25/04/2024 - Edição 540

Meia Pala Bas

O schadenfreude verde-amarelo

Publicado em 16/06/2017 12:00 - Rodrigo Amém

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Quase toda língua tem palavras específicas em seu vocabulário que não encontram equivalência em outros idiomas. A nossa amada língua portuguesa, por exemplo, orgulha-se da exclusividade do vocábulo "saudade", cujo significado em outras culturas pode ser expresso com verbos, ou expressões coloquiais, mas não tem um nome.

Dar nome às coisas é importante. Faz com que elas existam, senão concretamente, pelo menos no campo das ideias. A linguagem molda o mundo. Já viu o filme "A Chegada"? Então.

Existe uma palavra em alemão que não possui equivalente em português: schadenfreude. Esse palavrão descreve uma sensação que não tem nome no Brasil, mas é uma paixão nacional.

Schadenfreude é o prazer que sentimos pela desgraça alheia. Se manifesta principalmente na audiência das videocassetadas do Faustão e no Youtube. Também está presente nas formas mais clássicas e ancestrais de comédia, como Trapalhões e Chaves. E é a força motora de fenômenos culturais como o BBB e a Inês Brasil. Rir de quem nos parece ridículo ou inferior é uma das pedras fundamentais da nossa cultura. E de algumas religiões, também. Mas não estou aqui para discutir religião.

Por que rimos da dor alheia? É uma questão de identidade e auto-estima. A sociedade contemporânea é definida pela urgência da competição e, como consequência, da comparação. Quando testemunhamos a falha de outrem, somos recompensados por uma descarga de serotonina, essa sensação de alívio. É o nosso inconsciente nos recompensando, comprovando que, biologicamente, "no dos outros é refresco".

Em sociedade, esta sensação se estende aos grupos. Quanto mais nos identificamos com um núcleo social, maior a tendência a sentir schadenfreude quando, por exemplo, o time rival perde. Mas não estamos aqui para discutir futebol.

Não haverá mais a satisfação de saber que existe um meliante andando por aí com a testa marcada. Incapaz de apagar seu passado e reintegrar a sociedade. Proibido de se redimir e participar de qualquer entrevista de emprego, carregando seu pecado como cartão de visitas até morrer. Imagina a cara desse vacilão! Não é ótimo?

Semana passada um adolescente tentou roubar uma bicicleta. Dizem que queria comprar drogas. Um vizinho decidiu fazer justiça com a própria agulha de tatuagem. Sequestrou o cara e tatuou "eu sou ladrão e vacilão" na testa dele. Mas não foi isso que revoltou a população de bem na internet. Foi a vaquinha criada para pagar o procedimento de remoção da tatuagem que tirou o povo cristão do sério.

Logo surgiu na minha timeline uma foto de um jovem com o rosto coberto de bandagens. Seus ferimentos teriam sido causados pelo ladrão da sua bicicleta. A legenda criticava não haver nenhuma vaquinha para suas cicatrizes. Apareceu também um rapaz que "tatuou" com canetinha algo como "desempregado e honesto" em sua própria testa, já que ninguém contribuiu com a sua vaquinha para pagar um curso de designer gráfico. No entanto, um monte de gente deu dinheiro para o "drogado marginal" que roubou uma bicicleta. E como bem sabemos, nenhum crime revolta mais a sociedade de bem do que roubar bicicletas. Já assistiu ao filme "Ladrão de Bicicletas", de Vittorio de Sica? Então.

Veja que interessante: nenhuma das postagens se propunha a criar ou contribuir para vaquinhas nestes casos supostamente mais legítimos, onde os beneficiários não eram infratores. Por quê? Por que não adotar o comportamento exemplar para criticar os equivocados? Porque a questão não era, necessariamente, chamar atenção para outras vítimas. Essa revolta é uma manifestação inconsciente dele, meus queridos: o brasileiríssimo schadenfreude.

A revolta destes internautas era alimentada pela percepção de que a vaquinha "estraga a brincadeira". Não haverá mais a satisfação de saber que existe um meliante andando por aí com a testa marcada. Incapaz de apagar seu passado e reintegrar a sociedade. Proibido de se redimir e participar de qualquer entrevista de emprego, carregando seu pecado como cartão de visitas até morrer. Imagina a cara desse vacilão! Não é ótimo?

Estes estraga-prazeres acabaram com o schadenfreude de toda uma parcela da sociedade, sedenta por punições definitivas. E isso é imperdoável para a nação schadenfreudiana verde-amarela. Quase tão imperdoável quanto roubar bicicleta.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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