19/04/2024 - Edição 540

Especial

Farra em Brasília

Publicado em 01/03/2017 12:00 -

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Os deputados federais e senadores brasileiros ganham as melhores remunerações entre seus pares da América Latina. O salário de deputado é de R$ 33.763 por mês, cifra que quase triplica quando são somados os cerca de R$ 50 mil reais que recebem a título de auxílio-moradia, passagens e ajuda de custo. Além disso, eles têm direito a cinco voos mensais e R$ 97.116 para pagar até 25 funcionários de gabinete.

No caso dos senadores, além do salário, eles recebem mais de R$ 69 mil para o apoio de atividades parlamentares. Os senadores brasileiros também recebem R$ 159 mil como verba de gabinete para pagar até 55 servidores. Hoje, no Brasil, o salário mínimo é de R$ 937.

Ainda assim, mesmo diante deste montanha de recursos, nossos nobres representantes não se furtam de usar com gosto o artifício do ressarcimento. Apresentando notas fiscais de despesas extras em valores de R$ 1 a R$ 184,5 mil, parlamentares foram ressarcidos em R$ 235 milhões em 2016, o equivalente a pagar o salário dos 81 senadores por sete anos.

O deputado Afonso Motta (PDT-RS), por exemplo, não abriu mão nem mesmo de ser ressarcido pela compra de dois pãezinhos de queijo. Mas o cupom fiscal de R$ 1 não é a única curiosidade na utilização do cotão.

A deputada Luciana Santos (PCdoB-PE) pediu ressarcimento de 604 abastecimentos feitos por seu gabinete ao longo de 2016, uma média de 1,65 abastecimentos por dia, já considerando feriados e finais de semana.

Diego Garcia, deputado federal do PHS pelo Paraná, que foi ressarcido em R$ 497 mil no ano passado, apresentou à Casa nada menos que 2.284 notas, uma média superior a seis notas a cada um dos 365 dias do ano.

A empresa que mais vendeu passagens aéreas a senadores em 2016 não foi uma empresa de aviação, e sim uma de turismo. Tendo faturado R$ 1,33 milhão, a Adria Viagens e Turismo, sediada em Brasília, emitiu 1.578 notas fiscais a um terço do total de senadores, uma média superior à emissão de quatro passagens por dia útil ou não.

O dinheiro é proveniente do Cotão, recurso público disponibilizado mensalmente aos parlamentares para bancar despesas inerentes ao trabalho político. Há regras e tetos em ambas as casas para a utilização desse dinheiro em mais de uma dezena de rubricas, que variam de locação de avião, barcos e imóveis até o pagamento de táxis e pedágios.

Presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) diz não concordar com a existência da verba indenizatória, que chama de “distorção”. Para ele é preciso acabar gradativamente com este recurso financeiro. Compartilhando da mesma opinião, o senador Reguffe (S.Part-DF), que jamais utilizou dinheiro da verba indenizatória, pede a sua extinção em seu Projeto de Resolução do Senado (PRS) Nº47/2015, que aguarda relatoria na CCJ desde 2015.

Em fevereiro, o deputado Carlos Marun (PMDB-MS) teve que devolver R$ 1.242,62 à Câmara, dinheiro que gastou para fazer uma ‘visita natalina’ ao amigo Eduardo Cunha (PMDB/RJ) na prisão da Lava Jato. O dinheiro foi usado por Marun para se deslocar a Curitiba e se hospedar na capital paranaense, onde o amigo está preso por ordem do juiz federal Sérgio Moro. O parlamentar pagou as passagens e a hospedagem com verba da cota para exercício da atividade parlamentar. Recurso que só pode ser usado para cobrir despesas efetivamente relacionadas ao mandato. Marun alegou que sua visita a Cunha não teve intuito político: “Foi apenas uma visita natalina”, disse

Despesas as mais esdrúxulas

A Operação Serenata de Amor – um projeto de tecnologia que usa inteligência artificial para auditar contas públicas e combater a corrupção (veja em detalhes mais abaixo) – listou os pedidos de reembolsos mais inexplicáveis do biênio 2015-2016.

Entre as situações mais constrangedoras, destaque para deputados federais que fizeram pedido de reembolso de alimentações feitas no Brasil enquanto estavam em viagens oficiais no exterior. Foi o caso de Hiran Gonçalves (PP-RR) e de Vinicius Carvalho (PRB-SP).

De acordo com informações da Operação Serenata de Amor, Hiran pediu reembolso de R$ 85,08 por alimentação no Hajime Japanese Food, em 16 de setembro de 2015, em Brasília. À época, o parlamentar estava em missão oficial na Europa, em Barcelona, na Espanha, e em Londres, na Inglaterra.

