20/04/2024 - Edição 540

Entrevista

Nosso principal diferencial é que conversamos muito com o paciente

Publicado em 25/08/2016 12:00 -

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Maylin Diaz Cobas está em sua terceira missão internacionalista como médica. Após passar quatro anos na Venezuela, regressar a Cuba, passar uma segunda temporada no exterior, desta vez na Bolívia, ela veio para o Brasil, em 2014, participar do Programa Mais Médicos. A doutora Maylin se fixou em Porto Alegre (RS), onde está trabalhando na Unidade Básica de Saúde da Vila Farrapos, que atende uma região com aproximadamente 11 mil pessoas. Ela integra o grupo de 40 médicos e médicas de Cuba que estão trabalhando atualmente na capital gaúcha dentro do Mais Médicos (em todo o Rio Grande do Sul, há mais de 700 profissionais cubanos trabalhando hoje no atendimento à população).

Cobas fala das dificuldades enfrentadas na chegada ao Brasil, nos preconceitos enfrentados e na rápida adaptação. Ela destaca que foi muito bem recebida pelos colegas do posto de saúde onde trabalha e relata que, ao longo dos meses, foi se desenvolvendo um processo de troca de conhecimentos e experiências muito rico, tanto em nível profissional como na relação com os pacientes. No início, conta a médica, “alguns pacientes não queriam ser atendidos por mim, mas só por um médico brasileiro, porque achavam que o meu diploma não era válido”. Hoje, essa situação mudou completamente. Agora, esses pacientes fazem questão de ser atendidos pela doutora Maylin. Com trabalho em medicina comunitária desde o primeiro ano da faculdade, ela conta que uma das principais marcas diferenciais dos profissionais cubanos é o contato direto com as pessoas: “Acho que a principal diferença no nosso modo de trabalhar é que nós conversamos muito, explicamos muitas vezes as coisas, tentamos explicar um pouco mais. Acho que o paciente precisa disso”.

 

Como foi a chegada ao Brasil e o início do trabalho no programa Mais Médicos?

Cheguei ao Brasil no dia 3 de fevereiro de 2014. Sou médica há 17 anos e me formei na Faculdade de Medicina de Camagüey, em Cuba. Logo após me formar, trabalhei em Camagüey como médica de família. Posteriormente, saí para uma missão de quatro anos na Venezuela. Retornei para Cuba e saí novamente para uma missão na Bolívia e agora estou aqui no Brasil, em minha terceira missão internacionalista. A chegada aqui foi bem complicada, em primeiro lugar pelo idioma. Antes de viajarmos para cá, tivemos um curso intensivo de 15 dias com uma professora brasileira em Cuba. Quando chegamos no Brasil, ficamos um período em São Paulo, onde tivemos uma preparação mais na parte médica, tomando conhecimento dos protocolos, do sistema de registros das patologias, que também é bem diferente do sistema cubano.

Em Cuba, o médico trabalha com sua enfermeira em uma determinada região, que tem no máximo 1.500 habitantes. Aqui, a minha unidade, por exemplo, cobre uma região que tem mais de 11 mil habitantes. Eu não consigo conhecer todas as pessoas que moram nesta área.

Ao chegar em Porto Alegre, fui designada para trabalhar na região dos bairros Humaitá, Navegantes e ilhas. Comecei a trabalhar na ilha da Pintada, cobrindo a saída de um médico que trabalhava ali. Atuei ali durante um mês e depois fui designada para trabalhar na Unidade Básica de Saúde da Vila Farrapos, onde estou até agora. A chegada foi difícil, mas fui bem recebida pelos colegas de trabalho. Eles foram bem legais comigo e não houve nenhum tipo de disputa. Na hora em que eu tinha dificuldade de me entender com algum paciente, sempre tinha alguém disponível para auxiliar. Comecei a trabalhar com visitas domiciliares, com uma equipe que tinha um médico, um enfermeiro e um técnico de enfermagem. Planejou-se um sistema de trabalho como se fosse uma unidade estratégica da família.

Na parte médica propriamente dita, a experiência de trabalho aqui é muito diferente daquela que teve na Venezuela e na Bolívia?

Sim. O sistema de trabalho aqui é bem diferente daquele que aprendi em Cuba, na Venezuela e na Bolívia. O da Venezuela é muito parecido com o sistema cubano, pois nós procuramos levar para lá um pouco do modo de funcionamento do nosso sistema. Neste sistema, trabalham juntos um médico e uma enfermeira. Aqui, a equipe é maior e tem agente comunitário, pediatra, ginecologista e odonto. Lá em Cuba é separado. Um médico trabalha com sua enfermeira em uma determinada região, que tem no máximo 1.500 habitantes. Aqui, a minha unidade, por exemplo, cobre uma região que tem mais de 11 mil habitantes. Eu não consigo conhecer todas as pessoas que moram nesta área. Em Cuba e na Venezuela eu conseguia conhecer. Na Bolívia foi diferente porque eu trabalhei em um hospital com medicina geral, com outro tipo de procedimentos.

