26/04/2024 - Edição 540

Entrevista

Alternativa à crise precisa ser gestada por novas forças populares mobilizadas

Publicado em 19/04/2016 12:00 -

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

Guilherme Boulos é graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e especialista em Psicologia. Atualmente coordena o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Nesta entrevista, ele fala das alternativas para a crise política que, em sua opinião, farão o Brasil “andar para trás”. Entre elas, menciona a possível gestão de Michel Temer à frente da presidência da República e a proposta de eleições gerais. Boulos fala também das perspectivas da esquerda no Brasil pós Dilma.

 

Quais as suas impressões sobre a crise política?

Essa crise precisa ser analisada desde o ponto de vista das suas razões mais estruturais até as situações conjunturais. O pano de fundo é que com o avanço da crise econômica houve uma estratégia de conciliação no país. Os 13 anos de governos petistas foram marcados por governos que buscaram fazer uma conciliação através do chamado modelo do “ganha-ganha”, em que se agradava a elite econômica do país e a burguesia financeira e, ao mesmo tempo, se desenvolviam políticas sociais que melhoraram a vida dos trabalhadores mais pobres. Essa estratégia foi se esgotando, porque não foi feita nenhuma reforma estrutural no sentido de combater estruturalmente as desigualdades e os privilégios no Brasil. O esgotamento desse modelo se expressou com o agravamento da crise econômica, com a crise política, com a perda da governabilidade e com uma polarização nas ruas.

Quais são as questões mais relevantes a serem observadas nesse momento para compreender o que está acontecendo no país?

Do ponto de vista mais conjuntural, esse esgotamento tem se refletido através de uma tentativa da direita histórica brasileira de se impor como uma saída para a crise, como uma alternativa para o esgotamento desse sistema, que é uma saída reacionária, uma saída de querer implementar um conjunto de contrarreformas, um pacote antipopular – que sequer Fernando Henrique conseguiu fazer na década de 1990 -, com métodos golpistas, com um procedimento que, no caso dos abusos do judiciário, ameaça garantias constitucionais, com um procedimento que, via mídia e posturas irresponsáveis de alguns partidos, insufla uma intolerância quase fascista nas ruas, e com um procedimento parlamentar golpista para tentar derrubar a presidente Dilma, apesar de seu governo ter incorporado várias das pautas da própria direita. Mas para derrubá-la estão abrindo mão de qualquer procedimento legal e democrático.

A saída do PMDB do governo foi oportunista, como tudo o que o PMDB fez na história brasileira nos últimos 30 anos. O PMDB chegou ao governo duas vezes no Brasil, e nas duas vezes não foi pelo voto popular.

Você já disse que “o período de conciliações se encerrou”. É isso mesmo?

Não há mais condições para essa conciliação. A condução coercitiva do Lula pela operação Lava Jato – arbitrária e ilegal – foi um símbolo do esgotamento dessa política de conciliação. Lula encarnou no seu governo a realização dessa política e está sendo perseguido pela elite, a mesma elite que, ]inclusive, ganhou dinheiro no seu governo. A saída do PMDB do governo foi oportunista, como tudo o que o PMDB fez na história brasileira nos últimos 30 anos. O PMDB chegou ao governo duas vezes no Brasil, e nas duas vezes não foi pelo voto popular: chegou ao governo com Sarney, num governo ilegítimo feito pela Ditadura Militar, e chegou ao poder com Itamar Franco, após o impeachment do Collor. O PMDB é um rato do poder. O PMDB representa o pântano no parlamento e na política nacional.

O modelo político está esgotado…

Sim, e as saídas que estão sendo apresentados são para andar para trás. É por isso que consideramos muito temerária, por exemplo, a proposta de eleições gerais, como alguns setores têm defendido, porque no clima político que vem se insuflando no país, o risco de isso ser apropriado por setores muito mais à direita é grande, principalmente considerando-se o que é o sistema político brasileiro. O que se esgotou não foi o governo Dilma apenas, o que se esgotou foi esse sistema político, essa forma de fazer política, a relação promíscua entre o setor privado e o poder público, particularmente na forma de financiamento eleitoral. Portanto, acreditar que uma eleição resolva nosso problema não me parece muito animador.

Qual a saída?

Nós temos de fato uma carência de saídas, temos um problema. A saída é ampliar a mobilização popular para que haja condições de construir caminhos à esquerda. A saída que precisamos construir para esse momento passa por criar uma nova relação de forças, passa por entrar em cena nas ruas com mais força com os atores populares, aqueles que não foram às manifestações na Avenida Paulista, que estão em casa observando a crise, que também estão extremamente insatisfeitos com este governo, mas que também não têm nenhuma perspectiva de que a direita brasileira, que PSDB ou PMDB tenham qualquer saída.

