28/03/2024 - Edição 540

Especial

Vida de gado

Publicado em 24/05/2017 12:00 -

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Da fazenda ao curtume, trabalhadores ligados à JBS queixam-se do desrespeito a direitos básicos em todas as etapas da indústria da carne. Em julho passado, essas condições de trabalho viraram caso de polícia em Santa Catarina. Determinado pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), um inquérito conduzido pela Polícia Federal passou a investigar a submissão de trabalhadores à condição análoga a de escravo, jornadas exaustivas, lesão corporal e exposição dos funcionários a graves riscos devido às condições de um frigorífico em São José, na grande Florianópolis.

Os problemas trabalhistas não se resumem a uma ou outra etapa da produção da JBS, a maior produtora de proteína animal do mundo, que registrou lucro líquido de R$ 4,6 bilhões em 2015. A Repórter Brasil ouviu, em três estados do país, vaqueiros em fazendas, caminhoneiros da empresa, além de empregados de frigoríficos e curtumes – onde o couro dos bois é tratado. As denúncias não são restritas a violações à legislação trabalhista. Todos os entrevistados enfatizam a falta de apoio da JBS, mesmo após acidentes graves e doenças ocupacionais.

Frigorífico:“A vida dele não tem preço”

Andreza Ventura da Silva perdeu o marido há seis anos. Trabalhador do frigorífico da JBS em Lins, interior de São Paulo, Luís André de Oliveira morreu dentro de uma câmara fria, área de armazenamento de carnes onde a temperatura chega a -20 °C. O corpo do técnico, responsável pela manutenção de máquinas, foi encontrado esmagado por um elevador.

Logo após o acidente, a empresa se colocou à disposição de Andreza para o que fosse necessário. Durante três meses, ela recebeu cestas básicas e orientação de um psicólogo, mas a ajuda da JBS se encerrou após esse período. “Todas as vezes em que eu ligava, ou estavam viajando, ou não podiam me dar assistência, ou não podiam fazer mais nada por mim”, relembra. Desde então, ela cuida dos três filhos somente com a pensão recebida do INSS.

Inquirida sobre a história de Andreza, a JBS afirmou que “prestou todo o auxílio à família, bem como forneceu as informações necessárias para conclusão do Inquérito Policial às autoridades competentes”. A empresa não detalhou se as falhas que levaram à morte de Luís André foram solucionadas, afirmando que “investe constantemente, em todas as suas unidades, em medidas de segurança do trabalho”. (Leia a resposta da empresa)

Hoje, Andreza busca uma compensação pelos anos longe do marido. Na vila Santa Terezinha, na periferia de Lins, ela conta que ainda não quitou o pagamento da casa onde mora. Para piorar, acumulou dívidas para manter os filhos. Em dezembro de 2015, a JBS foi condenada em primeira instância a pagar R$ 66 mil a Andreza. Mas ela nem de longe considera o valor suficiente. “A vida dele não tem preço. E, se for para colocar na balança tudo que passei e passo com as crianças, isso é muito pouco”, revolta-se Andreza, que já recorreu da decisão.

Transporte:“O risco de acidente é enorme, é incalculável”

Durante 17 anos, Romero José da Costa sentou-se ao volante de um caminhão por até 20 horas por dia, de domingo a domingo. Desse período, ele guarda as memórias por todo o seu corpo: estreitamento da coluna, hérnia de disco e bico de papagaio, além da dificuldade para pegar no sono todas as noites. “Antigamente, a gente sonhava em ser motorista. Aí depois nem sobra tempo para dormir”, lembra Romero, que começou a trabalhar como motorista no grupo Bertin, carregando peças de couro entre frigoríficos, curtumes e outras unidades da empresa. Romero continuou na mesma função quando a empresa foi incorporada pela JBS, em 2009.

