25/04/2024 - Edição 540

Entrevista

O descontrole do Estado e os ataques contra os Guarani-Kaiowá

Publicado em 04/08/2016 12:00 -

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Para o secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Cleber Buzatto, impera no país um descontrole absoluto por parte do Estado no que se revere a questão indígena. Segundo ele, isso a violência contra estas populações decorre da impunidade generalizada e da falta de atuação do próprio Estado. Buzatto aponta para o recrudescimento da pressão contra os povos indígenas com a confirmação do Governo Temer. Para ele, as políticas de Estado que se dedicam ao tema sofrerão um retrocesso perigoso.

 

Como o senhor avalia a sucessão de ataques que ocorreram neste ano contra os indígenas em Mato Grosso do Sul? Outras comunidades podem estar em risco neste momento?

A situação é calamitosa. Avaliamos que há um descontrole absoluto por parte do Estado brasileiro e, em função da impunidade generalizada e da falta de atuação do próprio Estado, proliferam as ações de milicianos organizados de forma paramilitar que vêm, inclusive à luz do dia, promovendo esses ataques, quase que cotidianos – sistemáticos – contra os Guarani-Kaiowá, no estado de Mato Grosso do Sul. Ações como essas são levadas a cabo por representantes do agronegócio, latifundiários e pessoas contratadas, que estão agindo de forma completamente impune. É evidente que precisa haver uma ação do Estado para pôr fim a essa barbárie que está sendo cometida pelo latifúndio e pelo agronegócio contra os Guarani-Kaiowá.

Além dos Guarani-Kaiowá, que outras comunidades estão correndo perigo no estado?

Da forma como está a situação em Mato Grosso do Sul, todas as comunidades Guarani-Kaiowá estão em risco, de modo especial, exatamente essas que vivem na região do município de Caarapó, próxima à Reserva de Tey'i Kue e também as comunidades de Kurusu Ambá, que também sofreram ataques recentemente.

Alguma providência já foi tomada para apuração dos ataques ocorridos recentemente? Como estão agindo a Força Nacional de Segurança e a Polícia Federal quanto a esses casos?

A nossa avaliação é de que há uma parcimônia muito grande das forças policiais, seja para impedir os ataques, seja para identificar e punir os criminosos que estão cometendo esses ataques. O que existe de mais efetivo é uma investigação conduzida pelo Ministério Público Federal, que inclusive identificou e apresentou denúncia contra 12 pessoas que foram acusadas de formação de milícia no ataque aos Guarani-Kaiowá nos últimos períodos. No entanto, por parte da Polícia Federal, que seria a polícia investigativa e de inteligência, até o momento não temos observado ação no sentido de identificar e punir os responsáveis por esses ataques.

Há um descontrole absoluto por parte do Estado brasileiro em relação a questão indígena e, em função da impunidade generalizada e da falta de atuação do próprio Estado, proliferam as ações de milicianos organizados de forma paramilitar.

Que medidas têm sido tomadas para proteger as comunidades indígenas sob ameaça?

O que tem acontecido, e de forma ainda tardia muitas vezes, é a ação reativa, ou seja, depois de comunicada de que está havendo um ataque, a Força Nacional se desloca para o local e, muitas vezes, demora muito para fazer o deslocamento de forma reativa. No dia 13 de julho foi necessário comunicar diretamente o Ministério da Justiça para ver se era possível fazer o deslocamento da Força Nacional para essas regiões, onde havia a preparação de um novo ataque na região de Caarapó. Portanto, avaliamos que é preciso uma ação preventiva, que evite os ataques; uma ação, quando necessária, reativa e imediata, e que puna e qualifique os autores ou os que estão ameaçando o ataque; e, evidentemente, uma ação investigativa que identifique, ofereça denúncia e punição aos responsáveis por esses ataques.

Atualmente como está a atuação da Funai frente ao contexto de violência contra os indígenas na luta pela demarcação de terras e em meio às decisões judiciais de reintegração de posse, nas quais muitas vezes é chamado a atuar?