O esforço que temos feito enquanto movimento social e um conjunto de movimentos é construir uma ampla mobilização popular que passa hoje, em um primeiro momento, pelo enfrentamento desse golpismo, em defesa do que nós temos de democracia no Brasil, que é precária e limitada, mas que está ameaçada. Passa, também, por enfrentar a direita, mas enfrentando também as políticas antipopulares deste governo, e apontar uma nova saída para a crise. O problema é que esta saída ainda não está gestada, esta saída precisa se sustentar por novas forças populares mobilizadas.

O que se esgotou não foi o governo Dilma apenas, o que se esgotou foi esse sistema político, essa forma de fazer política, a relação promíscua entre o setor privado e o poder público, particularmente na forma de financiamento eleitoral.

Você disse que não se pode apostar nas saídas que estão sendo apresentadas no momento. A quais saídas você se refere?

A saída mais clara de andar para trás é o governo Temer, é o impeachment. Assumir o vice, Michel Temer, porque ele já disse a que veio quando lançou o programa “Uma ponte para o futuro”, que já é universalmente conhecido como “ponte para o passado”. O seu interlocutor direto, Moreira Franco, concedeu uma entrevista na última semana falando de contrarreformas brutais: desindexação do salário mínimo, ataque a direitos trabalhistas, fim de programas sociais, fim do programa Minha Casa Minha Vida, do uso do FGTS para programas sociais e ataque a subsídios. Esse é o programa do Michel Temer. Trata-se de um nível de regressão social brutal. Nem o neoliberalismo de Fernando Henrique Cardoso, que foi o governo mais impopular do Brasil no último período, ousou chegar a esse ponto. Michel Temer seria um governo que, cá entre nós, careceria de uma legitimidade básica. Nas pesquisas de intenção de voto hoje, ele tem 1%, ou seja, ele se tornaria o presidente da República por via indireta e aplicaria o programa do empresariado mais carniceiro e brutal; isso é andar para trás.

Você mencionou a necessidade de uma nova forma de fazer política. Para isso, seria necessária uma reforma do sistema político a fim de garantir maior representatividade da população?

O sistema político brasileiro precisa ser revolucionado. Primeiro, é preciso mudar totalmente as regras de campanha eleitoral, porque não tem cabimento que o poder econômico tenha esse peso que tem hoje nas campanhas eleitorais. Todo mundo fala da Lava Jato e da corrupção e fica numa superfície udenista de denúncia, mas o que a Lava Jato de algum modo mostra, tirando seus exageros perigosos, é o que a esquerda brasileira diz há 20 anos: que esse sistema político funciona na base do troca-troca, que as empresas financiam campanhas eleitorais e que depois quem ganha está comprometido em favorecer os interesses dessas empresas. Tem que acabar com qualquer tipo de financiamento privado e tem que ter financiamento público e equitativo de campanha.

Segundo ponto: é necessário mexer no critério de participação. Democracia não significa apenas as pessoas votarem de quatro em quatro anos; uma democracia com essa concepção é muito limitada. É preciso ter outras formas de participação popular, como plebiscitos para decisões essenciais para a sociedade, é preciso construir espaços de decisão locais, formas de poder popular contínuas, que decidam sobre política pública, é preciso haver critérios claros para a participação de mulheres e negros na política, que é absolutamente desproporcional.

É preciso também estabelecer revogabilidade de mandato. Alguns estão defendendo essa pauta agora de uma forma oportunista porque querem derrubar o governo, mas revogabilidade de mandato é algo importante para estabelecer uma mudança de sistema político. Ou seja, há uma série de elementos que faz com que seja muito difícil acreditar que esse Congresso Nacional aprove ou que por dentro desse sistema político brasileiro se consiga uma mudança, porque o sistema é conduzido por quem se beneficia da sua forma atual. Isso significa que só com uma ampla mobilização popular conseguiremos mudar radicalmente o sistema político brasileiro e radicalizar a democracia.

No ano passado, você mencionou que não era hora de fundar um novo partido porque isso seria uma “criação a frio”, pois ainda faltava mobilização social. Hoje, ainda falta mobilização social?

Entendo que a grande tarefa da esquerda social no país é reconstruir um novo ciclo de mobilização de massa; essa é a tarefa essencial. Nós estamos avançando nesse sentido: a própria polarização da crise política no país tem gerado amplas mobilizações, tem trazido às ruas novos setores e isso é importante. Mas é preciso ir para além disso.

Existe uma ideia de que basta ter um entendimento de que se precisa de algo novo na política, que se “junta” um grupo, forma algo novo e dá certo, mas não é assim. O Partido dos Trabalhadores no seu tempo, nos anos 1980, surgiu de um caldo de mobilização popular de base, um caldo de legitimidade popular. Veja o Podemos na Espanha, que é tão citado para esse tipo de exemplo, ele surge do 15M, do movimento dos Indignados, que levou centenas de milhares de pessoas para as ruas.

Então, é preciso aprofundar esta mobilização e isso se faz retomando o trabalho de base. Esse é um ponto essencial, e a esquerda precisa reaprender a fazer o trabalho de base, dialogar com o povo. A esquerda se institucionalizou muito no Brasil nos últimos 20 anos e se acostumou a fazer só política de gabinete, no carpete, e não a política no barro. A esquerda precisa reaprender a pisar no barro e retomar a sua capacidade direta de diálogo com o povo, particularmente com os trabalhadores mais pobres, o povo da periferia. Isso significa também intensificar a luta por direitos sociais que estão ameaçados nessa conjuntura com a crise econômica.

É preciso ter outras formas de participação popular, como plebiscitos para decisões essenciais para a sociedade, é preciso construir espaços de decisão locais, formas de poder popular contínuas, que decidam sobre política pública.

Esse fortalecimento já está acontecendo na esquerda? Quais são os setores que estão se mobilizando ou compondo essa mobilização social?

Acredito que a luta contra o golpismo, até pela forma ostensiva e intolerante com que a direita está atuando, trouxe muitos atores à cena, basta ver as últimas manifestações: no dia 31 tivemos centenas de milhares de pessoas nas ruas. Elas também estão insatisfeitas com o governo do PT. Achar que naquela manifestação todos os presentes faziam parte da militância ou eram petistas que dizem “amém” ao governo, é uma ilusão. Havia milhares de pessoas descontentes com esse governo e que estão dispostas a pensar alternativas. Esse é um bom começo, e isso é fruto de uma conjuntura acirrada, mas ainda é pouco.

É preciso que essa mobilização se estenda nas periferias em processo de lutas por direitos sociais. Por isso achamos que um dos desafios é fortalecer o movimento popular através da organização de base na periferia em luta por moradia, transporte, saúde e trabalho, dado o aumento do desemprego no país. Acreditamos que dessas lutas, desse caldo real nas periferias urbanas e, também, no campo, pode brotar uma nova alternativa.

As manifestações foram apresentadas de modo geral de duas formas: os contrários e os favoráveis ao governo. Você identifica algo além disso?

Sim, acho que elas vão além disso. Há setores que foram às ruas no dia 13 de março deste ano e que foram às ruas três vezes no ano passado, em outras datas. Trata-se de um movimento capitaneado pelas camadas médias urbanas, com o apoio declarado do empresariado e da grande mídia nacional, que tem o intuito de derrubar o governo e que consegue ter um eixo de mobilização em torno do tema da corrupção, mas faz um debate raso sobre a corrupção, associando-a ao PT, inclusive, em alguns casos, preservando figuras como Eduardo Cunha.

No dia 13 de março, políticos do próprio PSDB não conseguiram discursar, porque esse caldo também vai tomando uma dimensão que sai do controle de quem o produziu. E embora ali, evidentemente, nem todos fossem de direita, quem está conseguindo dirigir o processo é a direita, basta ver, por exemplo, a aceitação que o Bolsonaro teve em algumas dessas manifestações. Então, elas vêm demarcadas, desenhadas, embora tenham diferenças políticas, mas o que as unifica é derrubar o governo.

As manifestações que ocorrem no campo mais articulado do movimento social se colocam contra o impeachment de forma ampla e, nesse sentido, a mídia diz que elas estão em defesa do governo, ou seja, faz uma associação direta: “isso é contra o impeachment e entusiasta do governo Dilma”, mas não se trata disso. Quem esteve nessas manifestações viu que não era esse o caldo, não era esse o perfil.

Essas manifestações têm muitos militantes históricos organizados, mas tem muita gente que também está desiludida com o PT, ou jovens que não têm uma referência e são críticos ao PT, mas que também reagem a esse nível de intolerância, às agressões fascistas nas ruas, a esse discurso de ódio produzido pelos setores à direita e “destilado” em algumas manifestações. Agora, se analisarmos a pauta do dia 31 — a última manifestação grande que ocorreu pelo país —, veremos que ela era contra o impeachment, caracterizando-o como o antigolpismo, mas era também contra o ajuste fiscal, defendendo uma nova política econômica, era contra a lei antiterrorismo que Dilma sancionou e da qual ela foi a autora, era contra a reforma da Previdência, que o próprio governo está pensando em fazer. Então, nessa manifestação não havia uma massa acrítica. Havia, sim, uma posição clara contra o impeachment, mas também um descontentamento com as políticas desse governo, até porque o povo trabalhador deste país não tem nenhuma razão para estar contente com essas políticas.

Alguns analistas dizem que há uma negação da política partidária em si e uns veem esse processo como algo positivo e outros como negativo. Como você o entende?

As pessoas estarem insatisfeitas com a política é muito compreensível, porque a política no Brasil foi quase que reduzida à política institucional: as intrigas parlamentares e palacianas, de fato, não geram motivo para a crença popular em relação à política e as pessoas estão descrentes de que a sociedade se transforme ou que a vida delas mude para melhor, por via desses instrumentos da política. Essa forma de fazer política está absolutamente desgastada, sem legitimidade e sem credibilidade; esse sistema político chegou ao seu esgotamento.

Qual é o problema aí? O problema é que alguns setores se valem dessa descrença da política para propor alternativas com um viés messiânico. Mas a saída para o esgotamento desse sistema político não é a negação da política, e sim a construção de uma alternativa que critique esse sistema político, que represente outra forma de fazer política baseada nas ruas. A forma de fazer governabilidade na Nova República no Brasil, desde a redemocratização do país, é uma governabilidade parlamentar, com acordos com oligarquias regionais, e essa governabilidade não funciona mais. Se ela continuar acontecendo, continuaremos tendo mais do mesmo e as pessoas ficarão cada vez mais descrentes e revoltadas com a política.

A esquerda se institucionalizou muito no Brasil nos últimos 20 anos e se acostumou a fazer só política de gabinete, no carpete, e não a política no barro. A esquerda precisa reaprender a pisar no barro e retomar a sua capacidade direta de diálogo com o povo.

Novamente, quais as saídas para este paradigma?

As saídas políticas passam por retomar a política nas ruas, por retomar a participação política do povo. Política não é só parlamento, política passa por uma nova mobilização de rua, por ter a rua como palco da política, e isso é essencial.

O que se propõe para isso?

Uma operação radical no sistema político, como eu disse em uma questão anterior, ou se pode propor um novo Berlusconi ou se pode propor uma alternativa fascista, com um próprio fascista do gênero: uma figura que vem de fora da política. O Berlusconi era um magnata da mídia. É possível procurar alguém que não está contaminado por essa política, mas que vem para exercer um projeto de dar um basta nos direitos sociais, vem na antipolítica para fazer o pior tipo de política; é isso que precisa ser combatido neste momento.

Ainda há espaços para o conceito de liderança política na esquerda?

Para o projeto que queremos construir, a carência maior não é de liderança, mas de construir mobilização nas ruas que sustente esse projeto. Então, acredito que não se trata de discutir um nome, mas de discutir o resgate de um projeto político de esquerda. Neste resgate se pode até ter bons nomes, com excelentes propostas e programas muito bonitos, mas ele não será possível se não reconstruirmos essa capacidade de ampla mobilização de rua, organizada, respaldada em um novo ciclo de mobilização de massa.

O que diferencia o MTST dos outros setores da esquerda brasileira?

O MTST não se considera um movimento absolutamente diferente. Ele é produto da esquerda brasileira nas últimas décadas. Agora, dentro da esquerda existem matizes e posições diferentes, setores do movimento social que historicamente são muito vinculados ao PT e adotam uma postura mais ligada ao governo, em defesa da política desse governo. O MTST não faz isso; o MTST preza por uma autonomia firme e radical e acredita na construção de um programa de reformas estruturais, de combate aos privilégios do 1% que governa a sociedade brasileira desde sempre.

Além disso, focamos essencialmente no trabalho de base, no sentido de que somos um movimento que busca se organizar através da base, tanto que construímos uma mobilização social relevante nos últimos anos a partir disso, retomando o trabalho de base com vistas em uma luta pelo direito social à moradia, pelo direito à cidade, por reforma urbana. Essas são algumas das propostas do MTST, embora o Movimento não seja autossuficiente nem se arrogue como a alternativa da esquerda.

Achamos que é importante construir espaços de unidade com amplos setores e, nesse sentido, impulsionamos a Frente Povo sem Medo, que é uma frente diversificada, heterogênea, que reúne setores dos movimentos sociais, inclusive, ligados ao PT e que têm posições distintas das nossas em relação ao governo e setores do movimento social que se colocam em uma posição à esquerda do governo. Nós achamos que construir esse campo de mobilização, tanto para enfrentar as políticas da direita como para enfrentar as políticas antipopulares do próprio governo, é essencial para uma saída à esquerda hoje.


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *