23/04/2024 - Edição 540

Especial

Sobre mulheres e presuntos

Publicado em 27/04/2017 12:00 -

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“Viajar para o Brasil com a própria mulher é como vir a Espanha e trazer Jamón”. Ouvi esta frase nesta semana, em Madri. Estava visitando pela segunda vez um restaurante delicioso na capital espanhola – o Casa Mundi, recomendo – para degustar os famosos presuntos curados, tão típicos da gastronomia local. Ao meu lado, um senhor de aparência muito distinta, seus cinquenta e poucos anos, comentou a qualidade do Pata Negra servido ali e entabulamos um longo papo sobre turismo, cultura, bons vinhos e boa comida. Um papo agradável, soterrado por uma frase infeliz. Especialmente infeliz por ter sido dita como gracejo inocente, na presença da minha mulher e por ter sua contextualização baseada em uma imagem que nós mesmos construímos a respeito das mulheres brasileiras.

Sim, este reducionismo da mulher brasileira a um presunto apetitoso é algo que nós mesmos, os brasileiros, construímos e continuamos alimentando. O tema já foi esmiuçado por muita gente mais competente que eu, como a jornalista Bárbara Gancia, no artigo “Where are you from?”, publicado em 2009 no jornal Folha de S.Paulo.

A sexualização da imagem da brasileira, aliada a prostituição, faz com que o fato de ser brasileira se transforme em um atestado de permissividade, diz Gancia, que resume sua experiência em Nova Iorque:

A pergunta fatídica ‘Where are you from?’ continua a gerar a mesma reação quando a resposta é ‘Brazil’ e a turista é do sexo feminino.

A conversa sempre começa respeitosa, mas bastou você dizer que é do Brasil para verificar uma mudança radical de tom. ‘Puxa, você é puta! Quem diria, não parece!’. A frase nunca é escancarada, mas a tapuia em viagem -mesmo cega e surda- será capaz de perceber o estupor nas entrelinhas.

Num táxi, paguei pato ouvindo considerações sobre os trajes reduzidos das brasileiras (note que minhas amigas e eu, todas freiras carmelitas, estávamos encapotadas até o cocuruto) e, noutro, o motorista resolveu apelar para a pegadinha. Depois de tomar conhecimento da nossa nacionalidade, chutou: ‘Não gosto dos homens brasileiros’. Fez-se silêncio, e logo ele emendou com ar sacana: ‘Gosto das mulheres’.

Indústria do desejo

Apesar dos esforços oficiais para coibir o turismo sexual, em especial o que afeta crianças e adolescentes, o Brasil ainda projeta no exterior a ideia da mulher como atrativo turístico. Os pesquisadores Fernando Feijó e Flávio Mário de Alcântara Calazans afirmam no artigo “A imagem internacional do turismo sexual no Brasil: o ‘prostiturismo’ no marketing turístico” que “o turismo sexual é muito maior, pois não se trata apenas de uma pessoa em busca de uma simples aventura sexual, ele se constitui numa verdadeira indústria de serviços, que apesar de inúmeros esforços de alguns governos e ONGs, continua crescendo e muito”.

Esta indústria é alimentada pela visão deturpada com a qual a mulher brasileira é apresentada no exterior. Trata-se de uma prática que ocorre por diversos meios, de forma oficial ou não. A blogueira e feminista Denise Arcoverde alerta: “Não se iludam. Essa imagem não ajuda em nada a mulher brasileira, nem ao país. É um insulto que estimula o turismo sexual”.

Ocorre que o turismo sexual sempre foi usado no exterior para promover as “belezas do Brasil”. Rea­li­zado na Es­panha há al­guns anos, a feira “In­tegra Ma­drid” foi palco de um destes muitos momentos. O caso foi o seguinte: no stand da revista espanhola Periodista Latino, um cartaz promocional exibia uma modelo colombiana saindo do mar com um biquíni sensual. A peça publicitária alterou os ânimos de alguns participantes do evento, provocando protestos. O cartaz foi apontado como fruto do chauvinismo e quase despedaçado. Foi preciso a ação da polícia para dispersar os revoltosos. Responsável pela publicação, Paul Monzón reclamava: “E estas brasileiras dançando no meio da feira?”. Ele se referia as dançarinas de funk que, em trajes sumários, se exibiam em um stand brasileiro.

