19/04/2024 - Edição 540

Especial

O SUS por um fio

Publicado em 24/08/2016 12:00 -

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

Na última segunda-feira (22), o Conselho Nacional de Saúde (CNS) divulgou uma resolução em que reprova o projeto do governo interino de Michel Temer (PMDB) de criar “planos de saúde mais baratos”. O CNS é formado por representantes do governo, prestadores de serviço, profissionais de saúde e usuários. No texto da resolução o Conselho afirma que não cabe ao “ao Estado brasileiro promover o setor privado, mas sim regular o mercado a partir da Agência Nacional de Saúde (ANS) e demais dispositivos do controle social”. O presidente do Sindicato dos Médicos de São Paulo (Simesp), Eder Gatti, também reagiu: afirmou que a criação desses planos vai promover a desorganização do sistema de saúde brasileiro.

Segundo Ronald Ferreira dos Santos, presidente do CNS, se os planos acessíveis forem liberados pela ANS eles não vão atingir tratamentos de alta complexidade como câncer, transplantes, tratamento para HIV e Hepatite C. De acordo com Gatti, esses serviços continuariam sendo prestados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), agora com uma estrutura sucateada. “O que vislumbramos é um cenário de caos para a saúde pública. E ninguém pode dizer que o SUS não funcionou. Foi o Sistema, por exemplo, que mudou o perfil epidemiológico no Brasil, com campanhas de vacinação, com trabalho efetivo junto à população mais carente que diminui drasticamente a mortalidade infantil. Não podemos deixar que tudo isso seja jogado fora, mas é preciso mobilização”, alerta.

O documento do CNS também é contrário à Proposta de Emenda Constitucional 241/2016, que congela despesas da saúde e educação por 20 anos. Aprovada na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados (CCJ), a medida “desliga os aparelhos do SUS”, afirma Ronald Ferreira. 

Para Gatti, se aprovada a emenda, a referência para os gastos das próximas duas décadas será baseada em um ano de recessão, extremamente problemático para a saúde, com leitos fechados e hospitais públicos com pouca verba. “Não haverá investimento maior para o SUS, responsável por atender cerca de 70% da população brasileira”, explica.

Mauro Junqueira, do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde, disse que a PEC 241 será “o xeque-mate do sistema de saúde, ferindo-o de morte”, com perda de até R$ 650 bilhões para a saúde nos próximos 20 anos, além de menos 12 mil leitos de UTI e 4 mil equipes de saúde da família. “Pelos próximos 20 anos serão estagnados os gastos com saúde e educação. Mesmo se houver crescimento da economia, o SUS continuará perdendo, crescendo apenas com a inflação. Congelar por 20 anos recursos financeiros federais destinados ao SUS é anti-política de saúde”, afirmou.

Cláudio Lamachia, presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), também criticou a PEC 241. “É preocupante que, no momento em que os setores que lidam diretamente no atendimento vivem de perto as dificuldades de um cotidiano que piora paulatinamente em função da falta de verbas, o governo cogite levar adiante uma proposta que limitará o financiamento da saúde”, disse.

O documento do CNS considera também que os recursos públicos da Seguridade Social tem sido constantemente retirados por medidas como isenções fiscais aos serviços e planos privados de saúde e pela desvinculação de Receitas da União, “o que tem sucateado o SUS e fortalecido o sistema financeiro.”

A economista Rosa Maria Marques, que estuda o financiamento em saúde pública, alerta: “Imagine o impacto disso para o SUS, já tão subfinanciado. Imagine o que significa manter o mesmo nível de gasto para uma população crescente e em processo de envelhecimento. É claro que isso levará ao encolhimento do SUS e ao crescimento do setor privado da área da saúde, seja ele formado por planos de saúde ou não, diretamente desembolsado pelas famílias”.

Rosa explica que o pensamento que orienta tal medida é a lógica do mercado, do sistema financeiro.  “A lógica é a do credor que exige o pagamento dos juros sem medir as consequências. Reduzir gastos de toda a natureza para gerar superávit para pagar o serviço da dívida”, explica. Assim, corta-se das políticas públicas, como o SUS, para encher outros bolsos. “A consequência será o desmonte das políticas sociais construídas em decorrência da Constituição de 1988, mas será também o afastamento do Estado como indutor de qualquer outra política”, alerta.

A economista afirma que, apesar dos avanços na saúde durante os governos do PT, O subfinanciamento do SUS não começou com o governo Temer: “Em termos de financiamento, os avanços foram poucos. Isso porque também os governos Lula e Dilma estavam prisioneiros dos compromissos assumidos quando da Carta aos Brasileiros”, justifica.

Também economista, Áquilas Mendes elabora a ideia de que a política econômica financeirista inevitavelmente contamina outras áreas, como a saúde. “A manutenção da política econômica fundamentada no tripé — metas de inflação, superávit primário e câmbio flutuante —, adotada pelo governo federal desde o governo de Fernando Henrique Cardoso até o Governo Dilma Rousseff, deu origem a constantes dificuldades que impedem o pleno desenvolvimento da saúde universal no país”, exemplifica. 

Reação

Para fazer frente a tentativa de destruição de um dos mais importantes sistemas de saúde pública do mundo, o Simesp criou no dia 19 o Fórum em Defesa do Sistema Único de Saúde. A iniciativa é uma resposta as tentativas do novo governo de enfraquecer a saúde pública em prol de interesses privados. “O SUS é direito de toda população brasileira, resultado de muita luta para que fosse garantido na Constituição de 1988. Precisamos nos mobilizar para debater e traçar estratégia para defendê-lo”, enfatizou o presidente do Simesp.

A OAB também protocolou carta para o presidente interino em que pede que as propostas de desfinanciamento do SUS sejam revistas. O documento lista as crescentes dificuldades que o sistema público de saúde tem enfrentado nos últimos anos, com a assistência decaindo a olhos vistos e atingindo todos os setores: hospitais filantrópicos, universitários, assistência de saúde municipal e estadual.

O documento também foi encaminhado a Rodrigo Maia, presidente da Câmara, e Renan Calheiros, presidente do Senado. O objetivo é garantir a universalidade do SUS e o seu financiamento. A carta foi concebida durante audiência pública realizada na OAB no início do mês e foi assinada por 54 instituições, entre elas o Conselho Nacional de Saúde e o Ministério Público Federal. Além dessa iniciativa, a OAB fará um estudo com todas as inconstitucionalidades apontadas durante o evento para serem analisadas no conselho da ordem, na segunda-feira (29).

A carta da OAB cita os 150 milhões de brasileiros que dependem unicamente do sistema e pede que a saúde seja excluída da PEC  241.

Segundo a entidade, há no país uma gradativa restrição de acesso à saúde, com superlotações das urgências e emergências, falta de acesso às cirurgias e consultas especializadas, com a exclusão assistencial de 12 milhões de diabéticos, 17 milhões de hipertensos e 6,8 milhões de obesos mórbidos.

A Ordem cita ainda que as Santas Casas e os Hospitais Filantrópicos brasileiros estão em regime “falimentar”. “Não mais tendo condições de administrar um déficit anual de R$ 10 bilhões, já com dívida constituída de R$ 21,5 bilhões, com 218 hospitais fechados, 40 mil trabalhadores demitidos, depreciação física e tecnológica crescente”, enfatiza o documento. Essas entidades respondem por 51% da assistência geral, sendo que na alta complexidade, alcançam os 63%.

Diante dos fatos, a OAB recomendou:

a) Priorização orçamentária federal para o setor saúde, com adequação do financiamento do Ministério da Saúde. A medida visa a garantia constitucional da universalidade, gratuidade e integralidade das ações e serviços de saúde, por meio do SUS, alcançando também a plenitude de acesso e o equilíbrio econômico e financeiro nas relações obrigacionais firmadas com as instituições prestadoras de serviços;

b) Adoção de políticas de Estado para o setor saúde;

c) A exclusão dos efeitos da PEC 241 sobre a área da saúde
(a proposta limita os gastos públicos nos próximos 20 anos e desvincula recursos garantidos pela Constituição);

d) Aprovação da PEC 01/2015
(a medida garante o percentual mínimo para o custeio da saúde);

A OAB salientou o caráter apartidário de sua atuação e afirmou que o seu único compromisso é com a Constituição Federal. “Não somos governo e nem oposição. No entanto, qualquer iniciativa que prejudique a área da saúde deve ser rechaçada de imediato. O cidadão não pode morrer nas calçadas por falta de atendimento”, disse Cláudio Lamachia. 

O Mercado antes do Público

Passados trinta anos de um marco na história do Brasil, a 8ª Conferência Nacional de Saúde, o país ainda está diante de paradigmas que contribuem para a visão mercantil do setor. Durante a Conferência, foi discutido a fundo o modelo de saúde presente na época e, em relatório final produzido por políticos, gestores, profissionais e usuários do sistema, apontou-se a necessidade de mudanças. O relatório contribuiu para que, durante a Constituinte, fosse debatido o capítulo referente ao direito à Saúde, presente na Constituição Federal de 1988. Assim nasceu o SUS. Posteriormente, surgiram as leis n. 8.080 e n. 8.142, que tratam da regulamentação, financiamento e participação social no SUS.

Para Leandro Farias, farmacêutico sanitarista da Fiocruz e coordenador do Movimento Chega de Descaso, ainda persiste no país o desafio da quebra do modelo médico hegemônico, hospitalocêntrico ou complexo médico-industrial, que traz uma visão avessa ao modelo preventivista, elaborado durante o processo histórico que antecedeu a criação do SUS, a chamada Reforma Sanitária.

O primeiro modelo alimenta a visão mercantil da saúde e segue as leis do mercado, reforçando a indústria da doença formada por laboratórios, empresas, planos de saúde, entre outros. Essa indústria promove a prática de assédio aos profissionais da saúde desde sua entrada nas universidades, com o custeio de viagens, cursos, congressos e até porcentagem na venda de seus produtos. Sem falar na má remuneração destinada aos seus profissionais, que assim optam pela quantidade em detrimento da qualidade nos serviços disponibilizados.

Esta visão das políticas de saúde vai na contramão do conceito ampliado de saúde, elaborado durante a 8ª Conferência, que traz uma relação direta entre saúde e determinantes sociais, tais como condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso aos serviços de saúde.

Um retrato dessa realidade é a questão do saneamento básico no país, traduzida em esgoto a céu aberto, lixo nas ruas e armazenamento incorreto da água. Segundo levantamento feito em 2015 pelo Instituto Trata Brasil, apenas 48% dos domicílios brasileiros têm coleta de esgoto. Segundo o ministério da Saúde, em 2013 foram notificadas mais de 340 mil internações por infecções gastrointestinais no país. E o custo de uma internação por essa patologia no SUS foi de cerca de R$ 355,71 por paciente na média nacional. Estudos apontam a existência de uma ligação direta entre a falta de saneamento básico e o aparecimento de doenças. O último Levantamento Rápido de Índices para Aedes aegypti (LIRAa), divulgado pelo Ministério da Saúde em novembro de 2015, trouxe a seguinte questão: no Nordeste, 76,5% dos focos do mosquito estão em armazenamento de água para consumo – por exemplo, caixa-d’água. A região concentra a maioria dos municípios com índices de risco de epidemia de dengue.

Doenças como chikungunya, microcefalia e síndrome de Guillain-Barré, que são provocadas pelo Aedes aegypti, demandam recursos e mão de obra especializada, uma vez que os respectivos tratamentos são de médio e longo prazo. Tais patologias, que culminam em maior demanda por serviços e medicamentos, poderiam ser evitadas com ações de prevenção e promoção da saúde. Falta foco nas condições socioambientais da população. Para a Organização Mundial da Saúde (OMS), cada R$ 1 investido em saneamento gera uma economia de R$ 4 em saúde.

Setor privado bem de saúde

A Constituição assegura que a saúde é livre à iniciativa privada, mas também determina que a saúde é questão de relevância pública. Isto pode ser interpretado como possibilidade de existência da iniciativa privada, porém sob o primado do interesse público. Aliás, a legislação define o caráter complementar dos serviços privados por referência ao SUS. Entretanto, com o subfinanciamento público de um lado e o estímulo, subsídios e sub-regulação do setor privado, de outro, o país estabeleceu uma relação público-privado espúria na saúde, com a presença de promiscuidade entre os entes em prejuízo do interesse público.

Ao analisarmos os números da economia, observamos que o setor privado da saúde ignora a crise econômica que aflige o país, não se deixando abater pela recessão. Ao contrário, o lucro do setor aumentou mesmo diante da elevação das taxas de juros e da diminuição da renda dos consumidores. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o único setor que não sofreu queda nas vendas em 2015 foi o de artigos farmacêuticos, médicos, ortopédicos, de perfumaria e cosméticos, que cresceu 3%. Os números da administradora de planos de saúde Qualicorp são claros: a empresa obteve lucro de R$ 61,4 milhões só no último trimestre de 2015, apresentando um avanço de 224% em relação ao mesmo período de 2014.

“Sabemos que saúde se faz por meio de recursos. Porém, uma sociedade acometida por diversas patologias promove um efeito expressivo na economia, pois, além de exigir maior aplicação de recursos no orçamento da saúde, uma vez que o acesso aos seus serviços é algo oneroso, uma quantidade significativa de trabalhadores deixará de produzir por conta de sua doença. Ao pensarmos que diversos agravos podem ser evitados, caso sejam respeitados os direitos e as garantias fundamentais presentes em nossa Constituição, e que a existência de relações promíscuas envolvendo membros do Executivo, Legislativo, Judiciário e empresários impede o avanço de nossa sociedade por conta de interesses minoritários, é válido fazermos a seguinte reflexão: quem lucra com a crise no sistema de saúde?”, questiona Farias.

O Subfinanciamento

Inúmeros estudos e pesquisas realizados no Brasil indicam que o financiamento do SUS é insuficiente, desigual e injusto. Decorre em parte da estrutura tributária brasileira, regressiva, que penaliza os mais pobres através dos impostos indiretos, poupando os ricos dos impostos diretos sobre a renda, o patrimônio, a herança, enfim sobre as grandes fortunas. “Aquele pato ridículo que anda desfilando na frente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) esconde da população brasileira e da mídia o fato de que quem paga mais imposto no Brasil proporcionalmente é o povo, não são os empresários, não é o capital”, afirma o mestre em Medicina e doutor em Saúde Pública Jairnilson Silva Paim.

Por outro lado, quem mais arrecada impostos e contribuições é a União. Apesar de os municípios arrecadarem menos tributos que a União é sobre eles que recaem as maiores responsabilidades em relação ao SUS. O governo federal desde o início do século vem reduzindo relativamente a sua participação no financiamento do SUS, obrigando que os municípios, especialmente, contribuam mais com o financiamento, comprometendo mais de 20% do seu orçamento com a saúde, enquanto o seu piso fixado em lei é de 15%.

Imagine ter um sócio que está sempre pronto para dividir as despesas. No entanto, na hora do lucro, ele some com os dividendos. Depois, aparece forte e potente enquanto você está quase falido e exaurido do trabalho. Para o economista Carlos Octávio Ocké-Reis, é esse o molde da relação entre o estatal e o privado na área da Saúde. “Em resumo, o mercado parasita o Estado, socializa seus custos”, dispara. Ocké-Reis explica que o mercado de planos de saúde no Brasil tem uma articulação estrutural com o Estado. “No predomínio de relações capitalistas, o Estado age para favorecer as condições de rentabilidade das ‘operadoras’ por meio do fundo público (subsídios), resolvendo em parte a pressão dos custos e preços crescentes — comum ao setor de serviços.”

O economista afirma que o Estado se faz prisioneiro nessa relação, constituindo um dilema: “ou estatiza o sistema (radicalizando seu papel intervencionista), ou mantém a forma privada de atividades socialmente importantes, aplicando mecanismos de subvenção estatal (incentivos governamentais)”. Para Ocké-Reis, o que não se pode perder de vista são os avanços na constituição do SUS, estreitamente atrelado a conquistas cidadãs inauguradas com a Constituição de 1988. Segundo ele, do atual momento político e econômico do país emergem falsos problemas e soluções. 

José Antonio Sestelo, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO) diz que a tensão que há entre os sistemas público e privado de assistência à saúde no país é mais complexa do que parece. Num primeiro momento, pode-se concluir que o privado quer suplantar o público para “herdar” seus pacientes. Porém, a realidade é outra. “A expectativa dos agentes econômicos envolvidos com esse esquema de comércio é que o SUS continue existindo como um sistema pobre para pobres e um resseguro para os estratos médios de renda”, explica. Assim, o desejo real dos agentes que tratam a saúde como negócio é de que o “governo autorize o aumento da base de arrecadação das empresas a partir de planos individuais baratos de baixa cobertura”. “Não tem dinheiro para políticas sociais, mas uma das principais rubricas orçamentárias permanece intocada: despesas financeiras com juros e amortizações da dívida pública interna”, completa.

O caráter universal do SUS não impede que isso ocorra, pois a intenção é oferecer atendimentos a todos e compor a atenção à saúde de forma sistêmica. O problema é que na mesma proporção em que os planos buscam mais recursos, diminui o orçamento da saúde pública. Para Sestelo, é uma aposta num sistema que já se sabe que não dá certo. “Aqui as empresas têm apresentado uma pauta, integralmente assumida pelo atual ministro, que reatualiza tudo que já deu errado nos Estados Unidos como se fosse uma novidade”, alerta.

Segundo o vice-presidente da ABRASCO, a equipe do governo interino trabalha para hidratar o sistema financeiro, enquanto vai matando políticas públicas por inanição, revogando direitos sociais inaugurados com a Constituição de 88. “No Brasil é evidente a caducidade dos protagonistas atuantes na cena política. O governo interino cheira à naftalina, mas muitos dos que, em tese, fazem oposição a ele, poderiam ser guardados no mesmo sarcófago”, dispara.


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *