26/04/2024 - Edição 540

Camaleoa

Valesca Popozuda e um passado recente chamado Xuxa

Publicado em 17/04/2014 12:00 - Cristina Livramento

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

Todas as épocas são iguais a todas as épocas,

cada época é uma coisa, mas é a mesma coisa

porque tudo é tudo e nada é nada

Tim Maia

 

Desde quando a questão da prova do professor de filosofia Antônio Kubitschek, do Centro de Ensino Médio 3, de Taguatinga, cidade-satélite de Brasília, foi divulgada, Valesca Popozuda tem sido massacrada. Foi instalado um asco geral relacionado ao assunto e aos envolvidos. E pensando no que escrever para a coluna, sobre esta polêmica, lembrei da Xuxa, a imortal Rainha dos Baixinhos.

Valesca, que não esconde de ninguém de onde veio e o que é, acendeu a ira dos intelectuais e defensores da moral e dos bons costumes. Xuxa, que já fez filme pornô, posou nua várias vezes e permaneceu como símbolo sexual durante décadas em um programa infantil, no maior canal de tevê aberta, nunca foi execrada com o mesmo empenho. Acho pertinente recordarmos o nosso passado recente.

E antes de entrar na questão que realmente me interessa, quero deixar bem claro que, tanto o passado de Xuxa quanto o conteúdo e formato do trabalho de Valesca não fazem a menor diferença na minha vida. São mulheres que optaram pela vida pública, cada uma conquistou isso da maneira que lhe coube e me parece que ambas são felizes. Xuxa esqueceu suas raízes, deletou o próprio passado e tem obrigado o resto da sociedade, inclusive a própria imprensa, a não falar mais sobre ele. Seria lindo se após toda a sua trajetória, ela tivesse se realizado como apresentadora de programa infantil e não tivesse usado "a infância" para dar continuidade a sua autopromoção de símbolo sexual, não mais dos leitores de revistas masculinas, nem fãs do futebol, mas sobre seus doces e ingênuos "baixinhos".

Mais importante do que falar sobre o passado de Xuxa ou o tamanho da bunda de Valesca, é pensar escola pública, periferia, adolescentes, o significado de ser pai e mãe e a nossa capacidade de correlacionar informações e construir um pensamento sobre o contemporâneo.

Muito mais importante do que falar sobre o passado de Xuxa ou o tamanho da bunda ou as letras de Valesca, a polêmica sobre a questão da prova deveria levar a questões muito mais gritantes como escola pública, periferia, adolescentes, o significado de ser pai e mãe e a nossa capacidade individual de correlacionar informações e construir um pensamento sobre o contemporâneo. Mas não, a gente gosta mesmo é dum vuco-vuco, de puxão de cabelo e gritaria. Somos seres pensantes, o que nos diferencia dos animais, mas o barato parece que consiste em conseguir aniquilar cada vez mais esse diferencial, o pensar.

Quando minha filha era pequena e estudava em escola particular, ela ia para festas de aniversário e a trilha eram as músicas da banda É o Tchan. Sinto em não ter nenhuma foto que registre uma festa dessas com várias crianças de 5, 7 anos dançando Na boquinha da garrafa. E é claro com a aprovação e incentivo dos pais, com risos e aplausos. Isso podia, mas Valesca é diferente.

Eu sou da geração da Xuxa. Quantas e quantas vezes, por causa dos desenhos, assisti ao programa no qual o símbolo de beleza ideal, num país onde a maioria é morena e de cabelo enrolado, era uma mulher loira, fazendo voz de ninfeta, com figurino de ensaio de revista masculina? Quantas gerações foram expostas a esse padrão social? As roupas que Xuxa usava nos programas infantis, na década de 80 e 90, eram nada apropriadas para um programa infantil. Mas isso é uma coisa, Valesca é totalmente diferente.

Intelectuais e a própria imprensa, com suas devidas exceções, massacraram Valesca como se ela fosse um nada. Bem, se pensarmos que ela representa a periferia (ou uma parte dela, se você preferir) então talvez ela seja mesmo um nada. Porque a gente sabe, há bastante tempo, que a periferia é tratada como um nada por quase toda a sociedade.

Mas nem eu, nem minha filha que aprendeu mais tarde, dentro da escola particular, coreografias do Latino, Lacraia e tantas outras, reproduzimos a imagem que víamos por aí, nem funkeira, nem dissimulada ou qualquer outro adjetivo usado para se referir às mulheres que usam o próprio corpo para garantir o arroz, o feijão e outras regalias mais.

Quando leio ou ouço alguém dizer sobre o “exemplo” que Valesca dá para as crianças, a preocupação me soa bem hipócrita. Nenhum artista deve dar exemplo e nenhuma criança deveria ser refém do que vê na televisão ou ouve no rádio. Se estamos falando de uma criança, entende-se que ela tenha um responsável (ou dois responsáveis) por ela e, veja só, responsáveis pela educação desse indivíduo. Muito mais do que obrigar este indivíduo a decorar o que aprende na escola para passar de ano, esses responsáveis têm a obrigação de orientar esse ser humano a pensar o mundo em que ele vive e a aprender a fazer suas próprias escolhas. Mas é claro, isso é uma coisa, a Valesca é completamente diferente.

Alguém pode dizer, ah, mas tem um monte de criança sem pai nem mãe jogada nesse mundo afora. Mas esse monte de criança a que você se refere é responsabilidade minha e sua e também representa a periferia que é considerada um nada por nós, sociedade. Periferia, escola pública, Valesca, funk, tanto faz o nome que você queira dar, é o marginal e o marginal não tem valor algum. Está lá longe da gente e sempre inventamos novas maneiras de mantermos ele bem, mas bem longe da nossa vida limpa, correta e honesta. Não é verdade?

Valesca Popozuda é a representação do seu meio. Não faz a menor diferença se você gosta dela ou não. Valesca, no quesito originalidade, é mais autêntica do que Xuxa. Valesca é o que é, a voz da periferia, ela canta o mundo no qual cresceu. Você não gosta dela? Não ouça. Não quer ver a cara dela na televisão? Não veja. Mas rechaçar a moça e o funk é rechaçar pela milésima vez, a manifestação popular e o direito de cada um de ser o que é.

Um animal se sente fome, ele avança, mesmo que seja sobre uma criança de dois anos. Um animal irracional se está no cio, ele acasala, e não pensa em mais nada. Parece tão óbvio, mas eu e você, apesar de sermos diferentes dos animais, agimos da mesma forma. Assistimos aos eventos da história da humanidade e reagimos a cada um deles da mesma maneira, como se fôssemos bicho.

Links relacionados

Jimmy “Bo” Horne

Para meu amigo Fernando Savaglia e à memória do verdadeiro funk

Leia outros artigos da coluna: Camaleoa

Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *