26/04/2024 - Edição 540

True Colors

A imagem que se faz dos gays é altamente caricatural e distorcida

Publicado em 09/12/2016 12:00 - Simone Rodrigues

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Quando comecei a conceber o projeto "Nomes do Amor", não imaginei aonde ele iria me levar. Afinal, não foi a militância política da defesa dos direitos das minorias LGBT que me fez recorrer à fotografia como instrumento tático. Na verdade, ocorreu o inverso: foi uma questão eminentemente pessoal e visual que me conduziu à esfera política.

A ideia de fazer "Nomes do Amor" nasceu de um incômodo, da percepção da discrepância entre a realidade da vida e a imagem que a maior parte da sociedade brasileira ainda faz dos gays.

Eu queria denunciar os estereótipos e clichês que circulam na mídia e que só fazem alimentar a ignorância e o preconceito. Como artista visual, era importante para mim encontrar as referências de uma experiência que eu conhecia na prática e que, percebia nitidamente, estava muito mal representada no imaginário coletivo.

Imagem de repressão

A primeira coisa que podemos constatar quando analisamos essas representações correntes é que a imagem que se faz dos gays é altamente caricatural e distorcida. Está invariavelmente associada à exploração da sensualidade, à sexualização exacerbada, à reificação do corpo (perfeito ou abjeto) e, em qualquer dos casos, ora para usá-las como objeto de consumo erótico, ora para condená-las como imoralidades pecaminosas.

É como se o gay ainda fosse aquela figura marginal, aquele personagem delinquente, promíscuo, construído pelas práticas históricas da repressão.

Oscar Wilde

É nesse sentido que "Nomes do Amor- o amor que ousa dizer seu nome" presta homenagem e evoca a memória de Oscar Wilde, artista que pagou com a trágica perda da reputação de uma das mais brilhantes carreiras da história da literatura e do teatro (e ao final, com a própria vida) o preço do "amor que não ousa dizer seu nome". Essa frase, originalmente o verso de um poema escrito por seu tempestuoso amante, Bosie, foi imortalizada em seu discurso diante do tribunal de justiça que o condenou por seus “atos imorais” na Inglaterra Vitoriana do final do século XIX.

Em pleno século XXI, com todas as transformações sociais e culturais pelas quais o mundo vem passando, como podemos aceitar que essa visão anacrônica ainda predomine? Sabemos que as mentalidades mudam mais lentamente que as estruturas materiais, mas uma representação mais realista e atual da população LGBT tornou-se urgente.

Gays, lésbicas e trans

Foi em 2013 que o desejo de fazer retratos de pessoas gays, lésbicas e trans que estivessem vivendo em relações estáveis me ocorreu pela primeira vez. Para começar a construir uma galeria de retratos dos sujeitos que compõem a grande diversidade dos tipos de casais e famílias homoafetivos, propus fazer uma releitura do retrato tradicional de família. Fiz uma opção estética muito clara pelo retrato posado, nada de fingir que se tratava de um retrato espontâneo.

Afinal, nós estávamos assumindo uma posição, decidindo corajosamente mostrar a cara, como quem responde “presente” ao ouvir seu nome na lista de chamada. Isso implicava demonstrar consciência da importância de tal fato, do ato de se dispor a estar ali. Implicava também certa sobriedade da pose, o olhar dentro da lente, uma comunicação direta com o público.

Fotografia clássica

Essa estética da pose, que vai contra a do instantâneo, remete à fotografia clássica de família (que é, certamente, um dos primeiros produtos culturais gerados pela fotografia em seu processo de democratização do retrato, ainda no século XIX, associado à construção da identidade burguesa e à memória da família patriarcal).

"Se assumir gay"

Tão eloquentes quanto as imagens são os depoimentos que acompanham os retratos de cada casal: sínteses das conversas que tivemos em torno das experiências de se assumir gay (para si mesmo, para a família, para a sociedade), de assumir o compromisso de uma união, de formalizá-la, ou não, oficialmente, de eventualmente fazer planos de ter filhos (caminhos possíveis entre a adoção e a reprodução assistida).