Como foi a reação inicial dos pacientes contigo? Houve algum problema ou diferença pelo fato de não ser brasileira?

No início, houve alguns casos de pacientes que falaram que eu tinha fugido da ditadura cubana. Como eu disse antes, não houve nenhum confronto com os próprios colegas, mas alguns pacientes chegaram falando que Cuba era uma ditadura. Esse também era um obstáculo que eu tinha que superar para que o paciente deixasse que eu fizesse o atendimento. Alguns não queriam ser atendidos por mim, mas só por um médico brasileiro, porque achavam que o meu diploma não era válido. A mídia falava muito sobre isso, dizendo que nós não éramos médicos e que não estávamos capacitados para atender. Mas essa situação mudou totalmente. Agora, alguns pacientes que, no início, não queriam ser atendidos por mim, hoje, só querem ser atendidos por mim.

Quando alguém me falava que Cuba era uma ditadura, eu falava: sou filha de uma professora de ensino infantil e meu pai era mecânico. Eu estudei medicina sem pagar um real. Meus filhos estudam em Cuba. E fui mostrando fotos de como eram as creches em Cuba, as escolas, os livros, os uniformes. Aí as pessoas vão entendendo porque Cuba não é uma ditadura e porque eu sou diferente dos médicos brasileiros, Cuba tem muito mais médicos por habitante que qualquer outro país do mundo.

A mídia dizia que nós não éramos médicos, que não estávamos capacitados para atender. Mas essa situação mudou totalmente. Agora, alguns pacientes que, no início, não queriam ser atendidos por mim, hoje, só querem ser atendidos por mim.

Aos poucos, comecei a fazer algumas coisas que a equipe não fazia. Um exemplo disso foi a visita domiciliar planejada para um dia fixo da semana. Outro está relacionado ao acompanhamento de crianças nos primeiros anos de vida. Aqui, em geral, no primeiro ano de vida, as mães levam as crianças para consulta a cada mês. Passado um ano, isso não acontece mais, pois elas têm que trabalhar, não tem mais tempo, etc. Mas as crianças precisam seguir tendo um acompanhamento, pois estão em fase de desenvolvimento. Eu fixei um dia para a consulta na semana e consegui melhorar o acompanhamento das crianças. Assim, eu dedico toda a tarde deste dia para atender crianças com mais de um ano. Eu faço as medições delas, exames complementares e uma equipe da odontologia explica como é a escovação dos dentes, a aplicação do flúor e outras questões.

Há muitos relatos elogiosos sobre a forma de trabalhar dos médicos cubanos, que manteriam um contato mais próximo e humano com os pacientes? Como é isso?

Em Cuba, desde o primeiro ano da faculdade, nós somos formados na medicina comunitária. O estudante de medicina, já no primeiro ano do curso, além das aulas teóricas tem que ir para a comunidade. Essa disciplina se chama “Sociedade e Família”. Assim, desde o início, o estudante vai se formando no atendimento familiar, na visita domiciliar, no atendimento mais perto do paciente. Essa mudança cultural foi um choque para mim. O costume aqui é que o médico fique atrás da mesa e o paciente no lado oposto. Mas, nas minhas consultas, o paciente tem que ficar sentado do meu lado. No início, eu até amarrei a cadeira do paciente do meu lado para que eles não a levassem de volta para o lado oposto da mesa. Como eu ia medir a pressão, auscultar o coração e os pulmões, conversar direito com o paciente, se ele está longe de mim. Eu disse a eles, brincando, que não mordia nem beliscava. Eu preciso olhar de perto o paciente, pois essa parte extra verbal ajuda a entender o que está acontecendo com ele.

Acho que a principal diferença no nosso modo de trabalhar é que nós conversamos muito, explicamos muitas vezes as coisas, tentamos explicar um pouco mais. Acho que o paciente precisa disso. Tenho pacientes que vão à consulta só para falar. Em geral, são pessoas idosas, que não tem que fale com elas. Chegam lá e dizem: eu não estou me sentindo bem, estou deprimida…Aí começamos a conversar. Além do tratamento convencional, eu uso muito fitoterápicos extraídos da natureza – plantas, folhas, sementes. Isso também é uma característica da medicina cubana. Fomos criados a formados com a ideia de que o médico tem que utilizar coisas que melhorem a saúde sem provocar danos secundários ao paciente. Parece-me que a formação do médico brasileiro é mais comercializada, mais intensiva no uso de medicamentos de última geração.

Quanto tempo dura o curso de medicina em Cuba?

Seis anos. Os dois primeiros anos concentram a parte mais teórica, com essa relação permanente com a comunidade. A partir do terceiro começa a parte clínica dentro dos hospitais e das comunidades. No sexto ano, a gente já trabalha como médico embora ainda não seja reconhecido formalmente como tal.

Em Cuba, o estudante vai se formando no atendimento familiar, na visita domiciliar. Essa mudança cultural foi um choque para mim. O costume aqui é que o médico fique atrás da mesa e o paciente no lado oposto. Mas, nas minhas consultas, o paciente tem que ficar sentado do meu lado.

Essas diferenças não geram algum tipo de conflito com os médicos brasileiros no cotidiano no trabalho?

Não, nada disso. A outra doutora que trabalha comigo, e que é brasileira, é formada em medicina comunitária e tem formação também em acupuntura e fitoterapia. Ela também gosta de trabalhar com essa parte. Não há nenhuma disputa entre nós. Tentamos não abarrotar o paciente de medicamento quanto ele não precisa. No início, por exemplo, eu vi receitas que recomendavam paracetamol, dipirona e ibuprofeno. Se todos fazem basicamente a mesma coisa, porque vou receitar tudo isso. E há ainda o problema econômico. O SUS fornece muitos medicamentos, mas nem todos. E muitas vezes o paciente não tem como comprar o medicamento. É preciso levar isso em conta também na hora de dar uma receita. No caso de doenças crônicas, principalmente, é preciso ver qual o melhor medicamento de modo que o paciente possa manter o tratamento, sem deixar de tomá-lo por falta de dinheiro para comprá-lo.

Esse atendimento com uma conversa maior com os pacientes não torna as consultas mais longas também? Há médicos que alegam que isso não é possível pelo elevado número de pacientes que precisam atender diariamente.

Não. Em oito horas, o médico tem que atender, no máximo, 24 pacientes. Dependendo do programa que você vai atender no dia, você tem um tempo determinado para cada paciente. Se eu tenho que atender uma criança menor de um ano, por exemplo, a consulta não pode ser de vinte minutos. É preciso ver a atividade da criança, avaliar o seu desenvolvimento, explicar para a mãe e o pai várias coisas e ouvir o relato deles também sobre como a criança está. Em média, eu tenho vinte minutos para cada paciente. O que eu faço? Agora, com o e-SUS, nós temos disponível na tela o prontuário eletrônico do paciente com todos os seus dados. Entre um paciente e outro, eu já olho quem é o próximo paciente e o seu histórico. Muitas vezes, já sei isso, pois conheço o paciente. Além disso, no caso de uma criança, enquanto a mãe vai tirando a roupa dela eu já vou perguntando como ela está, como está a alimentação, o aleitamento, as vacinas, etc. E durante o exame da criança, também vou conversando com a mãe e recomendando algumas coisas. Assim, há tempo suficiente para falar tudo que for necessário. Com os adultos, o procedimento é muito parecido. Vou tomando notas e, ao mesmo tempo, vou falando com a pessoa.

Quantos médicos cubanos estão trabalhando no Brasil? Vocês mantem um contato regular para falar sobre o trabalho e, o presente e o futuro aqui?

No Brasil, somos um pouco mais de 11.400. Nós nos reunimos regularmente, de forma regional conversamos, comemoramos algum aniversário, coisas assim. Sobre o futuro, não sei. Nosso contrato é por três anos. A tendência é que o Brasil não tenha condições de abrir mão, no curto prazo, esses mais de 11.400 profissionais que estão trabalhando aqui hoje. A minha colega venezuelana que saiu do posto onde trabalho, por exemplo, ainda não foi substituída por outro médico.

Acho que a principal diferença no nosso modo de trabalhar é que nós conversamos muito, explicamos muitas vezes as coisas, tentamos explicar um pouco mais. Acho que o paciente precisa disso. Tenho pacientes que vão à consulta só para falar.

Como é essa experiência de trabalhar e viver longe do teu país e da tua família? Você tem filhos em Cuba?

Sim, tenho dois meninos, um de sete e outro de quatorze anos, que estão em casa com minha mãe. Tenho muita saudade deles. Quando eu contei para eles como era a vida aqui no Brasil, eles disseram: “Aqui é melhor, mãe. Quando você puder, vem para cá nos ver”. Eles não entendem a língua. Além disso, o período de férias deles lá coincide com o inverno mais forte aqui. O frio de Cuba fica em torno de 22 ou 23 graus. Outra coisa complicada, se eles morassem aqui, é que eu teria que deixá-los sozinhos em casa uma parte do dia, quando saísse para trabalhar. Na semana que vem estou indo visitá-los em Cuba.

Qual o balanço que você faz do programa Mais Médicos?

Em primeiro lugar, acho que esse programa foi muito bem pensado. O Brasil precisa de muito mais médicos para trabalhar junto às comunidades. A população brasileira tem essa dificuldade. Não ter um médico perto de sua casa que trabalhe na comunidade. O Mais Médicos está cumprindo essa função. Além disso, o programa propicia a relação entre profissionais de diferentes países e o conhecimento de outros países, de outros lugares do mundo, para serem aplicados também no Brasil. Acho que essa mistura é muito boa. Essa médica brasileira que trabalha comigo faz muitas coisas que aprendeu comigo e eu faço muitas coisas que aprendi com ela.

Poderia dar um exemplo desse aprendizado mútuo?

No meu posto, ninguém nunca tinha colocado um DIU. Em Cuba, o médico de família coloca DIU. Aqui no Brasil, o médico de família tem que encaminhar a mulher para o ginecologista colocar o DIU. Eu faço uma conversa com a mulher e o marido ou companheiro sobre o que é o DIU e, na próxima consulta, com a mulher pré-menstruada, eu explico novamente antes de fazer o procedimento e coloco o dispositivo. Eu já coloquei mais de 50 e nenhuma mulher ficou grávida ou teve alguma complicação. No posto, temos uma pediatra e uma gineco. Nós procuramos tratar os casos que tratamos de forma colegiada  As pessoas muitas vezes não sabem que o SUS, na atenção básica, consegue resolver todos os problemas que elas têm, sem necessidade de encaminhá-las para um segundo nível. Aí, na própria gerência colegiada desses casos, a gente consegue resolver os problemas. Antes, para conseguir uma tomografia de crânio, por exemplo, eu tinha que encaminhar o paciente para um neurocirurgião. Em geral, demora muito para se marcar o exame. Agora, eu consigo, em menor tempo, que o paciente ganhe a tomografia pelo SUS. Ela é agendada pela gerência do posto e a secretaria da Saúde se encarrega do resto. O mesmo já está ocorrendo com outros tipos de procedimentos.

Outro exemplo: o posto onde trabalho oferece sessões de quiropraxia, numa parceria com a UFRGS. A gente não fazia isso porque achava que podia machucar o paciente na hora de fazer o exercício. Nós temos um grupo de idosos e fomos conversando com eles sobre as vantagens e os benefícios que poderiam ter com a quiropraxia.

O Brasil precisa de muito mais médicos para trabalhar junto às comunidades. A população brasileira tem essa dificuldade. Não ter um médico perto de sua casa que trabalhe na comunidade. O Mais Médicos está cumprindo essa função.

Já dá para notar muitas mudanças. Algumas pessoas tinham medo da visita do médico em suas casas. Algumas delas ficavam me olhando de um estranho. Será que eu sou um extraterrestre, brinquei. Não é costume dos médicos brasileiros sair à rua para fazer uma visita domiciliar. Tampouco é costume é ir para o meio das inundações e colocar os pés na água, como ocorreu agora aqui em Porto Alegre. Muita gente não acredita que um médico fique num lugar onde as condições não são as mais favoráveis. Para trabalhar, eu preciso de um lugar onde eu possa escrever, ter um estetoscópio e alguns outros equipamentos básicos. É claro que para fazer procedimentos mais complexos precisamos de outras condições.

A medicina e a pesquisa na área de saúde em Cuba são referências internacionais e têm registrado muitos avanços como, mais recentemente, no tratamento de diferentes tipos de câncer. Como é isso em um país que vive sob bloqueio econômico há décadas, enfrentando muitas dificuldades materiais?

O sistema de saúde de Cuba, além de formar profissionais de forma gratuita, tem um desenvolvimento biotecnológico muito grande na área da medicina. Cuba tem hoje patentes de muitas vacinas e avanços no tratamento de doenças como o vitiligo e a retinose pigmentária, que afeta a visão. Não há nenhum segredo nesta receita, só o desejo do Estado de ter um sistema público de saúde capaz de resolver todos os problemas que a gente não conseguia resolver por meio do comércio com outros países. Nós fomos obrigados a inventar, a experimentar e a descobrir como fazer uma medicina gratuita e sustentável com poucos recursos. Se há algum segredo é este: nós conseguimos nos superar diante de tantos obstáculos.


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