28/03/2024 - Edição 540

Especial

Democracia ao seu alcance

Publicado em 17/05/2017 12:00 -

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Democracia: "governo (do povo) pelo povo", segundo o grego Heródoto (século V a.C.), ecoando Péricles, na oração póstuma aos atenienses mortos na Guerra do Peloponeso: "Nosso regime político é a democracia e assim se chama porque busca a utilidade do maior número e não a vantagem de alguns. Todos somos iguais perante a lei, e quando a República outorga honrarias o faz para recompensar virtudes e não para consagrar privilégios. Nossa cidade se acha aberta a todos os homens."

“Se houvesse um governo de deuses, haveria governar-se democraticamente. Um governo tão perfeito não convém aos seres humanos” ROUSSEAU, J.J.

Quando nos referimos à democracia, a primeira coisa que nos vem à mente é o dia das eleições. Pensamos em candidatos, em propostas, na nova composição dos legislativos e executivos. No entanto, a democracia é muita mais que isso. Para situar a discussão é preciso lembrar que as democracias são muitas, mas podem ser resumidas na exercida pelos antigos e na contemporânea. Uma diferença fundamental as separa. Os gregos concebiam a democracia de uma forma que hoje classificamos como “democracia direta” ou “participativa”, um processo no qual a participação da vida política se dava através da assembleia, onde cada cidadão participava dos rumos da polis. A democracia contemporânea, por sua vez, acontece através dos representantes da população. É o que chamamos de "democracia representativa”, na qual o voto continuou assumindo papel central, mas com consequências diferentes. Hoje, o voto não serve para decidir, mas para eleger quem deverá decidir em nosso nome.

É pensamento defendido por muitos pensadores e filósofos contemporâneos que a democracia representativa, esta a qual nos acostumamos, está morta, não cumpre mais o papel a ela atribuído. Isso ocorre não apenas no Brasil, mas no mundo. O motivo deste apodrecimento interno da democracia representativa é a submissão dos interesses públicos aos interesses dos que detém o poder político e econômico. Estes procuram manter o estado de coisas favorável aos seus interesses, impondo-se à estrutura do Estado, corrompendo os demais em nome dos seus interesses particulares.

O sociólogo Henrique Rattner – falecido em 2011 – definiu a situação que herdamos dos últimos 150 anos de desenvolvimento da democracia representativa:

“Contra a lógica impiedosa dos mercados, os utopistas nos séculos XIX e XX depositaram sua fé no Estado, virtuoso e redentor, capaz de manter o equilíbrio na luta entre as classes sociais. Conquistando o poder do Estado, estaria aberto o caminho de reformas, garantindo a ordem, a segurança e o bem-estar de todos. Tarde demais percebemos que o Estado protege os mais ricos e continua a oprimir os mais pobres e fracos, devido a uma aliança perversa entre as elites tradicionais e modernas, os donos das terras e a burguesia industrial, sustentadas e legitimadas por uma tecnocracia que age em nome de uma suposta racionalidade científica…”.

Na democracia representativa, seria de se esperar que um parlamentar representasse os interesses da população que o elegeu. De fato, isso raramente ocorre pois o sistema já não o permite. Não se trata de separar o joio do trigo, os maus dos bons políticos, o problema reside no cerne do sistema político. Legisla-se em causa própria ou em causa de uma pequena coletividade de interesses, invertem-se as prerrogativas que deveriam defender por aquelas dos investidores e das mais variadas classes de detentores da riqueza. Daí o surgimento das bancadas de especificidades como ruralistas, usineiros, evangélicos etc, etc. O interesse público submerge sob o peso dos interesses privados.

“É impossível salvar a democracia representativa, porque ela contém uma contradição em termos: a impossibilidade de uma representação legítima (seu pressuposto), isto é, não eivada de manipulação – manipulação que apenas cresce e se agiganta e toma as formas de um moloch na sociedade de massas –, pela exigência de instrumentos de mediação que se constituem, ao mesmo tempo, em incontornáveis instrumentos de defraudação da vontade-cidadão original”, afirma o jornalista Roberto Amaral.

De forma mais simplista, os sinais desta desagregação da democracia podem ser vistos com clareza em algumas circunstâncias que afloram do seio das sociedades modernas. A falta de confiança nos políticos é uma delas, assim como o crescente desinteresse da população pela política tradicional. Cada vez mais a democracia representativa se afasta de seu objetivo primordial, afastando governados e governantes e criando, como consequência, uma casta de czares que tudo pode e, em nome do povo, exerce a política do clientelismo e dos interesses particulares que a eterniza no poder.

É preciso ir além da representatividade

O sufrágio universal para a escolha dos governantes e representantes nos parlamentos é, sem dúvida, uma conquista fundamental para a construção do regime de direito. No entanto, são claras as demonstrações de que ele é insuficiente para coibir os abusos de poder e, principalmente, a utilização dos recursos públicos em favor de minorias privilegiadas sem consulta ao conjunto da população nem a adoção de critérios de transparência nos processos decisórios. “De qualquer forma, escolher quem vai ser o chefe não é de modo algum a democracia. A democracia é se encarregar coletivamente de nossa vida coletiva”, sustenta o filósofo Pierre Lévy, ressaltando que o voto em si não define a democracia.

Ora, se a democracia representativa está desmoronando sob seus pilares carcomidos, para onde caminharemos? A resposta pode estar na radicalização democrática, na construção de mecanismos que possibilitem a democracia participativa. “Acredito que com a informática nós dispomos, talvez pela primeira vez, de uma técnica que pode permitir de um modo verdadeiramente operacional e razoável uma gestão coletiva do coletivo.”, opina Levy.

Com o ciberespaço surgiram novamente condições para que o homem, fazendo uso da técnica, consiga de um modo verdadeiramente operacional e razoável a gestão coletiva das coisas públicas. A comunicação em tempo real, permitida pelo ciberespaço, de certo modo representa o retorno à comunicação tribal, aproximando as pessoas e colocando por terra a afirmação de Rousseau, segundo qual “Nunca existiu verdadeira democracia, nem jamais existirá por ser contra a ordem natural que o grande número governe e o pequeno seja governado. Não se pode imaginar que o povo permaneça constantemente reunido para ocupar-se dos negócios públicos; e vê-se facilmente que não seria possível estabelecer comissões para isso sem mudar a forma da administração”, afirma.

A diferença é que agora podemos, sim, estar constantemente reunidos para ocupar-nos dos negócios públicos, pois o espaço geográfico já não é um obstáculo. O ciberespaço transformou-se em uma “ágora virtual” com um alcance muito maior do que imaginavam os atenienses.

É possível fortalecer a participação direta

Trocando em miúdos, o que se propõe é que através da internet torna-se possível a aplicação radical de conceitos de democracia direta e participativa, de modo a condenar paulatinamente a democracia representativa a um papel secundário. São muitos os exemplos que já podem ser pinçados mundo afora, inclusive no Brasil. Um deles é o aplicativo Mudamos+.

Não é nada fácil aprovar um projeto de iniciativa popular no Brasil. O desafio começa com o alto número de assinaturas necessárias para que o projeto seja aceito pela Câmara dos Deputados: 1% do eleitorado (algo próximo a 1,5 milhão de pessoas), distribuídos em pelo menos cinco estados, dentro dos quais devem subscrever ao projeto 0,3% dos eleitores.

Mesmo que alguém consiga criar uma força-tarefa e coletar esse monte de assinaturas – algo que aconteceu pouquíssimas vezes desde 1988 – ainda resta um problema: como verificar que os dados coletados são verídicos? Como garantir que não há fraudes? Foi pensando nisso que o advogado eleitoral Márlon Reis e o advogado e especialista em tecnologia Ronaldo Lemos criaram uma solução prática que promete revolucionar a forma como se fazem projetos de iniciativa popular no Brasil: o Mudamos+.

Márlon Reis é um renomado jurista brasileiro, com histórico destacado de ativismo político. Ele já esteve à frente de dois projetos bem-sucedidos de iniciativa popular no Brasil. O primeiro foi deu origem à Lei Contra a Compra de Votos, em 1999. O segundo foi o projeto da famosa Lei da Ficha Limpa, em 2010.

Segundo Marlón, a ideia do aplicativo surgiu justamente das experiências negativas que teve nessas duas oportunidades. A dificuldade de coletar e auditar assinaturas feitas em papel levou Márlon a buscar uma alternativa prática, que tornasse esse processo acessível, ao mesmo tempo que seguro e verificável. Foi assim que surgiu a ideia do Mudamos+, um aplicativo simples de usar, amplamente disponível e confiável.

Assinaturas online são válidas?

Existe uma controvérsia quanto à validade de assinaturas coletadas por meios eletrônicos. Mas Márlon garante que o Mudamos+ é completamente válido do ponto de vista legal: “a Constituição fala apenas em subscrição ao projeto, e não sobre o meio de coleta das assinaturas”. De fato, o § 2º do artigo 61 emprega a expressão “subscrito“, abrindo margem para formas alternativas de reunir as assinaturas.

Como o projeto é novo, existe um esforço de seus criadores junto às câmaras e assembleias de todas as esferas para que o aplicativo seja reconhecido formalmente como uma ferramenta válida de reunir assinaturas para projetos de lei. Segundo Márlon, a Câmara Municipal de João Pessoa (PB) foi a primeira a se manifestar positivamente quanto à validade do Mudamos+.

Segurança

Além de ser um meio muito prático de coletar o apoio dos eleitores, o aplicativo também é muito mais seguro do que o registro no papel, garante Márlon. Isso porque utiliza o blockchain, tecnologia utilizada para o desenvolvimento de aplicativos de bancos, bem como para criptografar o bitcoin, moeda digital descentralizada.

Além disso, para que a assinatura seja coletada pelo aplicativo, é necessário que os dados do usuário sejam compatíveis. Pede-se a data de nascimento, CPF e o título de eleitor do cidadão. Por fim, ainda é possível rastrear o celular dos usuários via IMEI, número atrelado a cada aparelho. “Nada disso existe na coleta de assinaturas em papel, em que o cidadão pode simplesmente colocar qualquer dado. Por isso, o risco de fraudes é muito menor pelo Mudamos+”, garante Márlon.

Projeto piloto

Por enquanto, o Mudamos+ conta com apenas um projeto de lei: é o Voto Limpo, que prevê a cassação de políticos em casos de compra de apoio político. O fenômeno da compra de apoio político é relatado por Márlon Reis no livro “O Nobre Deputado”, que detalha práticas corriqueiras de políticos no sentido de garantir (muitas vezes por meio de chantagem e constrangimento) o apoio de servidores públicos ou de parte da população.

Mas o app não deve parar por aí. O objetivo dos criadores do Mudamos+ é tornar o aplicativo um espaço aberto para que vários projetos sejam apresentados aos cidadãos e consequentemente encaminhados ao Legislativo de todos os níveis. Márlon Reis explica que em breve será inserido no app um mapa interativo que mostre projetos de acordo com a jurisdição, seja nacional, estadual ou municipal (com algumas centenas de assinaturas, é possível apresentar um projeto de iniciativa popular à câmara de vereadores de alguns municípios).

As dificuldades de por em prática a Iniciativa Popular

Muito falada, mas pouco compreendida, a iniciativa popular está prestes a completar 30 anos. Mas o que ela fez efetivamente pelo povo? Você saberia citar de cabeça uma lei brasileira que surgiu da vontade do povo (ou seja, da iniciativa popular)? Uma resposta comum a essa pergunta, e isso acontece inclusive no meio jurídico, é a Lei da Ficha Limpa. Mas, tecnicamente, a Lei Complementar nº 135/2010, que estabelece casos de inelegibilidade, não pode ser considerada de iniciativa popular.

O Brasil, desde que instituiu a iniciativa popular em sua Constituição (e lá se vão três décadas) só tem uma lei em que o povo seja formalmente o autor. As demais, que você pode conferir nesta reportagem, tiveram que ser “apadrinhadas” por um deputado para saírem do papel. Isso acontece porque os requisitos para se propor uma lei de iniciativa popular são rígidos demais, o que faz com que alguns juristas a apelidem de “instituto decorativo”.

O que é preciso para propor uma lei de iniciativa popular?

O instituto da iniciativa popular surgiu com a Constituição Federal de 1988. O artigo 61, § 2º, estabelece:

– 1% do eleitorado nacional;

– distribuído pelo menos por cinco Estados;

– com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles.

Trocando em miúdos, hoje, no Brasil, para apresentar um projeto de lei de iniciativa popular são necessárias cerca de 1,44 milhão de assinaturas, de acordo com dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em 2016. E esse, sem dúvida, tem sido o maior empecilho para o povo fazer valer seu direito.

Para entender por que os constituintes estabeleceram um modelo tão rígido de propositura, precisamos voltar a 1987/1988, pouco antes do nascimento de nossa atual Constituição. Na época, o Instituto da Emenda Popular, previsto no Regimento Interno da Constituinte, contou com grande adesão do povo. Foram formuladas 122 propostas de iniciativa popular, das quais 83 cumpriram as disposições regimentais (mínimo de 30 mil assinaturas e três entidades responsáveis), influenciando diretamente o texto constitucional. Possivelmente preocupados que toda essa mobilização pudesse influenciar a prática constitucional, os elaboradores da Constituição Cidadã tentaram protegê-la.

Passado tanto tempo desde sua publicação e, sabendo que o povo é de longe o último a ameaçar a legalidade constitucional, não seria tempo de nossos legisladores – principalmente se compararmos com os casos de sucesso de iniciativa popular, dentre os quais se destaca nosso vizinho Uruguai – proporem uma maneira mais viável de os cidadãos participarem da elaboração das leis de seu próprio país?

Os modelos de iniciativa popular no mundo

Existem dois grandes modelos de iniciativa popular: o semivinculante, em que se o Legislativo alterar ou rejeitar o projeto popular, deve obrigatoriamente convocar um referendo; e o modelo não vinculante, em que a iniciativa popular se esgota na proposição do projeto, e o Legislativo é livre para aprovar, emendar ou rejeitar, sem dar satisfações à população. O Uruguai adota o primeiro modelo; o Brasil, o segundo. Isso talvez explique por que 81% de todos os processos de democracia direta de iniciativa popular na América Latina, nos últimos 40 anos, aconteceram no Uruguai.

Para tentar diminuir a distância entre a soberania popular e a prática legislativa, começam a surgir algumas propostas interessantes, como o próprio Mudamos+. Já o consultor legislativo do Senado Federal e mestre em Direito, João Trindade Cavalcante Filho, propõe uma solução na própria fonte, ou seja, corrigir os problemas nos requisitos da iniciativa popular em nossa Constituição. No estudo Iniciativa Popular e Desvirtuamento do projeto pelo Legislativo: limites e perspectivas de soluções no Brasil e no Direito Comparado, depois de discutir toda a problemática que envolve a iniciativa popular no Brasil e os requisitos que tornam o instituto praticamente inviável no país, ele propõe uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC). Nela, estabelece o referendo obrigatório, em caso de rejeição ou alteração substancial do projeto proposto pelo povo, e uma quantidade menor (e mais razoável) de assinaturas, de forma a viabilizar a tramitação.

Veja a proposta do consultor legislativo para facilitar o exercício da iniciativa popular:

– Apresentação, no mínimo, de 200 mil assinaturas;

– Tramitação em regime de urgência;

– Não poderá tratar de mais de uma matéria;

– Se o Congresso rejeitar o projeto, ou o aprovar na forma de substitutivo, precisa convocar referendo em até 6 meses, a fim de que o povo decida a questão.

E então?

“Das definições de democracia, como todos sabem, são muitas. Entre todas, prefiro aquela que apresenta a democracia como o poder em público. Uso essa expressão sintética para indicar todos aqueles expedientes institucionais que obrigam os governantes a tomarem as suas decisões às claras e permitem que os governados vejam como e onde as tomam.” (Norberto Bobbio)

O ciberespaço, hoje, se configura em uma força produtiva, a chamada unimídia, onde podemos ler jornais e revistas, ver televisão, ouvir rádio, enviar mensagens, fazer reunião com amigos, pesquisas em enciclopédias, consultar dicionários, tudo em tempo real. “Desse modo essa nova forma de comunicação representa também o retorno à comunicação tribal, salvo que se trata de poder fazê-lo em uma escala completamente diferente daquela do clã, da tribo… É a partir dessa perspectiva que preconizamos a possibilidade do ciberespaço nos proporcionar uma retomada à democracia direta”, afirma o filósofo Ivo José Triches, que reuniu em sua dissertação de mestrado um apanhado de experiências reais onde o ciberespaço já é testado como ferramenta de participação democrática em diversos níveis.

As análises e exemplos citados anteriormente indicam a possibilidade da existência de uma democracia substantiva, participante, regida por princípios éticos de liberdade e igualdade social onde todos os que desejarem podem participar da vida da cidade. Tudo isso nos leva a crer que o ciberespaço está possibilitando o exercício da democracia direta, podendo nos auxiliar na construção de um novo conceito de poder que resgate a democracia em sua essência, uma democracia que, como define o jurista José Afonso da Silva, “repousa sobre dois princípios fundamentais ou primários, que lhe dão a essência conceitual: a) o da soberania popular, segundo o qual o povo é a única fonte do poder, que se exprime pela regra de que todo o poder emana do povo; b) a participação, direta ou indireta, do povo no poder, para que este seja efetiva expressão da vontade popular; sendo que as técnicas que a democracia usa para concretizar esses princípios têm variado, e certamente continuarão a variar”.


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