28/03/2024 - Edição 540

Artigo da Semana

Blindagem à tortura

Publicado em 02/03/2017 12:00 -

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

"Se não estivesse roubando não estava apanhando… não que eu ache que tenha que bater." A frase dita por promotor de Justiça durante audiência de custódia a uma pessoa presa e algemada que relatava ter sido vítima de tortura pode resumir, de maneira trágica, como o sistema local está longe de atuar em alinhamento ao postulado constitucional da dignidade da pessoa humana.

A Convenção Americana de Direitos Humanos, ratificada pelo Brasil em 1992, determina que "toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz". Como resultado de esforço do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), as audiências de custódia começaram a ser implantadas de forma pioneira em São Paulo, em 2015.

Em um país com mais de 40% de presos à espera de julgamento, essas audiências são uma importante ferramenta para prevenir detenções ilegais e/ou desnecessárias e contribuir para aliviar o superlotado sistema carcerário.

Mas outra função dessas audiências é igualmente fundamental: a de identificar e investigar a tortura e maus-tratos perpetrados por agentes policiais no momento da prisão em flagrante. Nesse aspecto, pesquisa realizada pela ONG Conectas Direitos Humanos mostra que parte dos atores do sistema de Justiça falha no cumprimento de seu dever ao naturalizar e blindar as ações ilegais da polícia.

Após observar centenas de audiências de custódia no Fórum Criminal da Barra Funda, identificamos 393 casos de pessoas presas com indícios de terem sido vítimas de tortura ou maus-tratos.

Após observar centenas de audiências de custódia no Fórum Criminal da Barra Funda, a ONG Conectas identificou 393 casos de pessoas presas com indícios de terem sido vítimas de tortura ou maus-tratos.

Em cerca de 80% dos casos em que houve relato do preso denunciando violência durante a audiência, o Ministério Público – constitucionalmente obrigado a exercer o controle da atividade policial – não fez qualquer tipo de pergunta para apurar os fatos. Quando fez algum questionamento nesse sentido, em mais da metade das vezes foi para deslegitimar o testemunho.

No caso dos juízes, em um terço das vezes eles não questionaram os custodiados sobre a ocorrência de violência, violando expressamente recomendação 49/2014 do CNJ.

Nas ocasiões em que os magistrados decidiram pedir apurações, o estudo encontrou falhas procedimentais: muitos relatos de violência, incluindo as informações sobre as vítimas, foram encaminhados para os batalhões dos policiais suspeitos, podendo colocar em risco a vida das pessoas que fizeram as denúncias. Dos quase 400 casos identificados na pesquisa, apenas um resultou em abertura de inquérito.

Sem deixar de reconhecer os esforços de várias autoridades locais para a implementação das audiências, reafirmamos a urgência de determinar mudanças importantes, por parte da Procuradoria Geral de Justiça e da Corregedoria do Tribunal de Justiça, para a prevenção e o combate à tortura.

A inadequada absorção dos relatos de tortura e maus-tratos e a burocrática investigação, quando existente, acabam servindo para legitimar a conduta ilegal de policiais nas ruas, comportamento tão grave quanto a própria violência em si.

Juana Kweitel – Mestre em direito internacional dos direitos humanos pela Essex University (Reino Unido), é diretora-executiva da ONG Conectas

Rafael Custódio – Advogado, é coordenador de Justiça da ONG Conectas


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *