois ocorreu com diversas etnias indígenas pelo país, já que a autodeclaração é um dos principais critérios para definir a identidade indígena no Brasil.

Quando o grupo assumiu a origem e passou a exigir a demarcação de suas terras, houve reação. “Quando o indígena deixa de ser aquele sujeito subalternizado para ser um sujeito político, de direitos relacionados à questão fundiária, eles passam a ameaçar o projeto dos ruralistas”, diz a antropóloga Caroline Leal, professora na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira.

O linchamento do dia 30 de abril é interpretado como uma manifestação moderna dessa perseguição histórica. O estopim para o massacre ocorreu durante a "Manifestação pela Paz", realizada no povoado Santeiro. Ali, munido de microfone e em cima de um palco, o deputado federal Aluísio Guimarães Mendes Filho, do Podemos (ex-PTN), falava sobre os "pseudoindígenas" a proprietários rurais, parlamentares, empresários, agricultores e moradores da região. O político cresceu com a família Sarney – foi de guarda-costas a Secretário de Segurança Pública do estado. No Maranhão, o partido de Mendes Filho é presidido por Laércio Costa, que é irmão de Evilásio Costa, dono de fazendas que também estão no território reivindicado pelos Gamela.

O clima durante o discurso de Mendes piorou quando o deputado chamou os presentes à luta: "Aqui ninguém tem sangue de barata. Ninguém vai aceitar mais essa provocação”, disse. O avilte, no caso, ocorria a poucos quilômetros dali. Cerca de 30 indígenas ocupavam uma propriedade rural 22 hectares do comerciante Jamilo Aires Pinto. Inflamados pelo deputado Mendes Filho, os manifestantes decidiram agir.

Procurado, o deputado Aluísio Mendes não retornou os pedidos de entrevista feitos pela reportagem.

Há dois anos os Gamela adotaram a ocupação da área como estratégia para recuperar território. O relato é de Francisco Dias, 60 anos, um dos mais velhos da comunidade. Segundo ele, grileiros e fazendeiros expulsaram os indígenas dessas mesmas terras na década de 60. Em paralelo, diz, os cartórios da região registraram essas áreas como propriedade privada – a maioria para criação de gado e búfalos. Daí decorre a demanda dos indígenas pela demarcação. Demanda apoiada pelo Ministério Público Federal, que propôs uma Ação Civil Pública em 2016 exigindo que Funai e União criem um grupo de trabalho para produzir os relatórios de identificação e delimitação das áreas reivindicadas pelos Gamela.

Para simbolizar a retomada, os Gamela fazem um ritual conhecido como corta-arame, entendido como a libertação das terras e dos indígenas. “Mesmo que eu esteja com fome, não posso entrar [em uma área cercada] porque é o teu arame. Se eu entrar, estarei roubando. A luta contra o arame é necessária para a gente continuar sendo a gente mesmo”, diz Inaldo Serejo Gamela, que levou um tiro de raspão na cabeça e pauladas no braço durante o ataque.

Os manifestantes contrários aos índios seguiram para a área ocupada. Lá, uniram-se aos moradores do povoado Baías e cercaram a área – segundo a polícia, eram ao menos 250 pessoas. Um morador de Baías, que participou da manifestação, disse: "Aqui nunca teve índio. Isso aí é bagunça.” Os Gamela afirmam que os participantes da “Manifestação pela Paz” chegaram raivosos e armados. “Diziam que a gente era um bando de vagabundo, um bando de ladrão", diz Rose*, indígena que pediu anonimato por medo de represálias.

Assim que os caseiros da fazenda deixaram as terras ocupadas, os manifestantes atacaram os Gamela com armas de fogo, facões, paus e pedras. “Era chuva de bala mesmo", diz Rose*, com hematomas visíveis nas costas e nas pernas. Indígenas entrevistados relatam que uma viatura da polícia estava a 500 metros do local, mas não fez intervenções ao ataque ou prestou ajuda aos feridos.

O linchamento durou meia hora. Ribeiro, o Gamela que teve as mãos cortadas, não conseguiu fugir. “Primeiro atiraram em mim. Depois, cortaram a minha cabeça e os meus braços. Deram um chute bem aqui, na boca, que quebrou meus dentes. Eu tinha uma borduna (arma indígena feita de madeira), que um deles levou dizendo que ia ficar de lembrança de vagabundo fingindo ser índio”, disse. Para sobreviver, ele diz, fingiu-se de morto. Quando os algozes deixaram as terras, tentou escapar, mas os ferimentos graves o impediram. Então, viu os policiais que estavam na viatura. De um, Ribeiro diz ter ouvido. “Sabe por que tá (sic) acontecendo isso? A culpa é de vocês mesmos.” Ribeiro afirma que a polícia não prestou socorro. Foi um morador do bairro vizinho que o levou ao hospital.

A notícia do linchamento chegou às 17h ao geógrafo Saulo Barros, que mora a 120 quilômetros do local onde os Gamela foram atacados. Apoiador da causa, ele ligou para o major Fonseca, de Viana, uma hora e meia depois. Ele confirmou a presença da viatura no local, mas negou ter qualquer conhecimento sobre qualquer ato de violência ou feridos. O diálogo entre os dois foi gravado. Ao ouvir a informação sobre o ataque, o major afirma: “A gente ainda não sabe. Mas eu já sabia que isso ia acontecer. Porque eles vão invadir terra dos outros…”

Procurado pela Repórter Brasil, o major Fonseca não quis dar entrevista. Na presença da equipe de reportagem, porém, conversou com o advogado Rafael Silva, da CPT. "O que que o senhor queria que a polícia fizesse? Três policiais, diante de 250 pessoas armadas, com raiva. O que o senhor queria que fizesse?", questionou o policial ao advogado. Afirmou, também, que os agentes da polícia tiveram dificuldade em pedir ajuda à própria corporação – porque, segundo ele, o rádio da viatura não funcionava no local, devido à distância. A reportagem apurou, contudo, que sinal de telefonia e internet móvel funcionam no local.

O governo do Maranhão, em nota, informou que “no dia da ocorrência, a Polícia Militar atuou por uma guarnição que estava em viatura, com três policiais que pediram apoio. Em seguida, chegaram mais duas viaturas com seis policiais ao todo. A prioridade do grupo foi cessar o conflito e preservar a vida de todos os envolvidos.” Também solicitou investigação sobre a atuação da polícia.

O Maranhão é o segundo estado brasileiro no ranking de casos de violência contra a pessoa indígena no país, depois do Mato Grosso do Sul. Em nota, o governo do Maranhão afirmou que “estão em andamento a realização de reuniões” para discutir o problema fundiário na região e “um plano de segurança para garantir a integridade dos Gamela.”

Uma semana depois do conflito, a polícia civil ainda não havia feito a perícia no local do crime. As cápsulas das balas disparadas, segundo vizinhos da propriedade, foram recolhidas pelas crianças do povoado. As marcas dos tiros seguem por lá. Os caseiros da propriedade não deram entrevista alegando obedecer a orientação do advogado Flávio Henrique Aires Pinto, que é filho do proprietário da fazenda. À Repórter Brasil, o caseiro Carlos Nascimento disse que a culpa pelo ocorrido era dos índios e, em tom premonitório, falou: “Se a Justiça não vier aqui decidir, ainda vai acontecer muita coisa.”

Sobreviventes de massacre no Pará descrevem execução e tortura

Por Ana Aranha – Repórter Brasil

Os policiais militares do Pará teriam rendido e torturado os trabalhadores rurais sem terra antes de disparar tiros fatais contra eles, relatam os sobreviventes do massacre que tirou a vida de dez pessoas no sudeste do Pará. O crime ocorreu no dia 24 de maio na fazenda Santa Lúcia, área de Pau D’Arco, então ocupada por posseiros.

A Repórter Brasil colheu o relato de dois deles e teve acesso ao depoimento de um terceiro. Todos deram depoimentos ao Ministério Público Federal, que já ouviu seis de quinze sobreviventes. Há dois considerados como desaparecidos.

As revelações não apenas contestam a versão da Polícia Civil e Militar, que declarou ter sido recebida na fazenda a tiros, como sugere que o crime envolveu tortura e crueldade.

A versão do confronto fora questionada desde o início porque os policiais não apresentavam ferimentos, enquanto os dez trabalhadores foram levados mortos ao hospital. A movimentação dos corpos foi apontada como adulteração do local do crime pela subprocuradora-geral da República Deborah Duprat, que participou da perícia.

Os relatos são fortes.

Tudo começou quando o grupo de posseiros relata ter visto o comboio da polícia chegando, de longe, e correram para se esconder na mata fechada. Foi quando eles abriram uma lona preta para se proteger da chuva, que a polícia os teria surpreendido, aos gritos de: “É a polícia, porra. Quem correr, morre”.

Os sobreviventes fugiram sob fogo, alguns alvejados de raspão na cabeça ou pelas costas. “A polícia chegou atirando”, foi frase repetida por mais de um sobrevivente. Um deles diz ter ouvido: “pode matar. Corre atrás, não é pra deixar um vivo”.

