29/03/2024 - Edição 540

Entrevista

Enfraquecimento da saúde pública é derrota da sociedade

Publicado em 09/04/2017 12:00 -

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“Defendo o SUS e a noção lema de que a vida de qualquer um vale a pena ser vivida na sua diferença e que a diferença do outro é parte de mais vida em si”, diz o médico sanitarista Emerson Elias Merhy, professor titular de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e livre-docente pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A ideia de defesa da “vida de qualquer um”, em como base um conceito simples: independente de questões sociais, econômicas, étnicas, etc, a saúde é um bem comum que deve ser proporcionado a todos, sem distinção. Em sua passagem por Campo Grande, onde participou da aula inaugural do mestrado em Saúde da Família da UFMS, e de um encontro com integrantes do Observatório Microvetorial de Políticas Públicas em Saúde e em Educação e Saúde – Mato Grosso Do Sul, o pesquisador concedeu uma entrevista a O Estado, abordando um tema delicado: a atual política de saúde do governo Michel Temer, que privilegia a ideia de que o mercado deve regular o setor em detrimento das políticas públicas que, desde a década de 80, tem garantido – em meio a dificuldades de financiamento e gestão – a noção de que o acesso à saúde deve ser universal, integral e gratuito.

Qual o cenário da saúde pública sob o governo do presidente Michel Temer?

Não precisa ser nenhum especialista para saber que no governo Temer qualquer política social que se coloca na direção de qualificar a vida de qualquer um está sob ameaça. O governo vem atuando de forma muito clara na destruição dos direitos trabalhistas, da educação universal e da saúde como patrimônio e riqueza social. Além de destruir todas as redes de proteção social aos coletivos em suas diferenças nos modos de viver, incluindo nisso o SUS (Sistema Único de Saúde).

É possível uma saúde pública nesta dinâmica de enfraquecimento do SUS?

Nesse território de política do SUS, a saúde pública joga um papel fundamental: dar igualdade de tratamento e combate a todos os riscos que ameaçam qualquer vida. É uma política democrática em si, ao combater as ameaças que podem eliminar vidas sem discriminação de cor, de renda, etc… Também toma para si políticas compensatórias para diminuir desigualdades no acesso e no cuidado no campo da saúde, como por exemplo as Farmácias Populares e os Mais Médicos, entre várias outras medidas. No governo Temer está se destruindo cada um desses projetos e políticas setoriais. Está se destruindo a rede de Farmácias Populares, o Mais Médicos, a Rede Substitutiva em Saúde Mental, a extensa Rede Básica de Cuidado.

Sob o governo Temer, qualquer política social que se coloca na direção de qualificar a vida de qualquer um está sob ameaça.

E o que se oferece como alternativa?

Apregoa-se que a solução é o Plano de Saúde para todos, substituindo o grande lema desde os anos 70/80 de Saúde para Todos, pela balela de que o mercado da saúde é mais amplo e efetivo para cuidar da saúde. Esta opção nunca foi comprovada como eficaz em lugar nenhum do mundo, menos ainda nos Estados Unidos, onde ela impera. Isso é conhecido pelos especialistas do campo da saúde. Veja que os Estados Unidos – onde prevalece a ideia de que a saúde não é um direito universal, mas um bem de mercado, e que a vida de qualquer um não vale a pena – é um dos campeões da desigualdade no tratamento da qualidade de vida de vários grupos sociais. Nem o Obamacare, que é baseado nessa ideia de Plano de Saúde para todos, consegue dar consequência da defesa à vida, apenas abre o acesso para mais gente em relação ao cuidado centralmente médico. Cuidado, esse, que não dá conta das necessidades de saúde dos coletivos sociais e dos indivíduos que os compõem. O governo Temer não utiliza argumentos técnicos e científicos para provar que o caminho que vem escolhendo será melhor para todos os brasileiros. Seus compromissos são outros.

Neste cenário, qual o destino de programas como o Mais Médicos?