Já Vinicius solicitou ressarcimento de R$ 55,09 por refeição na lanchonete do Senac, no Congresso, em 8 de junho de 2016. Naquele dia, o deputado estava em missão oficial em Genebra, na Suíça.

Outros parlamentares pecaram ao pedir reembolso por alimentação enquanto estavam participando de sessões deliberativas ou discursavam no plenário do Congresso.

O deputado Gonzaga Patriota (PSB-PE) solicitou o reembolso de dois almoços no restaurante Geraldo Bode Assado, em Petrolina, Pernambuco. As refeições aconteceram nos dias 15 e 16 de abril do ano passado. Os valores a serem reembolsados são R$ 84 e R$ 89.

No mesmo sentido, Marcos Rogério (DEM-RO) pediu para ser ressarcido por dois pagamentos feitos na Churrascaria Locatelli, em Ji-Paraná, em Rondônia. O deputado solicitou o reembolso por duas contas pagas em 23 de novembro de 2016. O intervalo entre os dois pagamentos (de R$ 67,99 e de R$ 53,99) foi de um minuto.

Outro lado da história

A Adria Viagens e Turismo disse que foi escolhida por 27 senadores (nenhum deputado a escolheu) graças aos serviços prestados 24h por dia, mas destaca que parlamentares não representam sua maior fonte de faturamento.

O deputado Diego Garcia disse que a quantidade de notas apresentadas está relacionada diretamente a gastos com a locomoção dele e de sua equipe pelo estado para o exercício de seu mandato, inclusive em táxis. “Percorro mensalmente milhares de quilômetros pelo Estado; minha vida é praticamente ‘na estrada’”, diz o parlamentar.

A deputada Luciana Santos disse que os gastos com abastecimentos estão dentro do que é estabelecido como limite pela Câmara e que utiliza o combustível para exercer seu mandato.

A assessoria de Afonso Motta diz que é prerrogativa do parlamentar pedir ressarcimentos de despesas com sua alimentação e que seria estranho se tivesse pedido o ressarcimento pela compra de cinquenta pãezinhos de queijo, não de dois.

De acordo com João Batista, chefe de gabinete de Vinicius Carvalho, a nota fiscal foi incluída nos pedidos de reembolso por engano. O dinheiro já foi devolvido para a Câmara. “Eu cometi um equívoco ao entregar várias notas fiscais para a secretária cadastrar no sistema. E essa do restaurante do Senac foi colocada por engano. Essa despesa é minha, de minha responsabilidade. Não houve má-fé”, disse Batista.

Gonzaga disse que o que pode ter acontecido é que “seu motorista tenha ido pagar nesses dias alguma conta que ele tenha deixado em aberto durante o final de semana”. O parlamentar pediu desculpas pela confusão, mas reforçou que não abusou do direito de reembolso em nenhum momento de seu mandato.

As assessorais de Hiran Gonçalves e Marcos Rogério não se posicionaram.

O robô Rosie e a Serenata de Amor

Um robô criado por um grupo de oito jovens para monitorar gastos públicos conseguiu descobrir, em apenas três meses, mais de 3.500 casos suspeitos envolvendo o uso da cota parlamentar por deputados federais desde 2011. Apelidada de Rosie – em referência a faxineira-robô do desenho “Os Jetsons -, a ferramenta faz uma varredura nas milhares de notas fiscais emitidas pelos parlamentares para identificar se os gastos foram legítimos, ilegais ou superfaturados.

Rosie já encontrou, por exemplo, um pedido de reembolso de cervejas compradas por um deputado em um restaurante nos Estados Unidos, mesmo sendo proibido usar dinheiro público para comprar bebida alcoólica. Muitas anomalias foram encontradas também no valor das refeições. Ainda que as despesas sejam autorizadas unicamente para os parlamentares, a ferramenta detectou notas fiscais de dezenas de pizzas em um mesmo dia, um almoço de 12 kg em um self-service a até um pedido de reembolso de quase R$ 1.500, este lá no restaurante onde Gonzaga Patriota degustou seu bode assado.

Cruzando informações de bancos de dados públicos, como o da Câmara e o da Receita Federal, a ferramenta também identificou notas de refeições em cidades muito distantes em um curto espaço de tempo.

“Explicamos ao robô, a essa inteligência artificial, o que é um gasto e o que seria suspeito nele. Uma nota de 400 reais em uma padaria, por exemplo, é um valor muito alto e provavelmente ilegal. Mas, se for de um restaurante do chef Alex Atala, não é ilegal, ele é apenas alto e um absurdo para um gasto público”, diz o jornalista Pedro Vilanova, de 23 anos, um dos integrantes do grupo desenvolvedor do software, que defende que a Câmara imponha um limite para as despesas com alimentação dos parlamentares.

Após a varredura de Rosie, 849 casos foram auditados pelo grupo e destes, 629 foram denunciados à Câmara dos Deputados pelos jovens no próprio site do Legislativo no início do ano. As denúncias questionam, no total, cerca de 378.000 reais pagos com dinheiro público por 216 deputados. O projeto realizado pelo grupo recebeu o nome de Operação Serenata de Amor, em referência a um escândalo ocorrido nos anos 90 na Suécia, conhecido como “Caso Toblerone”, em que a então vice-ministra sueca perdeu o cargo por ter usado dinheiro público com gastos pessoais.

Devolução do dinheiro público

As descobertas de Rosie ainda não fizeram nenhum deputado perder o posto, mas já obrigaram alguns parlamentares a devolverem o dinheiro usado de forma irregular. “Em novembro, resolvemos testar o sistema e denunciamos 43 casos de irregularidade. Desses, já recebemos algumas respostas da Câmara e a decisão de nove devoluções”, conta Vilanova.

O primeiro caso de devolução após as denúncias do grupo foi do deputado federal Celso Maldaner (PMDB-SC) que teve que devolver R$ 727,78, referentes a 13 refeições feitas no mesmo dia e pagas com dinheiro público. Segundo a assessoria, o motorista do deputado cometeu um equívoco por ter colocado as notas no nome do político.

Uma devolução partiu também do deputado Odelmo Leão (PP -MG), eleito prefeito de Uberlândia. Ele gastou R$ 190,05 da cota parlamentar (ajuda de custo dada aos políticos que tem de ser justificadas com notas fiscais) com o envio de correspondência da sua campanha eleitoral à prefeitura. Após a denúncia, o deputado teve que pagar ao Fundo Rotativo da Câmara dos Deputados o valor gasto de forma ilegal, já que não são permitidos gastos de caráter eleitoral com dinheiro público.

Outro deputado que já devolveu o valor de um reembolso pedido na cota parlamentar foi Vitor Lippi (PSDB- SP). O tucano pediu o reembolso de R$ 135,15 correspondentes a cinco cervejas durante uma viagem aos Estados Unidos. Quando alertado da irregularidade, ele restituiu o valor à Câmara, e a assessora do deputado pediu desculpas em email enviado à Câmara. “Aproveito para assumir a responsabilidade pelo erro cometido, é de praxe dessa assessoria pedir a glosa de itens não autorizados de ressarcimento, tais como bebidas alcoólicas, mas infelizmente dessa vez não identifiquei o produto, já que estava em outra língua”, afirmou Sirlene Silva, assessora de Lippi, que lamentou ainda o transtorno causado.

O robô encontrou também uma fraude em uma série de três reembolsos do deputado Wherles Rocha (PSDB-AC) em um mesmo dia. Duas notas foram emitidas na capital do Acre, Rio Branco, e a outra, a 4.000 km, em Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul. Após a denúncia, o deputado afirmou que na data se encontrava na cidade gaúcha e que a nota do Acre referia-se a uma despesa feita na semana anterior. Ainda segundo o tucano, como estava com pressa em Rio Branco, ele pediu para pagar outro dia e por isso um assessor só conseguiu quitar a dívida no estabelecimento e emitir a nota quando ele estava no sul do país. Mesmo explicando a coincidência dos dias, a Câmara constatou que a Nota Fiscal já encontrava com prazo de validade expirado e por isso o deputado teve que devolver R$ 148.

No fim do ano, o deputado Marco Maia (PT-RS), também teve que devolver dinheiro à Câmara, já que no meio do ano passado emitiu uma nota de R$ 154,50 pedindo o ressarcimento de duas refeições em um mesmo local, o que é proibido. Em dezembro, ele teve que restituir R$ 77,25 referentes a um almoço adicional.

A Operação Serenata de Amor pretende continuar passando um pente-fino nas contas do Governo. Para custear a investigação inicial das despesas da Cota de Atividade Parlamentar, eles recorreram a um financiamento coletivo e conseguiram arrecadar R$ 80 mil. “Entregamos o que prometemos, entregamos a Rosie. Mas agora queremos aprimorar ainda mais o robô para que os dados sejam ainda mais precisos. Vamos lançar um novo financiamento coletivo”, explica Vilanova. Para ele, a varredura de dados precisa alçar novos voos e não ficar presa apenas a cota parlamentar. “O programa e a operação podem ser replicado a outras esferas, como o Senado e empresas, por exemplo”, explica.


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