29/03/2024 - Edição 540

Entrevista

O SUS deve ser um sistema para todos os brasileiros

Publicado em 13/07/2016 12:00 -

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José Gomes Temporão foi ministro da Saúde de 2007 a 2010 e diretor do Instituto Nacional de Câncer (INCA) entre 2003 e 2005. Até segunda-feira (25) é diretor executivo do Instituto Sul-americano de Governo em Saúde (ISAGS). Nesta entrevista, o sanitarista fala sobre a falta de percepção da população brasileira sobre a importância de um sistema público de saúde universal e o desafio político que isso representa para o movimento da Reforma Sanitária, bem como a potencialidade das redes sociais nesta luta política – “nós podemos ser muitos, mais do que éramos há 40 anos atrás”, afirma. Entre os temas abordados estão ainda os problemas causados pela hiperespecialização dos profissionais de saúde e a fragmentação do cuidado, a relevância de colocar os serviços em rede, e o potencial do Programa Saúde da Família (PSF) como instrumento de racionalização do próprio setor privado. Para o ex-titular da Saúde, o papel do ministro da Saúde de um país como o Brasil é “centralmente político-pedagógico”. Apesar de se declarar um otimista, Temporão demonstrou preocupação com propostas que podem agravar o processo de fragilização do SUS: “É um momento muito delicado e eu acho que as entidades que defendem a saúde pública precisam estar atentas e mobilizadas para enfrentar os tempos que virão”.

 

O senhor já afirmou em outras oportunidades que há uma questão política e ideológica que leva ao desgaste da imagem do SUS. A população brasileira não tem um sentimento de pertencimento ao SUS? É isso que leva ao desgaste?

Talvez esse seja um dos temas mais importantes e angustiantes porque está no campo do processo de construção de uma consciência política, no campo das ideologias, no campo essencialmente político-cultural. É preciso tentar entender e analisar como é que a população percebe e vê a saúde na sua vida, no seu dia a dia. Existem várias maneiras de apreender isso, uma muito comumente utilizada no Brasil são as pesquisas de opinião feitas pelos institutos como o Ibope e Datafolha. Quando você analisa essas fontes percebe que o grau de avaliação negativa é muito alto. Mas quando você olha para outros tipos de pesquisa mais estruturadas e complexas, como a PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), onde o entrevistador pode sentar com o entrevistado e aprofundar a entrevista, aparece um retrato bastante diferente da qualidade dessa percepção. De um lado temos a abordagem jornalística, com avaliações superficiais e bastante negativas – hoje, acho que está em 85% – baseada em entrevistas muito rápidas, onde a resposta está muito contaminada pela própria circulação das notícias, negativas normalmente, na sociedade, porque aí está expresso o padrão da grande mídia, sempre muito crítico.

De outro lado, temos a própria experiência pessoal ou familiar de contatos reiterados com os serviços de saúde, usualmente atendimentos de urgência e emergência onde aparecem as questões mais agudas – “Ah, minha tia foi na UPA, ficou 4h esperando…”. Na entrevista mais curta, menos profunda, essas percepções superficiais afloram com mais rapidez e tem maior presença do que reflexões mais profundas – “Mas, pensando bem, realmente eu tive um tio que fez um transplante, e está muito bem” / “Ah, mas você fez o transplante onde?” / “Ah, foi no SUS”. Mas a tua pergunta toca em um ponto mais complexo e estrutural quando se compara a sociedade brasileira com as sociedades mais avançadas que têm sistemas universais. Aí sim é possível afirmar que a sociedade brasileira não tem uma percepção clara do que significa, para a sociedade em termos coletivos, de redução de desigualdades, de garantias e de qualidade de vida, o papel do sistema de saúde público universal financiado com recursos públicos. Talvez o grande desafio da Reforma Sanitária brasileira hoje não esteja nem no financiamento, nem na organização dos serviços, nem no modelo assistencial. É um desafio essencialmente político e se coloca nesse nível.

A sociedade brasileira não tem uma percepção clara do que significa, em termos coletivos, de redução de desigualdades, de garantias e de qualidade de vida, o papel de um sistema público de saúde universal financiado com recursos públicos.

Esse sentimento de não pertencimento é percebido também entre os trabalhadores de saúde? Falta no SUS uma política de pessoal?

Sim. Existem alguns paradoxos e contradições nesse processo, o principal deles, eu diria, é o fato de que a vanguarda dos trabalhadores, usando o conceito da esquerda mais tradicional, marxista, que são os sindicatos dos trabalhadores, historicamente na retórica sempre apoiaram o SUS e a reforma sanitária, mas na prática, na verdade, sempre fizeram acordos coletivos de trabalho onde a exigência por um seguro privado esteve sempre na mesa de negociações. Isso é uma contradição e, eu diria, uma das fragilidades da reforma sanitária brasileira. O SUS está na retórica da CUT (Central Única dos Trabalhadores), da CGT (Comando Geral dos Trabalhadores), de todas essas entidades… mas na prática, na hora de usar – “qual sistema eu vou usar? Ah, eu quero para mim e para minha família um plano de saúde”. E essas contradições estão presentes em nossas redes, dos próprios trabalhadores da saúde. Eu sou funcionário da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e nós temos um plano nosso, autônomo, coletivo, da própria Fiocruz. Os próprios construtores da reforma sanitária e os defensores do SUS, na prática, usam e se organizam para ter essa assistência diferenciada, o que é uma coisa um pouco esquizofrênica, eu diria. Isso está presente também na medida em que os funcionários públicos dos três poderes – do Judiciário, do Legislativo e do Executivo – têm seguro de saúde privado e, o mais paradoxal, é que parte dessa assistência é financiada com recursos do orçamento da União. Quer dizer, recursos de toda a sociedade brasileira, o que é absolutamente incompatível com os conceitos que nós defendemos. Traduzindo: é razoável supor que cada cidadão tenha a liberdade para escolher se quiser ter o seguro privado, mas não é razoável que ele, sendo funcionário público, parte do custo desse plano de saúde seja custeado pela população brasileira. Esse é o primeiro ponto.

O segundo ponto tem a ver com o conjunto de subsídios e renúncias fiscais que hoje é concedido aos planos e seguros saúde, que implica anualmente algo em torno de R$25 bilhões, segundo estudo recente do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). São recursos que deveriam, em tese, entrar no orçamento do SUS e não entram porque o Estado abre mão de recolher esse montante de recursos para subsidiar, estimular o mercado privado. Esse conjunto de fatos expressa uma contradição que se liga a nossa reflexão anterior, dentro desse contexto mais amplo, de como é que se dá o processo de construção de ver a saúde como um bem público em um país tão diferenciado, tão desigual como o Brasil; por que é importante defender um sistema universal, por que esse sistema de saúde tem que ser financiado com recursos de todos, nessa perspectiva da solidariedade coletiva. Esse é mais um fator que complexifica, digamos assim, o quadro na medida em que os próprios trabalhadores que constroem cotidianamente o SUS usam o setor privado.

Isso acaba favorecendo uma imagem – e a mídia também tem um papel fundamental nisso – de um “SUS para os pobres”?

Ah sim, são as sutilezas do discurso hegemônico. Volta e meia você vê o editorial de um grande jornal dizendo que “nós temos que defender o SUS, ele tem que ser aperfeiçoado, tem um monte de problemas etc etc”, em seguida vem: “vírgula, principalmente ou basicamente porque o SUS é um sistema muito importante para os pobres”. E nós não propusemos a Reforma Sanitária nem colocamos na Constituição o capítulo Saúde – “saúde é direito de todos e dever do Estado” – pensando em um sistema para os pobres. Na verdade, pensamos em um sistema para todos. Tanto que nós lutamos a vida inteira contra políticas focalizadas, fragmentadas e programas verticais. Pelo contrário, lutamos pela horizontalização, linhas de cuidado, integralidade, democratização, participação. Eu diria que esse é um ponto bastante importante e significativo desse debate.

Nós não propusemos a Reforma Sanitária nem colocamos na Constituição o capítulo Saúde – ‘saúde é direito de todos e dever do Estado’ – pensando em um sistema para os pobres. Na verdade, pensamos em um sistema para todos.

No evento “Diálogos Capitais: Saúde, os desafios da saúde no Brasil do século XXI”, promovido por Carta Capital, o senhor afirmou que é importante que se fortaleça a ideia de que saúde de qualidade é cara. Há um reconhecimento geral de que a saúde pública é subfinanciada no Brasil, mas, por outro lado, propostas que envolvem aumento de impostos, mesmo para financiar a saúde, não costumam ser bem recebidas por grande parte da população. Há saída para este impasse em torno do clássico problema do financiamento?

A questão do financiamento não está nem no campo da macroeconomia, nem no campo da legislação tributária, ela está no campo da política. Se você analisar por que o SUS já nasce subfinanciado, por que nunca se conseguiu regulamentar a Emenda 29 e, quando se conseguiu regulamentar, a União não aumentou sua participação no financiamento, e por que agora existe uma PEC que tira recursos do sistema de saúde, aí voltamos à primeira pergunta. É porque na verdade não se conseguiu ainda construir hegemonia no sentido de que a sociedade como um todo exija mais recursos para a saúde e, de maneira coletiva, construa alternativas. Nós sabemos quais são as alternativas: temos que ter uma estrutura tributária menos regressiva, temos que ter taxação sobre grandes fortunas, temos que repensar toda essa estrutura fiscal, temos que repensar os gastos da União com pagamento dos juros e do principal da dívida interna. Quando você olha o conjunto de recursos que a sociedade brasileira recolhe através de impostos, fruto do trabalho de todos os brasileiros, quando você vê para onde são direcionados esses gastos, vê que a saúde recebe apenas 5% desses recursos, educação outros 5% e grande parte vai para o pagamento da dívida interna. Quanto mais a política econômica aumenta os juros, mais aumenta o serviço e o custo da dívida interna. Existe uma grande preocupação nessa situação de impedimento da presidenta Dilma, se vão surgir ideias exóticas em relação, por exemplo, à desvinculação dos recursos da saúde e educação. O risco de eventualmente alguém propor o início de co-pagamento, ou seja, de você pagar por alguns procedimentos como fator de limitação de demanda, de acesso, entre outras coisas. Se isso acontecer vai aprofundar desigualdades, vai agravar o processo de fragilização do Sistema Único de Saúde.

Essa questão do financiamento expressa o conjunto das contradições e o conjunto da ideologia que domina as contas públicas, a grande economia, e que dirige o país. Ela não é exatamente um problema para os economistas nem para os tributaristas, é um problema de nós todos, de todos os cidadãos: para onde está indo o fruto do meu trabalho, os impostos que estou pagando como cidadão? Isso está sendo colocado onde, em uma rede de escolas públicas? Agora eu me lembro do Anísio Teixeira: “o motor que constrói a democracia é a escola pública, gratuita e universal”. Nós estamos caminhando por aí? Eu não estou vendo. Estamos caminhando para uma privatização da educação e, no caso da saúde, o que se vê… Eu não sou pessimista, eu valorizo muito os gigantescos avanços que tivemos no SUS, eu não me alio aos pessimistas de plantão, às hienas de plantão, como diria Nelson Rodrigues, porque nós avançamos muito. Mas nós estamos em um momento muito complexo em que pode haver uma fragilização da base que dá sustentabilidade ao sistema, o que seria dramático, ainda mais em uma conjuntura de recessão, de desemprego, de piora das condições de vida. Nós sabemos que o impacto disso sobre a saúde das pessoas é muito maior e vai aumentar a demanda sobre os serviços de saúde. O desemprego tira gente que tinha plano e joga no SUS. É um momento muito delicado e eu acho que as entidades que defendem a saúde pública precisam estar atentas e mobilizadas para enfrentar os tempos que virão.