Outro bom exemplo desta prática foi a campanha publicitária da cachaça Cabana, veiculada nos Estados Unidos, que mostra mulheres exibindo o que lá fora eles chamam de "depilação brasileira".

Em 2009, uma campanha publicitária da Relish – grife de roupas femininas da Itália – revoltou autoridades municipais e estaduais do Rio de Janeiro. Espalhadas por outdoors de Milão, Bolonha e Nápoles, as imagens mostravam modelos aparentemente estrangeiras sendo abordadas e revistadas de forma abusiva e agressiva por policiais militares fardados. Em uma das fotos, na Praia de Ipanema, um PM com a farda do 22º Batalhão de Polícia Militar (BPM), do Complexo da Maré (zona norte), coloca a mão por baixo da saia da modelo.

O Rio for Parties (Rio para Festeiros), uma espécie de “guia” para que os gringos se “deem bem” com as brasileiras, não pode ficar de fora da lista de excessos em prol do turismo sexual.  Em sua edição de 2010, classificava as brasileiras como "máquinas de sexo" e as dividia em quatro categorias: as britneys ("filhinhas de papai", mais difíceis), as popozudas ("máquina de sexo bundudas", sexo fácil), as hippies/ravers (garotas divertidas, mas difíceis de beijar) e as balzacs (mulheres com mais de 30 anos que querem se divertir, dançar, beber e beijar). O livreto recomendava ao turista: não “tente pegar sua brasileira na praia", principalmente no fim de semana, além de aconselhá-lo a não tentar a abordagem na rua. E avisava: “Tente derretê-la com uma aproximação suave. Tente começar a beijar o mais rápido possível”. Outra recomendação: o turista não deve insistir para ir a casa dela, mas sim sugerir um passeio por onde estão os melhores motéis. Uma lambança que foi parar na justiça.

Outro caso que de­monstra as es­tra­té­gias equi­vo­cadas do tu­rismo tu­pi­ni­quim, que co­la­boram ainda hoje para a cons­trução de uma imagem de­tur­pada das nossas mu­lheres foi abor­dado pela jor­na­lista Elaine Chry­sos­tomo, no ar­tigo “Des­res­peito lá fora, des­pudor aqui dentro”. Ela re­lata “o epi­sódio do de­sem­barque dos pas­sa­geiros do navio Queen Mary 2 no Rio de Ja­neiro (em 2004), em que mu­latas-sam­bistas, in­dig­na­mente ‘ves­tidas’, agar­raram um tu­rista ve­lhinho (e fu­ri­bundo), de ben­gala, na saída do Cais do Porto, só para posar para foto”. “O pior é que essas ini­ci­a­tivas re­cebem apoio do go­verno do es­tado e da Pre­fei­tura , para desrespeitar a imagem da mulher brasileira”, diz Elaine.

Copa do Mundo

Durante a Copa do Mundo de 2014, a Adidas teve que tirar do mercado camisetas inapropriadas relacionando ao turismo sexual.

Em uma das camisetas, a Adidas expôs a figura de uma mulata ao lado da frase Looking to score, um trocadilho sobre fazer gols e pegar garotas. Na época, a Embratur afirmou que a promoção turística do Brasil no exterior não faz esse tipo de referência, e tem o objetivo de mostrar um país culturalmente diverso, com roteiros turísticos, ícones patrimoniais, belezas naturais, hospitalidade e modernidade.

Depois do repúdio do governo brasileiro e de reclamações de consumidores nas redes sociais, a empresa parou de vender as camisetas comemorativas ao evento, que, segundo ela, faziam parte de uma edição limitada que só seria vendida nos Estados Unidos.

O então presidente da entidade, Flávio Dino, afirmou que o país não tem interesse algum em vincular sua imagem ao turismo sexual. “É um crime inaceitável, e não pode ser confundida de forma alguma com uma modalidade de turismo. Queremos deixar claro aos nossos parceiros comerciais na área do turismo que o Brasil não tolera esse tipo de crime em seu território”, disse.

Em reportagem sobre a Copa do Mundo, por exemplo, o jornal argentino Olé publicou uma matéria com a manchete: “Garotas Allá vamos”, ou seja, “Garotas, aí vamos nós”. Outro exemplo é o comentário do apresentador americano Stephen Colbert à época dos protestos de junho de 2013, que dizia não entender os motivos de insatisfações no Brasil: “Pessoal esse é o Brasil, o lugar mais alegre da terra. A única coisa que preocupa os brasileiros são seus pelos pubianos”.

A mulher oficialmente desconstruída

Foi entre os anos 70 e 80, quando o turismo começou a ser apontado como a “indústria do futuro”, que a Embratur deu início a campanhas publicitárias com a intenção de “vender” o Brasil como destino para o turismo mundial. Estas campanhas enalteciam as belezas naturais do país, mas também a sexualidade da mulher brasileira.

Foi nesta época que o material oficial do turismo brasileiro – cartazes, folders, filmes publicitários e até a participação em congressos mundiais – passou a explorar a imagem da mulher, sempre em trajes sumários, expondo sua sensualidade inerente como um produto a ser consumido. Também teve início neste período a transmissão via satélite dos desfiles de carnaval, onde as mulatas eram os principais focos de atenção, assim como a transmissão pela tevê de bailes de carnaval do Rio de Janeiro, onde a pouca roupa das mulheres era o principal atrativo das câmeras.

Técnicos da própria Embratur apontavam o órgão como um dos responsáveis pela consolidação do Brasil como rota do Turismo Sexual. Através da sua política de propaganda, associando a imagem da mulher nativa às paisagens naturais, bem como às festas populares, a autarquia atraiu a atenção tanto de turistas quanto de agenciadores nacionais e internacionais, para as potencialidades de exploração desse mercado.

Na década de 80, um estande da Embratur em Nova York (EUA) exibia uma modelo brasileira com roupas de banho desfilando na frente de fotos do país. Os atuais cartões-postais da praia de Copacabana, da mesma forma, ainda estampam quatro mulheres de biquíni na areia.

Em sua dissertação de mestrado intitulada “Embratur: Formadora de imagens da nação brasileira”, a pesquisadora Louise Prado Alfonso sustenta que a divulgação deste tipo de imagem da mulher brasileira por organismos oficiais de turismo levou uma mensagem negativa e equivocada que contribui para o aumento do turismo sexual. Para Louise, os aspectos depreciativos da divulgação da mulher brasileira como atrativo turístico poderiam ter sido previstos pela Embratur.

Maria Jaqueline de Souza Leite, do Centro Humanitário de Apoio à Mulher (CHAME), completa o quadro, ampliando os agentes propagadores desta imagem desconstruída de nossas mulheres: “A imagem de sensualidade, erotismo e liberdade sexual que alimenta as fantasias dos homens no exterior a respeito das mulheres brasileiras, sobretudo negras e mulatas… é projetada não apenas através de propaganda turística, mas também da literatura e cinema nacionais”

Não é de hoje

A conotação pejorativa sobre a mulher brasileira não é novidade. O próprio Pero Vaz de Caminha, em 1º de Maio de 1500, foi quem deu início a ela em carta a El Rei. Diz o escriba, admirado com a “falta de vergonha” das índias: “Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem novinhas e gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas costas; e suas vergonhas, tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras… E uma daquelas moças era toda tingida de baixo a cima, daquela tintura e certo era tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha tão graciosa que a muitas mulheres de nossa terra, vendo-lhe tais feições envergonhara, por não terem as suas como ela…".

Bem depois, em "Casa Grande & Senzala" (1961), Gilberto Freyre também apontava para a sexualidade acentuada das brasileiras. No segundo capítulo do primeiro tomo da obra, ele descreve o relacionamento do colonizador com as índias que faziam lembrar a figura mitológica da "moura encantada" de longos cabelos negros a banhar-se nos rios. No quarto capítulo do segundo tomo, intitulado "O escravo negro na vida sexual e da família do brasileiro", Freyre descreve as relações dos colonizadores com as escravas negras e com as índias.

Fazendo um paralelo com as funkeiras brasileiras presentes ao Integra Madrid, podemos continuar citando Freyre e os aspectos erotizados das danças brasileiras que, segundo ele, “podem representar muito mais uma necessidade de estimulação do que a voracidade sexual”. Para o autor de "Casa Grande & Senzala", as danças eróticas desempenham “funções de afrodisíaco, de excitante ou de estímulo à atividade sexual”.

Estratégias e Exemplos

Até pouco tempo, as es­tra­té­gias de com­bate ao tu­rismo se­xual im­ple­men­tadas pelo poder pú­blico e pela so­ci­e­dade civil li­mitam-se – em grande parte – a ex­plo­ração da cri­ança e do ado­les­cente.  Hoje, a Em­bratur tenta subs­ti­tuir a sen­su­a­li­dade da  mu­lher bra­si­leira pelas be­lezas na­tu­rais do país.

Ser um país com estereótipo de destino de turismo sexual acarreta uma série de consequências negativas, como a exploração sexual adulta e infantil, o tráfico de mulheres e crianças para fins de prostituição em outros países e a imagem pejorativa da mulher brasileira. Por isso, a partir da década de 1990, têm se observado uma preocupação governamental e diversas ações para reverter tal quadro. Em 2011, por exemplo, o Ministério Público do Trabalho e a Polícia Federal distribuíram panfletos em aeroportos e rodoviárias alertando para o risco de prisão para os que buscam turismo sexual infantil: “Se você está procurando por turismo sexual, nós já reservamos o melhor quarto da cidade. Exploração sexual de crianças não é brincadeira. É crime.” Com objetivo semelhante, em 2012 o Ministério do Turismo detectou e notificou sites que associavam o país a apelo sexual, convocando-os a ajustar seu conteúdo ou ser retirados do ar. Entretanto, apesar dessas ações, ainda é possível encontrar agências de turismo estrangeiras que expõem a imagem da mulher brasileira como atrativo turístico. Levantamento realizado em junho de 2015 mostra que desde 2013 surgiram novos 3.350 sites que vendem turismo sexual no Brasil, número que ultrapassa as 2.165 páginas retiradas do ar anteriormente pelo Ministério.

Confira no vídeo alguns casos do uso inadequado da mulher brasileira no turismo.

Entre as estratégias que poderiam ser adotadas em um processo de recuperação da imagem das brasileiras no exterior está o combate à prostituição que leva milhares de brasileiras a vender o corpo no velho mundo. É fato que este grupo constrói uma imagem negativa do Brasil e das brasileiras em especial. A criação de mecanismos que evitem o aumento deste contingente é importante e, certamente, ajudaria a mitigar a ideia que permeia as mentes de muitos “gringos” de que o Brasil é um paraíso de praias e de sexo fácil e barato.

Serviria de alento, por exemplo, para uma amiga jornalista residente em Londres, que vivenciou – em uma reunião social – o assédio de estrangeiros que, movidos pelo álcool, mostraram como, de fato, enxergam a mulher brasileira. “Um babaca com uma risadinha sacana me perguntou se as mulheres andavam peladas no Brasil porque era muito quente. Um imbecil francês disse que seria bom ir participar de uma reunião no Brasil para poder ‘catar’ as mulheres, afinal, as mulheres no Brasil estão assim disponíveis como qualquer mercadoria barata e descartável, bastando escolher. O outro concordou e imaginou e descreveu uma cena bizarra dele saindo do aeroporto e sendo agarrado por três mulheres desesperadas querendo levá-lo para cama. Um teve a cara de pau de dizer que se fosse ia voltar com umas três para casa. Nessa hora meu sangue ferveu, mas infelizmente não poderia falar muita coisa, pois é isso que o Brasil vende aqui fora – turismo sexual e barato.”.

Enquanto considerarmos natural a sexualização da imagem da mulher brasileira como atrativo turístico, teremos que conviver com a ideia de que nossas amigas, mães, irmãs, esposas e filhas continuarão sendo comparadas a presuntos deliciosos, expostas como um produto a ser consumido por uma turba de turistas extasiados pelas nossas belezas naturais.


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