29/03/2024 - Edição 540

Entrevista

Caça às bruxas nas universidades

Publicado em 10/08/2016 12:00 -

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Nos últimos meses tem crescido o número de relatos de casos de “denúncias” dirigidas contra professores de universidades e também de escolas de ensino médio, acusados de praticarem uma espécie de “doutrinação marxista” dentro das salas de aula. Inicialmente restritas a figuras mais caricatas como Olavo de Carvalho, essas denúncias vêm ganhando, porém, maior visibilidade midiática e o suporte de grupos de direita e extrema-direita articulados nacional e internacionalmente. “Há uma caça às bruxas muito preocupante dirigida contra um tipo de pensamento (de esquerda), como se ele fosse inaceitável”, diz Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC-RS.

 

O senhor tem falado sobre o crescimento de um clima de caça às bruxas, de caráter ideológico, dentro do ambiente acadêmico, dirigido contra o que seus promotores chamam de “doutrinação marxista” dentro das universidades. Qual é a dimensão deste fenômeno?

Estou na PUC-RS há dez anos e a instituição é muito isenta neste sentido. Há cerca de 20 anos, a PUC estabeleceu um sistema de pós-graduação muito sólido que foi se consolidando ao longo do tempo. Hoje, os critérios e contratação de professores, especialmente os vinculados à pós-graduação, são muito objetivos e vinculados aos critérios da Capes, como produção acadêmica e publicação em revistas científicas, o que nos permite ter uma total liberdade de cátedra e de pesquisa. Os professores são submetidos a avaliações anuais com critérios que são bastante claros, que não se vinculam inclusive à própria questão da confissão religiosa da instituição.

No contexto político que estamos vivendo hoje é evidente que há tensões, que aparecem mais em alguns cursos do que em outros. Em certas faculdades, há alguns alunos que têm uma posição mais ideológica de defesa de um pensamento liberal, entre aspas, e contrário ao governo, que tem tentado, de alguma forma, criar algum constrangimento a professores que têm outra posição sobre a conjuntura que o país está vivendo. Mas ainda podem ser consideradas situações normais e não vinham sendo motivo de grandes preocupações.

Essas acusações de uma suposta doutrinação marxista na universidade e nas escolas começaram há alguns anos, feitas por algumas figuras caricatas, como o filósofo Olavo de carvalho. Mas, graças aos espaços que ganharam na mídia, essas acusações vêm crescendo de dimensão. Como você avalia esse fenômeno?

Embora os argumentos sigam caricaturais, pela abrangência que vêm ganhando e pela aceitação que acaba tendo dentro da mídia e dentro de uma sociedade muito polarizada, isso ganhou repercussão. É preciso assinalar que, mesmo dentro das Ciências Sociais, o pensamento marxista hoje está muito marginalizado. Desde os anos 80, com a queda do Muro de Berlim e do chamado socialismo real, houve um aprofundamento do debate teórico e até metodológico que trouxe outras influências. A teoria social contemporânea incorporou alguns elementos de Marx, mas incorporou várias outras coisas também. Por isso, para nós, essa conversa de “doutrinação marxista” é algo muito estranho.

Há pluralidade no debate nas universidades?

A realidade da universidade no Brasil, hoje, não tem nada a ver com isso. Na verdade, o que eles chamam de marxismo é qualquer coisa que envolva a defesa de direitos humanos, direitos sociais, de “minorias”, e de tudo o que, nestes últimos doze anos, possa ter significado um avanço social. Com todas as críticas que se possa ter, os governos do PT avançaram muito deste ponto de vista. Lula promoveu no Brasil uma espécie de pacto social, trazendo para o governo outros partidos e outros setores, incluindo o empresariado. Em troca disso, conseguiu inserir na agenda do País o combate à miséria, ações afirmativas, políticas de enfrentamento da violência contra a mulher e uma série de outras coisas que não estavam na pauta política nacional. Isso tem alguma coisa a ver com marxismo? Não tem nada a ver. Está mais para uma agenda social-democrata, de ampliação do Estado democrático de direito para setores que, historicamente, ficaram de fora. Foi isso o que aconteceu no Brasil.

O pacto social dos governos petistas conseguiu inserir na agenda do País o combate à miséria, ações afirmativas, políticas de enfrentamento da violência contra a mulher e uma série de outras coisas que não estavam na pauta política nacional. Isso tem alguma coisa a ver com marxismo? Não tem nada a ver. Está mais para uma agenda social-democrata.

Há, também, que combate, inclusive estes pequenos avanços.

Sim. Nas universidades há pessoas e grupos que se contrapõem a estas conquistas. Desde os resultados eleitorais, se tenta, de alguma forma, derrubar o governo, seja por pedidos de recontagem de votos, por impeachment por pedaladas, impeachment por financiamento de campanha. Os argumentos vão mudando ao longo do tempo, mas o objetivo é o mesmo. É isso que unifica e dá uma lógica para a oposição, só que essa lógica é muito perigosa para a democracia. Além de não respeitar o resultado do voto popular, ela deu proeminência para grupos que não têm nenhum compromisso com a democracia. São grupos fascistas, de negação do outro, ligados a movimentos como o Vem Pra Rua, Revoltados Online, Movimento Brasil Livre, Banda Loka Liberal, entre outros.

É uma construção cujo objetivo é derrubar Dilma independente dos argumentos a serem utilizados.

Esse discurso de uma suposta doutrinação marxista dentro da universidade é totalmente descolado da realidade, mas está vinculado a uma forma de fazer política, que pretende produzir, esse sim, um pensamento único. Segundo esse pensamento, não se pode defender o governo porque ele é criminoso, tudo o que está ligado ao governo está ligado a um pensamento marxista, bolivariano, comunista, seja lá o que for, e isso tem que ser derrubado pois esta é a única maneira de o Brasil se manter dentro de uma perspectiva liberal capitalista. É esse discurso ideológico que foi sendo construído ao longo dos últimos anos, a partir de uma ideia falsa tanto em relação à academia quanto em relação ao governo.

A esquerda latino-americana tem experiências mais ou menos democráticas. Poucas são tão democráticas como o que o PT fez neste período, sendo, aliás, criticado por não ter entrado no debate sobre o controle da mídia, por ter colocado no Supremo Tribunal Federal pessoas que não têm um alinhamento ideológico com o governo, pelo contrário, e também por ter implementado essa ideia de um pacto, o que está muito ligado ao pensamento do lulismo. O PT fez muitas concessões e ninguém pode falar que o governo foi autoritário ou totalitário. O problema é que, para construir a narrativa do impeachment, se bateu repetidamente sobre essa tecla de um suposto “totalitarismo” petista.

Você acha que houve uma ação orquestrada da grande mídia para enfraquecer o governo Dilma?

Várias revistas, jornais, televisões e outros meios de comunicação desempenharam um papel fundamental neste processo ao longo dos últimos anos, minimizando os pontos positivos do governo e maximizando a visibilidade da crítica. O Jornal Nacional não exibiu, por exemplo, o vídeo com o discurso da Janaína Paschoal, que mostraria quem é a pessoa que está defendendo o impeachment no Congresso. Imagine se a Dilma, que inclusive foi chamada de perturbada e desequilibrada pela revista Isto É, fizesse um discurso como aquele… Eles estão com uma espécie de carta branca para agir. É uma guerra suja, uma forma de atuação política que a gente já conhece porque a direita brasileira, historicamente, faz esse tipo de coisa, e que tem tido uma tolerância e até uma adesão por parte da mídia e, eu diria até, por parte das instituições.

Trabalho com pesquisas sobre a Polícia e o Poder Judiciário e sei que dentro dessas instituições existem grupos que estão vinculados a essa ideologia de que é preciso derrubar o governo a qualquer preço, o que tem gerado conexões entre todas essas estruturas que se movimentam em torno dessa proposta. Isso é grave porque, num estado democrático de direito, quando uma coisa dessas acontece, as instituições têm que funcionar para proteger o cidadão que está sofrendo esse tipo de ameaça. Hoje, não há confiança de que isso vá acontecer. Estamos entrando numa espécie de vale tudo, que precisa ser evitado por quem tem compromisso com a democracia.

Em atos realizados por movimentos que defendem a derrubada do governo, as referências políticas e teóricas eram nomes como Ronald Reagan, Margaret Thatcher e Von Mises, que a maioria não deveria saber quem era. Temos um fenômeno social e político novo aí, com uma pequena vanguarda de extrema-direita dirigindo expressivos setores da classe média?

Acredito que sim e isso está muito próximo do debate político norte-americano, onde os democratas e o Obama especialmente são chamados de comunistas pelo Tea Party. Esse grupo dentro do Partido Republicano tem, hoje, os principais candidatos que disputam a indicação para concorrer à Casa Branca. O deputado Marcel van Hattem participou de eventos deste grupo nos Estados Unidos. Recentemente, foi divulgado um vídeo nas redes sociais mostrando o deputado fazendo uma pergunta em um desses encontros. Os grupos que tem liderado as manifestações contra o governo no Brasil estão se negando a informar de onde vem os recursos que estão recebendo, dizendo que se trata apenas de contribuições voluntárias. Então, há de fato uma direita mais orgânica, com articulações internacionais, se organizando no Brasil e em outros países da América Latina.

Esse grupo ainda não tem uma organicidade política. O PSDB não é a referência para eles, até porque consideram os tucanos culpados pela ascensão do PT e incapazes de fazer uma oposição sólida. Eles querem outra coisa e já há inclusive iniciativas neste sentido. A própria situação do Van Hattem é desconfortável dentro do PP, porque como ele pode sustentar esse discurso de combate à corrupção quando o seu partido é um dos que tem mais envolvidos nas denúncias da Lava Jato?

Voltando ao ambiente universitário, você referiu que já há um certo receio de alguns professores de conversar a sós com estudantes, por temer coisas como gravações clandestinas ou denúncias de assédio feitas nas redes sociais. Na sua opinião, há um crescimento deste clima de desconfiança dentro da academia?

Aqui na PUC eu não posso dizer que tenha havido qualquer tipo de respaldo a atitudes como esta que relatei. Pelo contrário, a PUC tem hoje uma forma de ação acadêmica totalmente isenta, no sentido de que os professores têm total autonomia desde que respeitem os critérios científicos estabelecidos pela Capes. Mas, sim, entre os professores têm crescido a preocupação por causa de condutas como a que relatei. Gravações feitas sem o conhecimento do professor e divulgadas nas redes sociais, falas que são retiradas de contexto e coisas desse tipo. Que haja preocupação com o que é dito em sala, e que os alunos se mobilizem para cobrar da instituição critérios claros de relacionamento acadêmico, evitando constrangimentos, assédio ou falta de critérios por parte dos professores é uma coisa. Por isso mesmo temos um código de ética na instituição que estabelece regras para os seus integrantes. Outra coisa é a caça às bruxas dirigida contra um tipo de pensamento (de esquerda), como se ele fosse inaceitável. Quando esse fato aconteceu aqui na PUC os meus colegas ficaram muito preocupados. Por mais que a gravação feita pelo aluno não tivesse nada que pudesse ser usado contra mim ou contra a instituição, ela causa um constrangimento. Para as pessoas que não gostam de mim, que acham que eu sou um esquerdista defensor de criminosos, é mais um argumento. Não interessa se é verdadeiro ou não, ele vai ser julgado nas redes sociais.

O clima é muito preocupante porque neste momento há um movimento organizado para a deslegitimação de professores que têm posição política. Eu não faço doutrinação ou política partidária em sala de aula. Quando aparece um tema da atualidade, eu procuro mostrar as diferentes visões que existem sobre esse tema. Acho importante que o professor não suba no palanque quando está em sala de aula, mas isso não impede que eu use outros espaços na minha condição de cidadão. O objetivo deles é justamente criar esse tipo de constrangimento. Professores horistas, que não estão na pós-graduação, estão em início de carreira e ainda não tem uma produção acadêmica tão reconhecida, estão numa situação de maior fragilidade e já manifestam bastante receio neste momento. Isso envolve também professores de segundo grau. Há algum tempo, a revista Veja fez uma matéria contra um professor de história de uma escola tradicional de Porto Alegre, acusando-o de “doutrinação marxista”. A situação é realmente muito preocupante pelo crescimento desses casos.


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