29/03/2024 - Edição 540

Palavra do Editor

Duas Cubas

Publicado em 26/11/2016 12:00 -

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A revolução cubana despojou do poder um ditador sanguinário, Fulgêncio Batista, que com as bênçãos dos Estados Unidos transformou o país em uma Las Vegas caribenha comandada por militares e mafiosos. Em nome da luta contra o comunismo, a América patrocinou o fim de uma democracia. Fidel e seus companheiros providenciaram um fim justo para uma ditadura injusta.

A disputa pelo poder revolucionário logo dividiu aliados. Os que almejavam outro tipo de Cuba que não a delineada por Fidel e Raúl foram alijados, alguns exilados, outros presos, muitos assassinados. O cerco se apertou e, sob a justificativa da sobrevivência da revolução, outra ditadura surgiu.

Sob a ditadura de Fidel e Raúl Castro e do Partido Comunista Cubano, o país erradicou o analfabetismo, construiu uma saúde pública exemplar, obteve os menores índices de mortalidade infantil do continente. Também sob sua ditadura, os cubanos passaram 60 anos sem liberdade de imprensa, sem direito ao contraditório político, sem eleições livres.

Sob esta ditadura, os cubanos fortaleceram seu espírito de luta, se uniram em torno da necessidade de sobrevivência. Em minhas duas visitas ao país (em 2012 e, recentemente, há uma semana atrás), não ouvi de nenhum cubano nada além de orgulho, solidariedade e esperança. Também sob sua ditadura os cubanos se viram enredados em graves problemas éticos e morais. Em níveis diferentes nas últimas décadas, sobreviver na ilha exigiu isso de todos eles. O resultado foi a naturalização da corrupção como meio de subsistência.

Cuba é para mim um mistério, com todos os encantos e temores que eles, os mistérios, nos suscitam. Não me julgo capaz de condenar esta experiência totalmente, muito menos de glorificá-la.

Sob esta ditadura o nivelamento social sob a régua de uma pobreza digna não se converteu nos índices de violência que assolam outras nações mundo afora, especialmente o Brasil. Em Cuba se caminha pelas madrugadas sem o pavor do banditismo. Também sob seu tacão, estabeleceu-se uma certa pasmaceira cujo resultado é uma gente mais preocupada em sobreviver do que em se insurgir.

Nos poucos dias que passei no país nestas duas viagens, percebi que os cubanos querem ter acesso a bens de consumo, informação, querem fazer parte do grande mundo, com o que ele tem de bom e ruim. Mas, não querem deixar para trás conquistas importantes, um modo de viver que nos é estranho por estarmos afogados na lógica do mercado e não na lógica do necessário.

Cuba é para mim um mistério, com todos os encantos e temores que eles, os mistérios, nos suscitam. Não me julgo capaz de condenar esta experiência totalmente, muito menos de glorificá-la.

Não há diferença, para mim, em ditaduras de esquerda ou de direita. Cuba é uma ditadura. Nós, por outro lado, vivemos em uma democracia liberal. Temos acesso a bens de consumo (nem todos), a liberdade de imprensa (agrilhoada pelo poder político-econômico) e política (embora aqui o voto – equivocadamente – seja ainda a expressão máxima desta participação). Vivemos sob outro tipo de ditadura, talvez mais perigosa, por menos óbvia.

A morte de Fidel Castro, significará uma ruptura no inconsciente coletivo da nação, que poderá suscitar a aceleração do lento processo de abertura econômica que teve início na década de 90. Que esta abertura seja também política, pero sin perder la ternura jamás.


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