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Artigo da Semana

Movimento negro corre risco de virar caricatura

Publicado em 16/02/2017 12:00 -

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Faz mais ou menos um ano, estava na feirinha do Lavradio, no centro do Rio, e uma designer negra vendia brincos de sua fabricação com o desenho de rostos femininos com black power. Eram lindos e eu fiquei encantada por mais de um modelo. Quando já escolhia um para levar, veio o diabinho na orelha e falou que possivelmente eu queimaria no inferno da opinião alheia. Onde já se viu uma branca, usando a imagem de uma negra pendurada na orelha para dar uma de fashion?

Fui embora, deixando a artista sem entender a minha desistência diante do entusiasmo com que eu havia acabado de demonstrar pelas peças. Abri mão da compra por medo, por cagaço de ser perseguida pela patrulha, e achando que estava fazendo algo muito importante para contribuir para a valorização dos negros, seus movimentos e suas lutas. Sério? Por que deixei de usar um brinco com a imagem de uma negra?

Essa lembrança me ocorreu nos últimos dias quando o assunto apropriação cultural veio à tona porque uma jovem branca, que usava um turbante por causa de um câncer, foi abordada por uma negra que disse que ela não deveria usar a tal indumentária. Pronto. Pense no bate-boca na internet.

Obviamente, de um ano para cá percebi a armadilha que caí ao dar ouvidos e importância a uma ideia que não faz o menor sentido. Falar em apropriação cultural num mundo cada vez mais globalizado, em que as pessoas clamam por igualdade, não tem nada de ingênuo, é oportunista mesmo.

Fico com Oswald de Andrade: só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.

Patrulhar o que os brancos vestem, comem ou cantam não resolverá o problema crítico de desigualdade no Brasil, a quantidade de negros mortos pela polícia, o desequilíbrio da presença nas universidades, em cargos de chefia, a representatividade política.

Patrulhar o que os brancos vestem, comem ou cantam não resolverá o problema crítico de desigualdade no Brasil, a quantidade de negros mortos pela polícia, o desequilíbrio da presença nas universidades, em cargos de chefia, a representatividade política. O Brasil é um país racista. Mas não deixaremos de ser apenas porque de agora em diante um grupo pequeno de pessoas decidiu que branco não pode usar turbante, dreadlocks, ser sambista.

Vocês acharam exagero a treta por causa do turbante? Tem ativista negro que acha absurdo que brancos ganhem dinheiro com o samba "enquanto negros talentosos morrem de fome". Tem disso. Negros, segundo o que li em alguns blogs, não podem se relacionar com brancas. São chamados de "palmiteiros". Há páginas na internet que só existem para fazer chacota de negros famosos e suas mulheres "branquelas". Tem disso também. Se isso não é preconceito e intolerância, não sei o que é. Imagine se fosse o contrário.

Mas o problema é branco usando turbante.

A própria discussão sobre apropriação cultural é uma apropriação de debates em universidade americanas, que acabaram se espalhando pelo mundo. Sério que os negros daqui precisam se apropriar da problematização dos negros de lá?

Uma das coisas que chamou atenção foram as acusações de que a história da branca com turbante tenha sido inventada. Exatamente o que fazem quando uma mulher conta que foi estuprada. "Nossa, essa história está muito estranha." A vítima transformada em culpada na mesma hora. Ora essa.

É claro que o relato pode ser apenas uma fanfic dessa geração tombamento-lacração, mas a repercussão dela apenas mostra a fragilidade de algumas causas que os movimentos tomam para si. Este episódio, por exemplo, só serviu para virar piada entre pessoas que concordam com tudo que os movimentos negros denunciam e reivindicam, mas jamais levarão a sério a ideia de que um grupo pode decidir quem está credenciado a usar uma peça de roupa ou um penteado no cabelo. Só deu munição a gente de fato racista, que acha que programas sociais são privilégio e não necessidade.

Movimentos sociais só têm efeito se criam empatia e se conscientizam. O que temos visto são grupos ou indivíduos que sequestraram a fala de milhões para dizer o que é certo ou errado, e nem sempre representam a maioria. Vemos isso no feminismo também. O resultado é gente pregando para doutrinado, lacrando em páginas do Facebook (devidamente fechadas para comentários contrários, claro), afastando das questões que realmente importam uma massa descomunal de gente, erguendo muros instransponíveis entre pessoas e ideias, transformando o ideal da igualdade numa caricatura.

Enquanto isso, negros continuam sem acesso ao ensino superior, lotando presídios ou covas no cemitério. Enquanto isso, discutimos se branco pode usar turbante, se pode ser sambista, se negro pode casar com branca.

Mariliz Pereira Jorge – Jornalista e roteirista


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