Nossa avaliação é de que os agentes da Funai que atuam nessa região de Mato Grosso do Sul demonstram boa vontade de contribuir e trabalhar na defesa dos povos indígenas, que é a função institucional. Mas é evidente que existe uma deficiência estruturante de recursos humanos e de recursos financeiros que possibilitem uma estrutura mínima necessária para um atendimento mais qualificado. O governo brasileiro cortou recursos da Funai na ordem de 30% para este ano, o que gera um estrangulamento do órgão indigenista e que significa uma dificuldade muito grande por parte dos agentes de atuar de forma mais qualificada.

Claro que não é função da Funai retirar os povos dos seus territórios, embora um juiz federal de Dourados, recentemente, tenha insistido em uma ação de reintegração de posse da Fazenda Ivu – mesmo local onde foi assassinado o Clodiode Aquileu Rodrigues de Souza –, determinando que a Funai faça a retirada dos índios. Mas nós entendemos que esse não é papel da Funai e esperamos que ela não faça isso, porque não tem nem capacidade para fazer isso, muito menos legitimidade para tal.

A Funai tem um histórico de frequentes mudanças em sua presidência. De que modo avalia essas constantes trocas de liderança da Fundação e as recentes indicações de dois militares para o cargo, primeiro Sebastião Roberto Peternelli Júnior e depois Franklimberg Ribeiro de Freitas, ambos generais do Exército?

As indicações dos generais do Exército para a presidência da Funai são um indicativo, na nossa avaliação, bastante emblemático de uma postura e de uma orientação política do governo interino de Temer no que diz respeito aos povos indígenas, no sentido de uma retroação na relação do Estado brasileiro com esses povos, tal qual a estabelecida pelo Estado na época da Ditadura Militar. Relação esta que foi de imposição, que trabalhava em uma perspectiva de integracionismo, o qual foi vencido pelos termos da Constituição Brasileira, que reconheceu os direitos dos povos originários aos seus costumes, crenças e tradições, como também o direito às suas terras tradicionais.

A indicação desses militares nos leva a entender que o governo quer voltar à relação pré-constituinte, ou seja, uma relação de tutela, de servilismo e de integracionismo dos povos em relação ao Estado, o que é inaceitável. Os povos têm demonstrado essa não aceitabilidade por meio de ações, mobilizações e também de documentos, assim como a sociedade civil que atua com esses povos também tem reagido e se manifestado publicamente sobre a situação indígena, a ponto de o governo, pelo menos taticamente, não ter condições, neste momento, de efetivar essa nomeação devido à reação dos povos e da sociedade. Mas essas indicações são preocupantes e mais ainda a insistência do governo nessa direção.

Estamos convencidos de que a confirmação do governo Temer funcionará para que aconteça uma piora ainda maior nas situações vividas pelos povos indígenas no Brasil.

O modelo econômico brasileiro de exportação de commodities também é um fator que intensifica os conflitos fundiários no país?

O modelo econômico do país, que prioriza a exportação de matérias-primas – commodities agrícolas e minerais – é um modelo falido. Para nós, isso é um absurdo muito grande e esse é um dos fatores principais que têm levado à potencialização dos ataques e das violações contra as comunidades indígenas, contra quilombolas, contra extrativistas e trabalhadores sem-terra por parte do agronegócio, que é um modelo que acaba, em muitas situações, se beneficiando dessa perspectiva de produção de commodities, fundamentalmente voltadas para a exportação.

Evidentemente que essa perspectiva é viabilizada por meio de decisões políticas e de financiamento público. Nos últimos anos, apenas no Plano Safra 2014/2015, para termos uma ideia, o Estado brasileiro aportou cerca de R$ 10 bilhões na forma de subsídio ao latifúndio e ao agronegócio. Mas mesmo com esse subsídio todo, está na pauta da bancada ruralista, assim como das associações de produtores de commodities agrícolas voltadas para a exportação, a securitização da dívida, ou seja, uma espécie de “calote” no pagamento da dívida dos fazendeiros aos cofres públicos. Esse foi, inclusive, um dos temas da reunião-almoço que aconteceu no dia 12 de julho, quando o presidente interino foi visitar os ruralistas na mansão mantida pela bancada ruralista no Lago Sul, em Brasília. Pela primeira vez um presidente em exercício visita os ruralistas na mansão mantida pelos próprios ruralistas em Brasília, e isso é um indicativo forte de que essa perspectiva e esse modelo tendem a ser fortalecidos ainda mais em uma eventual confirmação do mandato de Temer nos próximos períodos.

A instabilidade política no país e o apoio da bancada ruralista ao governo interino podem agravar o contexto dos povos indígenas em comparação com os últimos mandatos do PT, que também não apresentaram caminhos para a resolução dos conflitos fundiários?

Estamos convencidos de que a confirmação do governo Temer funcionará para que aconteça uma piora ainda maior nas situações vividas pelos povos indígenas no Brasil. Sempre fomos críticos em relação ao governo Dilma, exatamente pelas opções prioritárias que ela fez pelo modelo do agronegócio, inclusive com deficiências graves em relação ao andamento do procedimento de demarcação de terras indígenas, quilombolas e da reforma agrária. Mas, com esse novo governo, a tendência é que todas as mazelas que já vinham sendo cometidas pelo agronegócio e pelos representantes do agronegócio na Câmara se aprofundem ainda mais, seja no que diz respeito aos ataques e violações diretas aos povos e suas lideranças, seja por meio de ações de intimidação e criminalização no âmbito do poder Legislativo, como já tem acontecido, por exemplo, por meio da CPI da Funai e por meio da PEC 215, ou pelo Projeto de Lei 1610 – que trata da mineração em terras indígenas – e outros tantos que são manejados pelos ruralistas no âmbito do Congresso brasileiro.

As indicações de generais para a presidência da Funai são um indicativo de uma orientação política do governo interino no que diz respeito aos povos indígenas, uma retroação na relação do Estado com esses povos, tal qual a estabelecida na época da Ditadura.

A partir da reunião da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) com o presidente interino Michel Temer, que assumiu o compromisso de repensar as regras para demarcação de áreas indígenas, compra de terras brasileiras por estrangeiros e de licenciamento ambiental, que prognósticos podem ser esperados sobre a situação dos povos indígenas brasileiros?

Por um lado, como disse, é esperado que se intensifiquem os ataques e as violências e, portanto, um quadro ainda mais grave na relação vivida pelos povos indígenas nos país. Por outro lado, nós entendemos que os povos indígenas não aceitarão essa situação sem reagir e sem resistir. Portanto, a tendência é que continue a mobilização dos povos em defesa dos seus direitos e pela efetivação deles nas diferentes regiões do país. Os povos, historicamente, têm sido muito sábios nas deliberações que têm tomado nessa perspectiva.

A Ditadura Militar também tentou implantar, a ferro e fogo, o projeto do integracionismo, inclusive com metas de que, no ano 2000, não existiriam mais povos diferenciados no país. Mas os povos venceram a ditadura e o projeto integracionista, conquistaram direitos com o reconhecimento, por parte do Estado, da existência diferenciada desses povos, por ocasião da Constituição de 1988. E nós temos a convicção de que os povos se manterão resistentes e ativos na defesa de seus direitos e também saberão encontrar caminhos para vencer mais esse circuito de ataques frontais que estão sofrendo por parte do agronegócio exportador do país.

Diante do contexto político e de violência contra os indígenas, que saídas são possíveis no curto prazo para a proteção da integridade física e dos direitos desses povos sob ameaça no Brasil?

Uma questão que é importante nessa direção é a visibilidade desse contexto, seja em âmbito nacional, seja em âmbito internacional, a ponto de que os organismos multilaterais tomem iniciativas concretas na perspectiva de cobrar do Estado brasileiro, que é signatário de uma série de instrumentos legais internacionais, que respeitem esses instrumentos e as próprias normativas do Estado brasileiro. Também, denunciar os acordos comerciais que o Brasil tem com outros países, seja da Europa ou da Ásia, demonstrando a esses países que esses acordos comerciais podem estar contribuindo para a violação de direitos humanos, indígenas e ambientais no país.


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