Quando estava à frente do Ministério da Saúde o senhor se envolveu em alguns debates polêmicos, como o apoio ao direito da mulher de abortar, a defesa da ampliação da restrição à publicidade de bebidas alcoólicas e a quebra da patente do efavirenz (medicamento para tratamento de HIV/Aids) para compra de um genérico mais barato usando a prerrogativa permitida pela Organização Mundial do Comércio de proteger a população. Você se arrependeu de algum desses posicionamentos? Por outro lado, há alguma polêmica que você se arrepende de não ter se envolvido?

Corremos o risco de que a cláusula pétrea da saúde como um direito de cidadania, universal, possa sofrer ataques. Quem trabalha tem o plano de saúde, com um pacote de coisas, e quem é pobre tem um negócio popular, com um SUS enfraquecido. Seria uma volta ao passado, ao que era o INAMPS.

Eu acho que eu fui o ministro que mais se envolveu em polêmicas (risos), eu adoro uma polêmica. São temas muito caros para mim, todos eles. A questão dos direitos sexuais e reprodutivos, a questão do aborto. Eu tenho quatro filhos (homens), mas sou casado com uma mulher maravilhosa, tive uma mãe fantástica, sempre fui muito ligado às questões do movimento feminista. Então quando apareceu a oportunidade eu puxei esse debate. Ontem eu estava lendo uma matéria de uma pesquisadora da Paraíba chamando a atenção para o fato de que mesmo bebês que nascem com o perímetro cefálico normal podem ter graves problemas no seu desenvolvimento por conta da infecção pelo vírus Zika. E isso não está sendo tratado, pelo contrário, é lamentável. Esse campo dos direitos sexuais e reprodutivos perdeu muito espaço nos últimos anos, com a bancada evangélica, os setores conservadores da sociedade…

No caso da propaganda de bebida, isso tem origens na minha preocupação com a propaganda de medicamentos. Eu publiquei um livro nos anos 80 sobre isso (A Propaganda de Medicamentos e o Mito da Saúde, 1986), o papel da mídia como um vetor de deseducação, de construção de uma consciência sanitária negativa. A questão dos medicamentos e a questão da cerveja, da bebida alcoólica, se inserem aí. A minha crítica foi no sentido de que, primeiro eu diria que a propaganda de cerveja é um fator muito importante de estímulo ao uso abusivo para crianças e adolescentes. Vários estudos mostram que os adultos já têm um padrão de consumo de bebida mais ou menos estruturado, mas aos 10, 12, 13, 15 anos (as crianças e adolescentes) estão começando a construir seu padrão de consumo. É claro que a família tem um papel importante, assim como a escola e os amigos, mas a mídia, colocando aquelas mensagens, geralmente explorando os atributos de beleza feminina, ofensivo do ponto de vista também das mulheres…Então eu me meti nessa confusão, discutindo com o Zeca Pagodinho (risos), um grande artista, mas enfim…

E a questão do efavirenz eu acho que foi um marco, foi muito importante. Eu estava vendo que, de 2007 para cá, o Brasil economizou mais de 100 milhões de dólares com a internalização da tecnologia de produção do efavirenz. Eu repetiria tudo e, se pudesse, arrumaria mais polêmicas porque elas abrem caminhos.

Houve alguma polêmica, algum debate mais acalorado, que o senhor se arrepende de não ter se envolvido ou que na época recuou?

Na questão do aborto o problema foi que a coisa esquentou quando o papa estava visitando o Brasil (Bento XVI, em 2007) e eu polemizei com ele, não diretamente, mas indiretamente pela mídia, e minha mãe, que era muito católica, me deu uma cobrada, pediu para eu me segurar porque o papa estava aqui. Eu evidentemente obedeci a determinação materna, mas logo depois ocorreu um episódio em Pernambuco em que o bispo estava exigindo que uma menina de nove anos que foi violentada e engravidou tivesse o filho, aí entrei em discussão com o bispo… Talvez eu me arrependa de não ter arrumado mais confusões. Confusões no bom sentido. Por que? Eu creio que um ministro da Saúde de um país como o Brasil tem um papel centralmente político-pedagógico, ele tem que sinalizar para a sociedade quais são as grandes questões. Claro que ele tem que ter uma dimensão da capacidade de organizar o acesso à rede, a qualidade, prezar pela lisura, pela transparência, pela ética, mas também tem que ter esse papel de dizer para a sociedade quais são as grandes questões envolvidas em situações que levam ao aumento do risco de doença e também questões que são fundamentais para melhorar o padrão de saúde. Eu me envolvi também com uma outra polêmica que vocês esqueceram (risos). No Dia Nacional de Luta contra a Hipertensão Arterial, com a participação da Sociedade Brasileira de Cardiologia, eu propus que as pessoas fizessem sexo cinco vezes por semana como uma medida de saúde pública para melhorar a saúde. E deu uma repercussão, teve até cordel que fizeram com essa historinha. Acho que é um bom exemplo do que um ministro tem que fazer, porque todo mundo faz sexo, todo mundo gosta de fazer sexo, é fundamental, mas tem ainda muito tabu, muito preconceito, muita falta de informação. E aí, vamos fazer sexo? Mas tem que usar camisinha! Vamos fazer sexo? Cuidado com as doenças sexualmente transmissíveis, tem HIV, agora tem a blenorragia voltando, tem sífilis neonatal aparecendo. Tem várias dimensões, tem a dimensão do prazer, da qualidade de vida, até benefícios cardiovasculares, mas também tem o lado da saúde pública.

Os sindicatos dos trabalhadores, historicamente, na retórica sempre apoiaram o SUS e a reforma sanitária, mas na prática, sempre fizeram acordos coletivos de trabalho onde a exigência por um seguro privado esteve sempre na mesa de negociações.

Tem ministro que é mais calmo, é mais quieto. Eu tive uma formação muito singular, curiosa do ponto de vista da academia / pesquisa / ensino / serviço / gestão…foi ampla. Tudo que tem a ver, por exemplo, com o emocional, com a psicanálise, eu valorizo muito. Isso eu trago da minha formação pessoal e da minha experiência também. Eu cliniquei durante muitos anos, eu trabalhei numa metalúrgica como médico, então eu também andei por ali pela saúde do trabalhador. É diferente de outros ministros que são políticos, por exemplo, que não são da área de saúde, não têm essa visão. Ou que têm outro estilo, tem uma questão mesmo de estilo. Eu não resisto a me envolver nas coisas que considero que são fundamentais. Para quê? Isso faz parte do processo de construção de uma consciência sobre saúde. O que é saúde? Saúde é médico? É hospital? Isso também é, mas não é só isso e isso não é o mais importante. Como é que você enfrenta as discussões estruturais, de iniquidade, de injustiça? Eu faria mais polêmicas, mas não tive tempo (risos).

Quem lhe acompanha nas redes sociais percebe uma atuação constante e engajada. Você acredita que as redes sociais são um campo privilegiado de difusão de informações e luta política?

Com certeza, ainda mais no Brasil de hoje, onde você tem a grande mídia controlada por cinco famílias. Como é que você tem acesso ao outro lado, à outra versão, ao outro olhar? Tudo bem, você tem pessoas interessantes que publicam também nos grandes jornais e revistas, mas são, digamos assim, questões pontuais. Eu acho que a grande rede tem esse papel, tem de tudo ali: maluquice, delírio, ofensa, perseguição, psicopatia, mas também tem troca de informações, colocações instigantes, debates, troca de experiências. É um instrumento inovador, você coloca um comentário e rapidamente centenas, milhares de pessoas estão lendo o que você escreveu e interagindo, então para a saúde pública é um espaço bastante interessante e importante.

Eu percebo que a Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva) está no Facebook, o Cebes (Centro Brasileiro de Estudos de Saúde) estão lá no Facebook. Você tem vários níveis – pode ter coisas conjunturais, mais curtas, jornalísticas, pode ter coisas de mais reflexão, e tem a base de pesquisa – e isso rapidamente está circulando por aí. É um fenômeno novo, tem também seus problemas e suas contradições. Eu uso muito para me informar, acho que é uma ferramenta poderosa para você buscar informação, de repente aparece um artigo maravilhoso, uma entrevista sensacional, que você não conseguiria achar se não estivesse naquele espaço dos seus amigos compartilhando coisas interessantes. Claro que também tem coisas esotéricas, mas eu tenho percebido que no Facebook, por exemplo, aquela coisa de selfie e coraçõezinhos diminuiu muito. Claro, a conjuntura política acirrou os ânimos e a coisa ficou mais politizada.

Eu sempre recordo que nós, os mais antigos, nos anos 70, quando começamos o Cebes, a Reforma Sanitária, não tínhamos nem telefone celular, nem internet, nem fax, nem computador. Eu me lembro de que escrevíamos os documentos com frequência à mão e quando datilografávamos alguns possuíam uma máquina de escrever elétrica, com um botãozinho que fazia uma cópia do que fora digitado. Nos comunicávamos por telefone fixo. Agora você tem uma ferramenta que está em todos os lugares do mundo, em tempo real. Então, nós podemos ser muitos, mais do que éramos há 40 anos atrás. A gente ainda não usa com toda a potencialidade que esse instrumento permite. Eu acho que a Abrasco, o Cebes, as entidades da área de saúde pública têm que construir uma estratégia de comunicação e de informação mais agressiva no sentido de entrar nessa luta política para construção de uma consciência sanitária.

Eu creio que um ministro da Saúde de um país como o Brasil tem um papel político-pedagógico. Ele tem que sinalizar para a sociedade quais são as grandes questões que levam ao aumento do risco de doenças e também as que são fundamentais para melhorar o padrão de saúde.

Na atual conjuntura política brasileira, quais são as principais ameaças a uma saúde pública universal, integral e gratuita, em sua opinião? Quais das propostas atualmente em discussão te preocupam mais?

Bom, primeiro nós corremos o risco de que essa cláusula pétrea, que é a saúde como um direito de cidadania e universal, possa sofrer ataques. E ao mesmo tempo, que seria a outra face disso, nós corremos o risco da sociedade dizer: “não, o sistema público vai atender os pobres através de programas focalizados. Já tem o Bolsa Família, né? Vai ter o SUS Família”. E as pessoas que têm emprego formal teriam o plano de saúde, que nada mais é do que a PEC do Eduardo Cunha propõe. Seria curiosamente uma volta ao passado, ao que era o INAMPS (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social). Quem trabalha tem o plano, um pacote de coisas, e quem é pobre tem um negócio popular, prefeituras, centros de saúde, saúde da família.

Acho que uma das fragilidades do SUS, hoje, é o fato de não termos uma cobertura universal do Saúde na Família. Obrigatória! Na minha visão, o Saúde na Família tinha que ser uma estratégia que cobrisse 100% dos brasileiros mesmo aqueles que têm planos e seguros, deveriam ter como porta de entrada no sistema um PSF público. É uma polêmica isso, mas acho que seria um fator muito importante porque hoje há um PSF muito interessante, heterogêneo, tem municípios com alta qualidade, outros nem tanto, mas que só os usuários do cotidiano do SUS usam, quando na verdade ele tem potencial para ser um instrumento de racionalização do próprio setor privado.

O primeiro contato da população, deveria ser com um clínico geral e não com um especialista?

Exatamente. Hoje a população que utiliza planos e seguros tem acesso direto a qualquer especialista, basta pegar o livrinho, na verdade agora é na internet. “Hoje eu acordei e estou achando que meu fígado não tá legal”. Vou lá ao livrinho e… hepatologista!. Ótimo, marcado! “Acho que preciso fazer uma ressonância da minha coluna porque…”. É uma maluquice. É insustentável. Você não sustenta um sistema, do ponto de vista econômico e estrutural, dessa maneira. Na Inglaterra, as pessoas só têm acesso ao especialista depois que o clínico geral diz “ok, você está precisando de um especialista”. Essa disfuncionalidade e essa fragmentação de várias portas de entrada no sistema tem um papel importante nisso, mas eu diria – respondendo a sua pergunta – que a ameaça central seria esse “back to the future”, a gente voltar para uma situação anterior. E isso seria insustentável. Apesar de o próprio Congresso ter contradições, na retórica todos os deputados defendem o SUS, mas na prática estão sempre bombardeando, não creio que haja consenso na sociedade em torno de uma medida como essa de tão grande retrocesso, mas isso é um risco.

O senhor continua otimista então?

O Carlos Gentile de Mello, brilhante sanitarista com quem tive o prazer de conviver e que durante muito tempo publicou uma coluna semanal na Folha de São Paulo, dizia que todo sanitarista é um otimista incorrigível. Quando você escolhe essa profissão não tem jeito. Eu lembro de uma história muito interessante. Uma vez ele me chamou na casa dele, em Ipanema, porque precisava falar muito comigo (naquela época eu era presidente do Cebes). Eu fui lá, ele me recebeu, todo orgulhoso foi no quarto dele e voltou para me mostrar: “Temporão, além de publicar na Folha de São Paulo eu estou publicando agora na Tribuna de Madureira” (Madureira é um bairro do Rio de Janeiro, era um jornal de bairro). Ele não estava brincando. Para ele era tão importante publicar na Folha de São Paulo quanto na Tribuna de Madureira. Era um otimista incorrigível. Para ele qualquer espaço de trabalho, qualquer estratégia de abrir a cabeça das pessoas e discutir políticas de saúde era preciosa.

Se tivermos que pagar por alguns procedimentos de saúde como fator de limitação de demanda, de acesso, entre outras coisas, vamos ver o aprofundamento desigualdades, o agravamento do processo de fragilização do Sistema Único de Saúde.

A centralização na figura do/a médico/a é um problema da saúde no Brasil?

Eu recolocaria a questão. Existem situações no Brasil, no modo de organizar o cuidado, que outros profissionais poderiam ter um papel mais relevante? Sim. Por exemplo, tem uma série de cuidados que poderiam ser de responsabilidade dos enfermeiros. Por que no Brasil só quem faz parto é médico obstetra e não pode ser enfermeiro obstetriz? Na nossa lei não tem, mas na Holanda, na Inglaterra quem faz parto normal é enfermeira, o médico só faz cirurgia cesárea. Aí existe uma luta corporativa, os médicos não querem abrir mão. Por exemplo, só quem pode prescrever medicamentos são médicos e, na verdade, você poderia ter para algumas questões de saúde pública uma flexibilização disso para que as enfermeiras assumam um papel mais relevante em determinadas regiões do país onde não existam médicos – agora com o Mais Médicos isso melhorou muito.

Tem uma outra coisa que você coloca e que me chama atenção, é essa hegemonia do pensamento médico que também expressa o risco da questão da medicalização. Hoje vivemos um problema muito grave, que é a fragmentação do cuidado, a hiperespecialização precoce dos profissionais. Todos nós passamos por isso. Um exemplo familiar: meu filho essa semana foi no ortopedista porque estava com uma dor, quando ele chegou em casa eu perguntei como foi e ele disse – “a consulta durou 10 minutos, ele praticamente não me tocou, só perguntou o que eu estava sentindo e me pediu uma ressonância”. É aquela coisa da clínica, a primeira droga que você dá ao paciente é o médico, é o contato, é a relação médico-paciente. Se você não estabelece um vínculo o resultado desse encontro terapêutico singular não se dá em toda a sua potencialidade. Por uma série de fatores, por excesso de demanda, pelo fato de os profissionais de saúde terem vários empregos, de não terem o que a gente chama de tempo integral geográfico – quer dizer, o médico trabalharia num só lugar o dia inteiro, numa policlínica, num PSF ou num hospital –, há uma fragmentação e uma perda de qualidade desse contato. O impacto disso, do ponto de vista de custos para o sistema e de qualidade da atenção, é brutal.

Não existe nenhuma pesquisa no Brasil que tente analisar, por exemplo, a quantidade de vezes que o paciente tem que retornar ao serviço porque o primeiro vínculo, o primeiro contato, não foi realizado adequadamente. O paciente não entendeu direito a prescrição ou não teve acesso ao exame que ele tinha que fazer, então ele volta num outro serviço porque o problema de saúde dele continua. Essa questão da integralidade é muito importante. Eu tenho percebido também uma certa tendência dos serviços de saúde em tentar se livrar do paciente e não de resolver o problema do paciente. E às vezes você está diante de um quadro que pode ser grave, ainda com uma expressão clínica pouco clara, mas pode ser potencialmente grave. Tem um princípio que é quando uma pessoa entra num serviço, aquele serviço passa a ser responsável pela saúde daquela pessoa e pelo seguimento e solução daquele problema, mesmo que a solução não esteja naquele serviço, e sim em um outro.

É muito comum eu receber pedidos os mais variados: “minha tia precisa internar”, “meu avô precisa operar”… Aí eu pergunto: “você foi no médico?” / “eu fui”/ “ele falou o que?”/ “que eu tenho isso e tenho que fazer esse exame”/ “sim, e aí?”/ “mandou eu ir embora e me virar”. Como se virar? O serviço é obrigado a informar “vá fazer esse exame em tal lugar”. São problemas que expressam uma desestruturação, uma desorganização e uma má qualidade. Claro que isso é muito heterogêneo, temos municípios onde isso está mais organizado e funciona melhor, mas eu diria que nas grandes cidades, nas regiões metropolitanas, nas periferias, isso aparece com mais contundência.

Esse encaminhamento, essa responsabilidade com o paciente, tem uma relação também com o PSF…

Mas aí o PSF tem que estar em rede, tem que ter para onde pedir o exame, para onde mandar o paciente. Se essa referência não existe, o PSF fica de mãos atadas. Por isso é fundamental a construção de redes integradas, por isso foi criado o NASF (Núcleo de Apoio à Saúde da Família), por isso foram criados os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial), por isso tem que ter uma policlínica com especialistas, por isso tem que ter hospitais de referência. Mas isso tem que funcionar de maneira integrada. Por exemplo, é muito comum em outros países, como a Inglaterra, o médico de saúde da família atender um caso que precisa de um cardiologista, ele consegue essa consulta com o especialista e eles fazem interconsultas – o próprio médico da família acompanha o caso junto com o cardiologista e aprende, eles trocam informações, ele acompanha o doente. Aqui, com toda a franqueza, ele manda para o cardiologista e não quer mais saber daquele paciente. Me livrei de mais um, agora o cardiologista que resolva. Mas por que? Porque lá médico trabalha 8h por dia no Saúde da Família, ele não tem outro emprego. Na Inglaterra quando o médico se forma escolhe se vai trabalhar no SUS inglês ou no setor privado. Aqui não, existem vários vínculos públicos e privados. Isso cria conflitos de interesse, problemas de qualidade, de seguimento do doente. É muito complexo.

Como ex-ministro da Saúde, como você avalia a escolha de um engenheiro civil para ocupar o cargo? As recentes declarações de Ricardo Barros indicam que o projeto de desmonte do SUS ganhou força e não há mais nem preocupação retórica em defender o Sistema Único de Saúde?

A questão da formação profissional é secundária. O principal é a falta de compromisso do governo interino com a saúde, com a educação, com a ciência. Isso explicita uma visão de país empobrecedora e uma visão de desenvolvimento pobre e excludente.


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