Longe de pretender “enquadrar” os LGBT nos padrões sociais normativos, proponho dar visibilidade às diferentes formas através das quais os homossexuais e transsexuais vêm se inserindo na sociedade e inventando modos de vivenciar seus afetos e projetos de vida em comum. São novas possibilidades de existência que vêm produzindo uma profunda transformação nos conceitos de família e que, a meu ver, não contradizem, e sim renovam, atualizam, a experiência histórica da resistência cultural associada ao movimento gay.

Resistência histórica

A geração que era jovem à época “Revolta de Stonewall” (como é conhecido o violento episódio de resistência dos gays à repressão policial em Nova York, em 1969, e que é considerado marco inicial do movimento de liberação e defesa dos direitos LGBT) está hoje com algo entre 70 e 80 anos.

E, então, como daremos conta de tudo que mudou nas práticas vinculadas às reivindicações de direitos e às conquistas de liberdade de expressão? Fora os profissionais da noite, ninguém tem fôlego para passar a vida na balada. Ao lado de outros tantos movimentos e grupos que ocorreram (e ainda ocorrem) desde então, Stonewall é símbolo da implosão do gueto, marco coletivo de saída do armário, de início da assimilação pela sociedade dos indivíduos cuja identidade de gênero e orientação sexual não se encaixam nos padrões impostos pela heteronormatividade.

Com todas as conquistas recentes que desenham uma clara tendência comportamental progressista, é importante reconhecer o imenso trabalho de esclarecimento e combate aos preconceitos que ainda resta fazer. Em muitos contextos sociais conservadores – estejam ou não fundados em dogmas religiosos – ainda se alimenta a crença de que a homo-trans- sexualidade é um fenômeno antinatural, uma anomalia, uma ameaça aos valores da família… É a necessidade de questionar essas concepções arcaicas que tem impulsionado este trabalho.

"Nomes do Amor" encontra-se em pleno processo de produção e tem como meta construir um retrato da família LGBT brasileira, dando expressão à sua rica diversidade, sem pretender enquadrá-la, ou rotutá-la, mas ao contrário, assumindo o compromisso de expressar um pouco da variedade inclassificável de tipos de sujeitos sexo-diversos e seus estilos de vida.

O que começou como um desejo simples de mostrar como a gente é, sem disfarces, sem artifícios, foi se transformando numa questão premente do debate político-social diante do recrudescimento das posições reacionárias (vide a institucionalização da homofobia através do Estatuto da Família na Câmara dos Deputados), da polarização dos discursos e do tensionamento geral das forças políticas atualmente em curso na sociedade brasileira.

Sabemos que as imagens não apenas representam realidades, mas apresentam mundos possíveis, ao mesmo tempo em que promovem experiências. As imagens não se esgotam no plano figurativo, mas são plenas de força simbólica, emocional, e povoam a imaginação das pessoas, que através delas ampliam seus repertórios de conhecimento e os horizontes de suas visões de mundo.

Sabemos que essas visões podem ser curtas ou amplas, excludentes ou inclusivas, e que têm o poder de produzir o ódio ou a empatia, o medo ou a paz. Apresentar esses casais e famílias na sua simplicidade, com naturalidade, faz-me acreditar que estamos construindo juntos as referências que nos faltaram quando éramos crianças e que podem ajudar a construir o futuro próximo da sociedade brasileira, quiçá mais humana e inclusiva, que saiba valorizar e respeitar suas diferenças como parte da sua riqueza cultural e da sua criatividade.

* Simone Rodrigues é fotógrafa, pesquisadora e professora de fotografia. Graduou-se em História (UFRJ, 1992) e fez Mestrado em História Social da Cultura (PUC-Rio, 1997), com pesquisa e dissertação sobre a Fotografia Moderna no Brasil.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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