Além dos problemas de saúde, Romero contabiliza dois acidentes fatais como legado desse período. No primeiro deles, um ciclista surgiu à sua frente em meio à pista. No segundo, seu caminhão foi atingido por um carro, mesmo parado no acostamento da rodovia. Nos dois casos, ele não recebeu qualquer auxílio da empresa para se defender dos processos judiciais, e teve que pagar do próprio bolso as viagens por conta dos processos, além dos honorários dos advogados. “A JBS nunca me deu um litro de gasolina”, lembra Romero. “Eu não estava passeando, estava trabalhando para eles, e eles teriam que me dar um suporte”, desabafa.

Questionada sobre o relato de Romero, a JBS respondeu, por meio de sua assessoria de imprensa, que adota um “rigoroso sistema de controle de jornada de trabalho, que propicia aferição das jornadas, das folgas e de todos os intervalos, evitando longas viagens, bem como risco à saúde e segurança do motorista e terceiros que transitam pelas estradas.” (Leia a íntegra da reposta da empresa)

Romero parou de dirigir há mais de dois anos. Hoje, está “encostado” devido aos problemas de saúde. Na cidade de São Luiz de Montes Belos, interior de Goiás, ele não consegue esquecer por um momento sequer do período em que trabalhou como caminhoneiro. “É difícil até para se deitar, as dores são muito fortes. Não posso pegar peso. E tem até que saber como deitar e se levantar. Hoje, subir em um caminhão para viajar seria praticamente impossível”, lamenta.

Curtume: “A gente avisou: a máquina está com defeito. Passados três dias, aconteceu o acidente.”

Trabalhador do curtume da JBS em São Luiz de Montes Belos, interior de Goiás, Carlos Rocha Conceição até avisou seu supervisor que o sensor de movimento da máquina onde ele trabalhava estava com problemas. Três dias depois, prendeu a mão esquerda nas lâminas que separavam o couro da carne dos bois. A mutilação prejudicou para sempre os seus movimentos.

O acidente aconteceu quando ele tentava ajeitar a pele de um animal que havia travado o funcionamento de uma máquina conhecida como ‘descarnadeira’. “Eles aconselham a não deixar rasgar o couro porque é desperdício, e eu coloquei a mão para tentar desenrolar. Quando eu estava com o braço inteiro lá dentro, senti ela fechar e tirei o braço. Mas foi tarde, pegou a mão, do punho para a frente”, recorda Carlos.

Passado mais de um ano desde o acidente, ele conta que a JBS não o ajudou nem com os remédios, que ele teve de pagar do próprio bolso. Ninguém da empresa acompanhou sua recuperação. “Fiquei oito meses parado, sem fazer nada. Ninguém veio me visitar, nem para saber como é que eu estava”. Questionada pela reportagem, a JBS alega que Carlos “recebeu todo o auxílio da companhia com despesas extras ao plano de saúde, tais como exames, medicamentos, fisioterapia e deslocamentos.” (Leia a resposta da empresa)

Ainda funcionário da JBS, Carlos agora trabalha em outra máquina. Com a mesma mão mutilada pelo acidente, ele separa o rabo do couro dos animais. “Lá, na hora em que o sangue está quente, a mão não dói. Mas, na hora que você chega em casa, colega do céu, dói demais”, finaliza.

Fazenda:“Aqui só não tem o chicote na mão e o tronco para amarrar você porque a lei ainda protege. Mas, se o fazendeiro pudesse bater na gente, bateria.”

Sílvio Ricardo Oliveira e Wellington da Silva cuidam de três mil cabeças de gado em uma fazenda fornecedora da JBS em Três Lagoas, Mato Grosso do Sul. “Eu acho que o nosso maior problema é o perigo. Tem que trabalhar ligado, não pode cochilar. Cochilou, o cachimbo cai”, diz Oliveira, mostrando cicatrizes no corpo herdadas de quedas de cavalos e acidentes com bois.

Wellington, o vaqueiro mais novo, conta que quebrou o pé justamente numa queda, o que o levou a ficar afastado sem receber salário ou qualquer auxílio médico. “Fiquei trinta dias parado sem receber nada. Eles põem outro no lugar e está ótimo para eles”, reclama.