Trata-se de um programa que chegou a ter mais de 18 mil profissionais incorporados, com uma cobertura de 62 milhões de brasileiros sob sua mirada. Além do impacto que produziu na melhoria do cuidado na extensa rede básica espalhada pelo país, e sua ampla aceitação junto a população brasileira em geral. Apesar da oposição que recebeu dos setores mais conservadores, inclusive de uma parte da categoria médica e do atual ministro da saúde, se impôs como uma medida de grande impacto no campo da saúde. É uma das políticas setoriais do SUS que deveria ser mantida por qualquer governo nacional, independente de seu colorido ideológico. Vários organismos internacionais o indicam como um exemplo de política pública de saúde.

O Governo Temer sustenta que o programa traz mais gastos que benefícios.

O governo Temer, desde o primeiro momento, vem defendendo a ideia, com apoio dos setores sociais mais elitistas e contra a defesa radical da vida de qualquer um, de que o programa é um grande gasto e como tal deve ser cortado para melhorar as contas públicas. Ao contrário, os organismos internacionais dizem que o Brasil construiu um programa de grande capacidade, que não pode ser visto como gasto. A diminuição do número de médicos, o atraso nos repasses para pagamento dos salários dos profissionais envolvidos, a eliminação de vários incentivos para que os próprios brasileiros aceitassem participar do programa, são sinais que mostram que esse programa está condenado a extinção e que isso só não ocorreu ainda pelo seu alto grau de expansão e de aceitação social.

Os planos de saúde trabalham com a ideia de que a saúde é um problema individual e um bem de mercado, nunca um bem social e, portanto, um direito dos indivíduos.

É um cenário lastimável para as políticas públicas de saúde.

Não são bons os ares para essas politicas em um governo que enxerga as leis trabalhistas como ameaça e não como conquista. Imagine um programa que visa os grupos sociais que vivem em maior vulnerabilidade social, idealizado para que estes possam alargar a qualidade do seu viver – o que só por uma questão de justiça social já seria legítimo – relegado ao descaso. De novo: o foco do governo Temer não é esse. Seus compromissos são outro e com outros.

O que pensa da proposta de criação de planos de saúde populares?

Não é o fato de ser popular e de preço mais baixo para ser “mais comprável” que o faz um problema, a priori. Os planos de saúde em si, mesmo os mais caros, só conseguem se provar como mecanismos de acesso a certos cuidados especializados, mas não geram mais cuidado por isso. Ao contrário, sabemos que os graves problemas de saúde, que necessitam de medidas de alto custo, acabam sendo drenados para a rede do SUS, que arca com o cuidado e os gastos, isentando as empresas privadas que oferecem planos de saúde, ampliando seus ganhos com a saúde e a doença. Outra questão é que os planos trabalham com a ideia de que a saúde é um problema individual e um bem de mercado, nunca um bem social e, portanto, um direito dos indivíduos e dos coletivos. Não há como desvincular o cuidado individual do coletivo, e isso não é objeto dos planos de saúde.

Paga-se pouco por menos saúde ainda…

Exato. Vale destacar que, em regra, os planos de saúde não garantem acesso universal aos cuidados e muito menos o cuidado permanente. Falam em promoção e prevenção da saúde dos indivíduos, mas isso é puro marketing. Se isso vale para qualquer plano de saúde, ou seja, para o mercado de saúde que visa o comércio e não o cuidado, imagine para os planos de baixo custo, que só contratualizam alguns procedimentos. No Brasil, muitos preferem ser consumidores de saúde ao invés de cidadãos atendidos pela saúde. Aliás, este é um dos motivos da inoperância dos movimentos sociais em defesa do SUS. Aí a Rede Globo tem tido verdadeiras vitórias, dizendo todo dia para as pessoas que o que é público não presta, o que é privado presta e só o mercado salva. Esse engodo cotidiano vem criando imaginários sociais que tornam difícil a defesa ampla que o SUS necessita. O brasileiro se vê pouco como cidadão portador e criador de direitos.

Na disputa entre a saúde pública e saúde suplementar quem sai perdendo?

Nesse momento, por tudo que já apontei, será a saúde pública, ou seja, todos nós.

Há futuro para o SUS?

Enquanto os coletivos sociais tiverem como eixo que a saúde é um direito social, é um bem público e não um bem de mercado, que se compra, além de um patrimônio coletivo, e lutarem por isso, o SUS sempre será presente e sempre será uma luz nos túneis.


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