18/04/2024 - Edição 540

Especial

A violência nossa de cada dia

Publicado em 09/04/2014 12:00 -

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O assassinato do empresário Erlon Peterson Pereira Bernal, de 32 anos, em Campo Grande (MS), traz à tona a tragédia na segurança pública no país. Bernal foi executado com um tiro na nuca e enterrado em uma fossa séptica no último dia 1º, após ter sido atraído a uma casa por uma gangue que simulou interesse na compra de seu carro. Os suspeitos do assassinato estão presos e tem, em sua maioria, idade entre 17 e 21 anos. “Ele foi morto como um animal. A vida humana não tem mais valor, as pessoas estão perdendo os sentimentos umas pelas outras”, desabafou a delegada Maria de Lourdes Cano, da Delegacia de Furto e Roubo de Veículos (Defurv).

O caso Erlon é emblemático. Aponta para o caos na segurança pública em todo o país. Especialista no setor, Ricardo Balestreri, afirma que a falta de recursos, de políticas públicas para o setor e de investimento nas carreiras policiais contribuem para que anualmente o país perca em torno de 53 mil vidas desnecessariamente.

“Estamos matando por ano, no país, quase uma cidade de médio porte. São 53 mil homicídios por ano. É uma desgraça constante e crônica. Não é qualquer tipo de morte, estamos eliminando anualmente toda uma geração de jovens: em geral, negros, pobres, na faixa dos 14 aos 24 anos”, ressaltou.

Na outra ponta, cinco pessoas, em média, morrem todos os dias em confronto com policiais em serviço no país aponta o Relatório Mundial sobre Direitos Humanos, divulgado recentemente pela organização não-governamental (ONG) Human Rights Watch (HRW). A letalidade policial é destacada no documento como uma das violações mais preocupantes em solo brasileiro. Em 2012, morreram 1.890 pessoas nessas circunstâncias, conforme dados do Fórum de Segurança Pública. “A gente reconhece que a tarefa que a polícia enfrenta no Brasil é muito desafiadora. Os índices de criminalidade são muito altos, mas ela responde com violência em muitas circunstâncias. A polícia mata e mata muito”, avaliou Maria Laura Canineu, diretora da HRW.

Impunidade e Investimento

O Governo Federal mantém certa distância do tema segurança pública no Brasil, uma vez que, por determinação constitucional, o controle das polícias militar e civil fica a cargo dos estados. Contudo, especialistas afirmam a necessidade de combater ao menos dois gargalos que colocam o país entre os países mais violentos do planeta: impunidade e baixo investimento em inteligência.

Comprar mais armas, viaturas, rádios e coletes apenas, sem tecnologia de ponta, como sistemas de comando e controle, vídeo e monitoramento, aparelhamento e treinamento dos policiais é fazer mais do mesmo, segundo Balestreri. “Não teremos a menor chance de reduzir o número de mortes, nem dos demais crimes que assolam hoje a sociedade brasileira, se não tivermos mais seriedade na gestão pública. Comprar apenas apetrechos é manter a política do espetáculo, que é a do tiroteio, do chute na porta, da quantidade de prisões, e ao final o resultado é pífio”, comentou.

O orçamento para segurança pública, nas três áreas de governo gira em torno de R$ 40 bilhões a R$ 60 bilhões por ano, e são insuficientes para o setor, de acordo com o especialista. Balestreri, que já foi secretário nacional de Segurança Pública, entre 2008 e 2010, defende leis que garantam padrões orçamentários. “Temos vinculação percentual orçamentária na saúde e na educação, e por que no terceiro elemento do tripé do desenvolvimento não temos? Por que a segurança pública continua sendo tratada de madeira amadorista, empírica, conforme o drama do momento, o clamor popular do momento?”, questionou.

Polícia Ineficiente

Outro problema é a ineficiência dos inquéritos policiais. “Menos de 8% em média dos crimes são apurados e menos de 2% são punições de homicídios. Cerca de 98% das mortes dolosas no Brasil não são punidas. A impunidade é quase absoluta”, lamentou Balestreri ao se referir às polícias brasileiras como "meias polícias", que fazem trabalhos incompletos e se atrapalham entre si. "Não defendo a unificação das polícias, mas do ciclo de trabalhos das polícias”, declarou.

O especialista afirma que a Polícia Civil transformou-se em mero cartório de registros e de procedimentos, já que os delegados hoje são juízes de instrução sem poder, segundo ele. “As polícias precisam ser divorciadas, fazendo trabalhos especializados e completos, cada um na sua área e cada um com seu cartório próprio”, argumentou.

A Polícia Civil, que é numericamente menor, deveria se superespecializar nos crimes mais sofisticados, como crimes contra a pessoa, colaborar com a Polícia Federal contra lavagem de dinheiro e crime organizado, entre outros. Já a Polícia Militar ficaria responsável pelos crimes ordinários, fazendo inclusive o trabalho cartorial e investigativo que hoje é feito pela Polícia Civil.

Menos de 8% dos crimes são apurados no Brasil. Cerca de 98% das mortes dolosas são punidas.

Para o coronel José Vicente da Silva, ex-secretário nacional de Segurança Pública, “a precariedade de sistemas de seleção, formação, supervisão, disciplina, corregedoria ativa, controle externo e baixos salários têm incrementado excessivamente a vulnerabilidade das polícias não só à violência como à corrupção”. Ele também aponta a ineficiência na investigação policial. “É uma regra nacional, confirmada pelas raras e pontuais exceções”, afirma.

Por esse motivo, Silva sugere o desenvolvimento de um Plano Nacional de Segurança Pública a partir de um retrato da violência pelo país, que ouviria governos, lideranças políticas e entidades. O ponto central, diz o coronel, é diminuir a impunidade. “O Governo Federal deve desenvolver iniciativas, através do Ministério da Justiça, para as mudanças legais e nos aparatos da Justiça e execução penal para reduzir as brechas da impunidade e assegurar a punição ágil dos criminosos como instrumento de dissuasão.”

Reforma

O sociólogo Claudio Beato estuda o fenômeno da escalada da violência no país há mais de duas décadas. Professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), comanda o Centro de Estudos em Criminalidade e Segurança Pública. Ele defende profundas reformas na gestão da segurança – o que, ressalta, implica necessariamente alterar a Constituição. “Hoje, somos obrigados a ter Polícia Militar e Civil. O resultado é que temos duas polícias que não somam uma e não dialogam”, diz.

Para realizar a necessária reforma, o especialista diz que o Governo Federal precisa exercer uma posição de liderança, que incluiria mais investimentos em capacitação e inteligência. “Policiais em outros países têm sido formados para a compreensão da complexidade do fenômeno criminal. Nossas polícias são extremamente corporativas e ainda estão apegadas a orientações bacharelescas ou militarizadas”, afirma.

Beato sustenta que o Governo Federal tem capacidade de financiamento que pode suplementar recursos e induzir mudanças importantes nos estados e municípios. Também caberia a ele introduzir inteligência no sistema, através da organização de informações e análise de dados, bem como a utilização de tecnologias para o manejo de dados e preparo de profissionais de segurança pública aptos a esses novos modelos.

Ele considera, ainda, que a legislação brasileira privilegia a impunidade. “Mas não pelas penas aplicadas, que já são severas, mas pelo sem número de brechas, subterfúgios e postergações propiciadas pela legislação processual penal”.

Diante desta realidade, merecem apoio as propostas em debate no Congresso Nacional e na sociedade como a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 51, que promove a unificação das polícias, sua desmilitarização e maior aproximação com as esferas do Judiciário. E o Projeto de Lei 4471/2012, que propõe o fim dos autos de resistência. A reforma do sistema carcerário, o combate à impunidade, a reforma do Judiciário e a modernização progressista da legislação penal são outros desafios que precisam ser perseguidos.

Interiorização

As capitais e regiões metropolitanas ainda concentram a maior parte dos assassinatos, mas os índices apresentam queda nos últimos anos, graças a investimentos (ainda insuficientes) em programas como bancos de dados, combate à impunidade e construção de prisões. Essas regiões são afetadas especialmente pelo tráfico de drogas.

A partir de 1999, as regiões metropolitanas receberam a maior parte dos recursos para o combate à violência. Foram canalizados recursos federais e estaduais para aparelhamento dos sistemas de segurança. Isso dificultou a ação da criminalidade organizada, que migrou para as áreas de menor risco, no interior dos estados.

O sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz, responsável pela elaboração do Mapa da Violência no Brasil, um estudo detalhado sobre os índices de criminalidade em todos os municípios, afirma que o Governo Federal deve ajudar a envolver municípios no combate à violência tomando a frente no trabalho de inteligência e mapeando os problemas regionais. “O combate tem que ser específico para cada tipo de região. Tem que haver diagnóstico. O primeiro passo da cura é a consciência da enfermidade. Difundiu-se entre nós a ideia de que a violência é um fenômeno quase natural, o que é um erro. Ela é um fenômeno determinado por fatores específicos que podem ser removidos”, diz Waiselfisz.


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