“Eu fiquei perto, muito perto, vi o olhar de um companheiro que caiu quase por cima de mim quando levou o tiro. Era um olhar triste”, diz outra testemunha. A maioria dos sobreviventes não conseguiu ver o que aconteceu, apenas ouviu, pois tiveram que ficar escondidos. Foi o caso dos relatos seguintes:

“A gente ouviu alguns colegas chorando antes de morrer, dizendo ‘não faz isso, ninguém vai correr'”.

Um deles diz que se arrastou pelo chão e ficou deitado dentro da mata fechada a cerca de 70 metros de onde ocorria a chacina. Ele relata ter ouvido os policiais agredindo os trabalhadores com chutes aos gritos de “vira para cá, vagabundo, cadê os outros?”

Segundo essa testemunha, depois de gritar e chutar cada trabalhador, a polícia atirava. Ritual repetido, na sequência, com a próxima vítima. O massacre teria durado cerca de duas horas.

“Barulho de paulada, porrada que a polícia dava. Depois matavam, um por um”, diz outro sobrevivente. “Eles humilhavam, xingavam”.

De acordo com os relatos, a maioria das vítimas tombou logo na chegada da polícia. Os que ficaram vivos teriam sido executados a queima roupa. A reportagem viu ao menos um corpo com perfuração na face.

Ao final da matança, dois sobreviventes relataram que a polícia saiu “gargalhando”, como se comemorasse uma vitória. E que os policiais fizeram varreduras com as viaturas pela fazenda, como que à caça de sobreviventes. A chuva pode ter salvado os que fugiam, dificultando o acesso de carro às áreas mais isoladas da fazenda.

“Eu fiquei andando perdido, sem força, as vezes de joelhos, sempre pedindo a Deus pra ajudar” diz testemunha que buscou socorro das 8 da manhã até quase o fim da tarde.

“A versão dessa pessoa é conflitiva com a versão da polícia, mas coaduna com o que a gente encontrou no local”, diz o procurador Igor Spíndola do Ministério Público Federal ao ouvir o primeiro depoimento. Ele estava na primeira perícia no local do crime e chama atenção para diversos elementos que contrariam a versão de que os trabalhadores reagiram. “Se você investiga o caso sem a versão da polícia, você conclui que não teve confronto. Que um lado chegou atirando”, diz o procurador.

Outra evidência apontada por ele que vai contra a versão da polícia é o local do crime. Os posseiros estavam escondidos em uma mata fechada, o que daria vantagem para eles. “Se essas pessoas quisessem atirar, elas teriam uma visão maior do que a polícia tinha. Mas não há sinal de nenhum policial ferido”.

A Secretaria de Estado de Segurança Pública e Defesa Social do Pará informou que um inquérito foi aberto para investigar o caso e que afastou 29 policiais envolvidos na ação. Os policiais militares que estavam na operação também foram ouvidos pelo Ministério Público Federal.

Segundo o advogado da Comissão Pastoral da Terra José Batista Afonso, esse crime teve elementos muito próximos ao massacre de Eldorado dos Carajás, que copletou 20 anos em 2016. Em 17 de abril de 1996, a Polícia Militar do Pará matou 19 trabalhadores do Movimento Sem Terra.

“Tiveram características parecidas: não só de surpreender e assassina-los a sangue frio, como atestam os depoimentos, mas também de usar espancamento e tortura. É uma forma de mostrar força, dar um recado aos movimentos”.

Uma das suspeitas de motivação para o crime é a escalada de violência no conflito por terra que levou ao assassinato de um segurança particular da fazenda ocupada, além da morte de um policial militar da região. Segundo a CPT, que acompanha os conflitos na região, essas mortes geraram uma reação forte do setor agropecuário e uma indignação entre os policiais. A entidade já vinha chamando a atenção para a grande vulnerabilidade dessa área: só no sul e sudeste do Pará há mais de 150 fazendas ocupadas.

A violência devido a conflitos agrários passa por uma escalada em todo o país. Há três anos, o Brasil é onde mais morrem lideranças ambientais e do campo. No ano passado, batemos nosso recorde com 1.295 conflitos por terra, número mais alto dos últimos dez anos. Só até maio desse ano, já são 36 mortes de lideranças ou ativistas do campo, sendo 12 delas no Pará.

O procurador também chama atenção para o desnível de armamento entre os grupos, já que a maior parte das armas com os posseiros eram antigas. Segundo o sobrevivente, em seu depoimento, os posseiros tinham espingardas, um fuzil e uma pistola .380.

 “A gente não pode concluir nada, é a sentença que vai determinar. Mas podemos falar que há sérias dúvidas sobre a versão da polícia”.


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