29/03/2024 - Edição 540

Meia Pala Bas

O marketing do tronco

Publicado em 24/11/2017 12:00 - Rodrigo Amém

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De todas as péssimas colocações que o Brasil conquistou no cenário mundial, talvez a mais constrangedora (e por isso mesmo, menos lembrada) tem a ver com a abolição da escravatura. Na verdade, com a data da abolição. Fomos o último país do mundo a declarar oficialmente que seres humanos não podem ser escravizados.

Mesmo entre quem não espera arroubos de inovação progressista deste gigante adormecido, esse atraso histórico causa incômodo. Por que ficamos tanto tempo na contramão da história?

É uma pergunta complicada. E é quase irresistível apelar para os clichês e reducionismos característicos de quem gosta de botar panos quentes nas mazelas da nossa narrativa histórica. “É que o povo brasileiro tem uma índole comodista”, ou “Na prática, só faltava assinar a Lei Áurea. Quase ninguém mais tinha escravos na época”. Tudo mentira? Não necessariamente.

Tem sim, algo na índole do brasileiro que manteve o pé no freio da abolição por mais tempo do que qualquer outra nação. Mas não é nossa indolência. O segredo do sucesso escravocrata tupiniquim está (onde mais?) no absurdo pragmatismo da nossa elite.

O brasileiro da alta roda é mistura de ninja, sociopata e marqueteiro. Para não ceder seu lugar à mesa (ou para não colocar mais cadeiras no banquete), nossa elite aposta no marketing. Aprendemos com Dom João VI, que fez rebranding o Império para o Brasil para fugir de Napoleão. E não esquecemos mais.

E foi esse jogo de cintura que garantiu a sobrevida dos escravocratas em nosso solo. Mais do que em qualquer outro país, nossos senhores de engenho vigiavam seus escravos de perto. E as escravas, mais de perto ainda. E essa proximidade era recompensada com migalhas e sutis privilégios. O bastante para que os demais habitantes da senzala notassem que a submissão oferecia vantagens. Quanto mais cooperassem, menos sofrida (e breve) seria a vida. Surgiram as aias, os mucamos, as amas de leite.

De rebranding em rebranding, o senhor de engenho virou coronel, que virou latifundiário, que virou deputado. E o escravo virou servo, funcionário, curral eleitoral.

Quando as fugas viraram problema, a elite lançou uma “campanha de marketing”. Criou as figuras do bom e do mau escravo. O negro fujão. E seduziu quem não tinha liberdade com a sensação de autoridade. Surgiram os capitães do mato, que usavam seu conhecimento da população da senzala para caçar e negros em fuga. Os capitães do mato eram famosos pela sua crueldade. Vistos como traidores entre os negros, acreditavam-se como mantenedores da lei e ordem, a serviço da sociedade, ainda que vivendo à margem dela.

Esses “capitães” formaram grupos. Verdadeiras milícias que, na falta de fugitivos, sequestravam escravos e os entregavam aos seus respectivos senhores já devidamente castigados, em troca de recompensas. O reino de terror dos capitães levou a uma falsa sensação de segurança. Ruim na senzala, pior fora dela. Uma situação de opressão que atrasaria a abolição em algumas décadas.

De rebranding em rebranding, o senhor de engenho virou coronel, que virou latifundiário, que virou deputado. E o escravo virou servo, funcionário, curral eleitoral.

A cada case de sucesso, a nossa elite se reacomoda no comando. Sempre reinventando promessas e sonhos, mas mantendo o mesmo discurso: você não é um de nós. Mas, se jogar o jogo com as nossas regras, terá a chance de sentir-se superior a um dos seus. É isso ou o tronco. E nunca faltam candidatos.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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