Cada vaqueiro recebe mil reais por mês, salário que deve ser usado, inclusive, para a compra dos equipamentos utilizados no dia a dia, como arreio, sela, espora e chapéu. “Qualquer firma fornece uniforme, toda proteção para trabalhar. Aqui, não: você tem que tirar do seu salário”, queixa-se Wellington.

De cabeça, ele faz as contas e tenta justificar por que não seria difícil para a dona da fazenda fazer os pagamentos. Ele calcula que a fazenda comercialize cerca de 100 cabeças de boi por mês – rendimento bruto da ordem de trezentos mil reais. “E ela ainda vem falar pra gente que está falindo”, questiona.

Aos 19 anos, Wellington não pretende chegar aos 34 na fazenda, como seu colega Sílvio. “Eu tenho que trocar de profissão. Esse meio de serviço não dá mais para viver”, conclui.

Questionada sobre os dois trabalhadores, a JBS afirmou que “não tem como política fazer a verificação em campo das condições de trabalho nas fazendas, mas constantemente orienta e divulga boas práticas”. (Leia a íntegra da reposta da empresa)

JBS, Sadia e Marfrig varrem doenças de trabalhadores para debaixo do tapete

Quando encontrei Osmarina no portão de sua casa, ela sequer conseguia ficar em pé sozinha. Para caminhar menos de dez metros, amparou-se na parede apoiando o outro braço em sua filha. Ela havia passado um ano deitada em sua cama após uma cirurgia na cervical, e agora reaprendia a andar, mas ainda sem conseguir mexer o pescoço e as mãos.

Osmarina conta que “destruiu” a coluna trabalhando no frigorífico da JBS em Lins, interior de São Paulo, durante onze anos. Ela pegava pedaços de carne em uma esteira e os colocava dentro de caixas, oito horas por dia.

A relação entre carregar pedaços de boi com quinze quilos e destruir as costas pode parecer clara. Mas, para a JBS, uma coisa não tem nada a ver com a outra. Hoje, Osmarina está “encostada” com uma aposentadoria do INSS, que ela conta sequer ser suficiente para os seus remédios.

Osmarina mora em Santa Terezinha, um bairro pobre da periferia de Lins onde quase toda casa tem um funcionário da JBS. Fui levado até ela por outros trabalhadores em situações parecidas, que listavam vizinhos com lesões por esforço repetitivo, inflamações nos músculos, hérnia de disco e dificuldades de audição. Todos creditavam isso ao tempo no frigorífico, e se sentiam desamparados pela empresa.

Os moradores de Santa Terezinha são vítimas de uma prática comum de diversos frigoríficos: eles não comunicam todas as doenças geradas ou agravadas pelo trabalho à Previdência Social conforme a lei manda, segundo fiscalização do Ministério do Trabalho e o relato de trabalhadores do bairro. Casos como esse sustentam uma complexa indústria de subnotificações de doenças, onde os trabalhadores são os grandes prejudicados.

Ao ocultar as doenças dos seus funcionários, as empresas economizam em diferentes frentes, e todos os outros contribuintes acabam pagando pelos problemas que elas causam através do INSS. Enquanto isso, os trabalhadores doentes seguem sem nada que possa amenizar os seus problemas.

Doença é um bom negócio

Além da JBS, ao menos dois outros grandes frigoríficos, Marfrig e BRF, também fazem o mesmo com seus trabalhadores, segundo fiscalizações de auditores fiscais do trabalho. Todos já foram multados em diferentes estados pela “falta de emissão da CAT (Comunicação de Acidente de Trabalho)”, como é conhecida a infração.

A multa pela infração é baixa, e as empresas raramente são responsabilizadas na Justiça por isso. Dessa forma, na ponta do lápis, vale a pena deixar trabalhadores adoecerem e omitir isso das autoridades segundo o auditor fiscal Mauro Muller, que já inspecionou frigoríficos em diferentes estados.  “Às vezes a empresa prefere pagar a multa de novo do que melhorar o processo [de produção],” diz o ele.

O argumento de Muller fica claro quando olhamos o valor da multa: entre R$ 622,00 e R$ 3.916,20 por trabalhador. Para uma empresa como a JBS, com uma receita superior a 100 bilhões por ano, o valor parece bem aceitável.

O que a empresa deveria fazer?

Ao primeiro sintoma de uma doença relacionada ao trabalho, as empresas deveriam comunicar o problema à Previdência. Tosses em um ambiente cheio de pó ou problemas auditivos em uma fábrica barulhenta já seriam suficientes para isso.

Os frigoríficos fazem vista grossa à maioria das doenças que poderiam ser prevenidas desde o início. As empresas reconhecem somente alguns dos casos mais graves, quando o trabalhador necessita ficar mais de 15 dias afastado e passa a receber os benefícios pagos pelo INSS. Mas nem mesmo o afastamento de trabalhadores é o suficiente para alterações naquilo que causa o problema, como uma máquina que pode gerar o mesmo dano a outros trabalhadores. “Após o término do atestado, o trabalhador retorna ao trabalho e novamente é obrigado a se expor às mesmas condições anteriores,” explica Renata Matsmoto, auditoria fiscal do trabalho em São Paulo especializada em ergonomia.

Médicos não revertem o problema

Para fazer as empresas serem responsabilizadas pelos problemas de saúde que causam a seus empregados, o Ministério da Previdência Social publicou uma lista em 2007 que relaciona a atividade de um trabalhador a uma doença que ela desenvolve: o Nexo Técnico Epidemiológico Previdenciário (NTEP).

A lógica é simples: se muitos trabalhadores de determinada atividade desenvolvem ou agravam uma doença, a causa deveria ser reconhecida automaticamente pelos médicos do INSS. Em frigoríficos, por exemplo, é comum a existência de lesões por esforço repetitivo devido aos movimentos feitos durante todo o dia. Entre motoristas de ônibus, há muita ocorrência de problemas de bexiga porque eles têm que segurar a vontade de ir ao banheiro.  Se a doença consta na lista, é o empregador quem precisa provar que a doença não foi causada pelo trabalho.

A lista incomodou muito a indústria brasileira. A Confederação Nacional da Indústria (CNI) tenta derrubar o NTEP no Supremo Tribunal Federal alegando que ele é inconstitucional. O principal argumento contra a lista é a ideia de “causalidade”, ou seja, de que as doenças nem sempre têm a ver com o trabalho exercido. Na ação, eles argumentam que os sintomas não podem ser generalizados, e o caso de cada trabalhador deve ser analisado separadamente.

Apesar de ainda existir oficialmente, o NTEP muitas vezes é inócuo. Os médicos da Previdência Social costumam referendar aquilo que dizem os médicos das empresas, segundo Paulo Rogério Oliveira, criador do NTEP e doutor em Ciências da Saúde. A comunicação também pode ser feita por sindicatos e pelo próprio trabalhador, mas, nesses casos, acaba tendo menos peso junto aos médicos do INSS.

Como isso afeta o trabalhador

Se seguido à risca, todo esse trâmite burocrático não tem a capacidade de curar uma doença, mas ao menos pode amenizar os problemas de alguém aposentado precocemente por causa de doenças geradas pelo trabalho. Quando o INSS reconhece que a doença do trabalhador foi causada ou agravada pelo seu trabalho, ele ganha 90% do seu salário pago pelo governo. Sem esse reconhecimento, eles acabam encostados como Osmarina – sem nenhum tipo de auxílio e recebendo a aposentadoria mínima da Previdência, que hoje é de R$ 880.

Quando nem a empresa e nem o INSS reconhecem o problema do trabalhador, a única forma de fazê-lo é na Justiça – um caminho caro e longo. Elizette Braatz, ex-funcionária do frigorífico da BRF em Chapecó, oeste de Santa Catarina, é um desses raros casos. Ela trabalhava há quatro anos injetando tempero em perus quando começou a sentir dores nos braços e nas costas. Mesmo com atestados de médicos particulares, ela sequer conseguia folgas. “Eu sentia que minha saúde estava cada vez mais devastada. E o que eles me aconselhavam era pedir as contas,” lembra.

Elizette trabalhou até o dia anterior a fazer uma cirurgia na lombar, seis anos após os primeiros sintomas. Sem reconhecimento da empresa e do INSS, conseguiu, quase dois anos após a cirurgia, a reversão do caso na Justiça. Hoje, ela recebe um ‘auxílio acidentário’, quando a empresa é obrigada a prestar auxílios como a continuidade da concessão de plano de saúde e o depósito do FGTS.

A empresa afirma que “a colaboradora citada pela reportagem recebeu o apoio necessário e que a perícia médica indicou incapacidade temporária de 12 meses para a sua recuperação, prazo este finalizado em junho de 2015.” (Leia a íntegra da resposta da BRF)

O que a empresa ganha?

Quando deixam de comunicar casos de empregados que adoecem em função do trabalho, as empresas economizam no pagamento do Fator Acidentário de Prevenção, um índice que serve para calcular quanto cada empresa deve pagar ao governo para bancar aposentadorias especiais e benefícios decorrentes de acidentes de trabalho.

Esse índice é calculado a partir de vários indicadores, e um deles é o número de acidentes de trabalho. Empresas sem acidentados ou doentes, por exemplo, pagam a metade da alíquota ao fundo.  Ao omiti-los, as empresas maquiam os números reais e reduzem o valor que deveriam pagar.

Outro motivo para esconder esses problemas é a estabilidade garantida em lei para o trabalhador acidentado. Se o médico do INSS reconhecer a culpa da empresa, ela não pode demiti-lo por um ano. Como a CAT é o primeiro passo para esse reconhecimento, os empregadores preferem não fazê-lo e, assim, ficam livres para demitir funcionários com a saúde debilitada pelo próprio trabalho.

Perguntamos às empresas por que, afinal, elas comunicam menos doenças do que deveriam, como atestam os auditores fiscais do trabalho. Todas elas afirmaram que cumprem com a legislação trabalhista e emitem as CATs conforme a legislação. (Leia a íntegra das respostas das empresas: JBS, Marfrig e BRF)

Como evitar as doenças?

Toda essa discussão sobre a falta de reconhecimento das doenças ocupacionais pode desviar o foco do que realmente importa: diminuir os problemas de saúde causados pelo trabalho.

Do jeito como as coisas funcionam hoje, as multas dos auditores fiscais e gastos com ex-funcionários como Elizette não abalam o orçamento dessas empresas, segundo Paulo Rogério Oliveira. Para ele, a única maneira de mudar esse quadro seria a responsabilização criminal sobre os proprietários das empresas, a partir de ações do Ministério Público Federal.

Enquanto isso, os problemas de saúde contraídos pelos trabalhadores dão prejuízo à Previdência. Em 2015, a União gastou R$ 23,2 bilhões com auxílios a trabalhadores afastados por doenças. Para diminuir esse gasto, o atual governo editou uma Medida Provisória que aumenta a fiscalização sobre aqueles que recebem esse benefício. Já as empresas, principais responsáveis por esse prejuízo, continuam sem pagar pelo que causam. E sem que o governo reforce o controle sobre a sonegação.

Choques, socos e pauladas: a vida do gado que vira bife na JBS

Um bezerro é queimado no rosto com um ferro quente em Mato Grosso, bois tomam choques elétricos para entrar em um caminhão em Goiás, um animal recebe pauladas ao atravessar um curral em São Paulo e um filhote recém-nascido é arrastado pelo pescoço no Mato Grosso do Sul.

Cenas como essas foram registradas pela Repórter Brasil em fazendas que fornecem gado à JBS, a maior produtora de proteína animal do mundo e dona de marcas como Friboi e Swift. As práticas dos seus fornecedores violam a política de bem-estar animal estabelecida pela própria empresa. Além disso, o tratamento dado aos bois tampouco segue as recomendações do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) sobre o assunto.

Para averiguar como as fazendas fornecedoras da JBS tratam os animais, a Repórter Brasil percorreu quatro estados diferentes entre dezembro de 2015 e fevereiro de 2016. Os locais visitados constam em um site da empresa, batizado de “Confiança desde a Origem”. O site mostra a localização, os nomes e as datas em que as fazendas forneceram bois aos frigoríficos da JBS. A partir dos dados georreferenciados fornecidos pela empresa, a reportagem encontrou os locais com o uso de GPS.

Em sua página oficial na internet, a JBS divulga que sua carne é produzida a partir de animais tratados com “respeito e sem sofrimento” e que os mantém livres de “dor, injúria e doença”, uma descrição distante da realidade encontrada nas fazendas. A empresa também afirma que seus fornecedores recebem treinamento constante sobre o assunto, mas fazendeiros e empregados ouvidos pela reportagem alegam nunca ter recebido supervisão da empresa. “Nunca veio ninguém fiscalizando nada. Eu tenho doze anos morando aqui e ninguém nunca fez isso”, disse à reportagem o funcionário de uma propriedade em Mato Grosso do Sul. As imagens flagradas refletem uma prática comum em diversas fazendas no Brasil, e não são restritas somente aos fornecedores da Friboi.

Além das regras da JBS, as fazendas também não atendem às diversas recomendações do Ministério da Agricultura sobre o bem-estar dos animais. Desde 2008, quando estabeleceu uma Comissão Técnica Permanente de Bem-Estar Animal, o órgão federal publica uma série de manuais sobre como os animais devem ser tratados. Os guias servem para orientar os produtores, mas não são de cumprimento obrigatório.

A JBS confirmou a localização dos fornecedores, após ser informada da sua localização, do seu nome e dos problemas encontrados em cada uma delas. Para ler a resposta da JBS, e saber quais foram e onde ficam as propriedades visitadas pela reportagem, clique aqui.

A JBS alegou que “não é responsável pelo manejo interno das fazendas”. A empresa também afirma que “100% dos motoristas da JBS e terceiros são treinados em Bem-Estar Animal, recebem certificados e assinam um termo de responsabilidade sobre essa política da companhia”.

Confira os problemas encontrados pela reportagem e as alternativas propostas pelo Ministério da Agricultura em cada caso:

Choques elétricos e pauladas

Choques elétricos são usados para que animais entrem mais rápido em caminhões ou para que eles fiquem de pé dentro das carrocerias. Para acelerar o embarque dos bois, pauladas também são desferidas. Os golpes deixam os animais agitados e fazem até com que eles se pisoteiem.

O uso do bastão de choques elétricos é desencorajada pelo Ministério da Agricultura. Segundo as recomendações do órgão federal, o instrumento deve ser “usado apenas em situações de emergência, não sendo indicado como prática de manejo devido ao alto risco de acidentes em função das reações dos animais”.

A reportagem presenciou animais recebendo choques em dois caminhões. Um deles, da própria JBS, levava gado de uma fazenda ao frigorífico de Barra do Garças, em Mato Grosso. Em outro caso, uma fazenda fornecedora da unidade de abate de Goiânia transportava o gado entre duas propriedades do mesmo dono.

Ferro no rosto e imobilização

Imobilizados de forma violenta, bezerros recebem marcas em seu rosto com ferro quente em uma fazenda no interior do Mato Grosso. O processo, que visa a identificar os filhotes, é feito sem qualquer tipo de cuidado com o animal.

O Ministério da Agricultura recomenda que se evite a marcação com ferro quente no rosto do gado sempre que possível. E, caso o procedimento seja necessário, “que se proteja o olho do animal no momento de marcar”, o que não ocorreu nas fazendas visitadas pela reportagem. O manual também aconselha que a parte do corpo do boi a ser marcada passe anteriormente por um procedimento de higienização, o que também não aconteceu nos casos presenciados pela reportagem.

As marcações também aconteciam com os animais agitados, contrariando as recomendações do Ministério. Em outra fazenda no Mato Grosso, vacas eram marcadas a ferro em suas pernas ao mesmo tempo em que um funcionário da fazenda realizava um exame de ultrassom – o que deixava os animais extremamente agitados.

Violência contra bezerros

Antes ainda de serem marcados no rosto, os bezerros já sofrem com violência na chamada “maternidade” – onde ficam as vacas que pariram recentemente, separadas do restante do rebanho. Bezerros nascidos no dia anterior à visita da reportagem eram amarrados pelas pernas ou pelo pescoço e, posteriormente, arrastados por cavalos.

O Ministério da Agricultura recomenda que o bezerro não seja jogado no chão, prática também vista pela reportagem durante a identificação dos animais. Segundo o manual, o vaqueiro deve erguer o bezerro do solo e utilizar sua perna como apoio para colocá-lo no chão.

Pauladas e pontapés

A agressão a bezerros e bois dentro de currais foi presenciada pela reportagem diversas vezes. Em um confinamento na cidade de Guarantã, interior de São Paulo, e em uma fazenda em Damolândia, interior de Goiás, bandeiras brancas eram usadas para agredir o gado. As flâmulas deveriam servir apenas para indicar o caminho ao gado. Segundo as recomendações do Ministério, elas devem ser usadas como “extensão do braço e não como instrumento de agressão para bater ou cutucar os animais”.

A lotação dos currais de diferentes fazendas também estava acima da capacidade máxima sugerida pelo Ministério da Agricultura. A recomendação é de que os animais ocupem no máximo “metade do espaço disponível”, mas fazendeiros trabalhavam com os currais abarrotados e os animais agitados, muitas vezes machucando uns aos outros.

As vacinações também aconteciam com os animais em movimento, o que pode causar lesões. A recomendação do Ministério da Agricultura é de que os bois sejam imobilizados antes da aplicação –o que não acontecia em fazendas visitadas pela reportagem.

Sistema da JBS é falho

A reportagem visitou ao menos quarenta e oito locais apontados pelo sistema do site “Confiança desde a origem” da JBS. Ao procurar os locais apontados pelo banco de dados (acesse aqui), a reportagem se deparou com um sistema impreciso e, muitas vezes, falho.

Em alguns casos, o banco de dados apontava para fazendas com nomes diferentes daqueles que eram encontrados no local. Em outros, fazendeiros negavam vender gado à empresa. O site também mostrava fazendas localizadas dentro de cidades, lagos de barragens e até de Terras Indígenas. A JBS alega que “os dados geográficos das fazendas fornecedoras de gado são checados periodicamente por uma empresa terceira para evitar possíveis erros de localização”. (Leia a íntegra da resposta).

Os problemas referentes à promoção do bem-estar animal mencionados nessa reportagem se referem somente a fazendas com localização precisa e que tiveram relação comercial com a JBS confirmada pela própria companhia.

Brasil não tem lei sobre bem-estar em fazendas

A Constituição de 1988 estabelece que compete ao poder público vedar “práticas que submetam os animais a crueldade”, mas não há legislação específica sobre o bem-estar no manejo de animais no país.

Para tentar se adequar a padrões mundiais, o governo criou em 2008 uma “Comissão Técnica Permanente de Bem-Estar Animal”. Nos anos seguintes, foram publicadas as recomendações utilizadas nessa reportagem, elaboradas por universidades que pesquisam o tema no Brasil. (Acesse os manuais publicados pelo Mapa).

Já a JBS publica em seu site a sua política de bem-estar animal, baseada no princípio das “cinco liberdades”. Segundo essas regras, os animais da sua cadeia produtiva devem ser livres de “fome e sede; desconforto; dor, injúria e doença; medo e estresse; e serem aptos a expressar seu comportamento natural”. (Acesse o site de bem-estar animal da empresa). A JBS também afirma estar entre “as melhores empresas do mundo no que se refere às práticas de bem-estar animal”.


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