28/03/2024 - Edição 540

Especial

Sem grana

Publicado em 22/03/2016 12:00 -

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Márcia terminou de pagar em fevereiro um computador que havia parcelado no cartão de crédito. Foi a última das dez parcelas. No entanto, imediatamente ela substituiu a prestação por outra, uma máquina fotográfica super bacana, que consumirá R$ 250 de seu orçamento até novembro que vem. Ela acha que merecia o mimo. Nos quatro meses anteriores havia trabalhado loucamente, com poucos sábados e domingos de folga. Era justo torrar um pouco com ela mesma. O problema é que essa não é nem de longe sua minha única dívida. O cartão de crédito ainda vem cheio de outros pequenos gastos de “urgência” (leia-se cerveja, festas, ração dos gatos e combustível no fim do mês, quando o dinheiro já acabou). Fora as demais contas, impostos, imprevistos, etc. O resultado? Márcia está quebrada.

É a primeira vez que a geração de Márcia, nascida entre a década de 1980 e o começo dos anos 1990, vive uma crise financeira. Claro que a preocupação com possíveis demissões assombrou muita gente lá pelo começo dos anos 2000, quando a taxa de desemprego no Brasil ultrapassava os 14% e as demissões em massa eram comuns. Mas o cenário se acalmou, e este pessoal entrou na vida adulta sem grandes preocupações. A crise surgiu lá fora em 2008, mas o Brasil parecia escapar bem. Até que tudo começou a desandar outra vez.

Em meio a um turbilhão de problemas políticos, a inflação subiu 9,5% no último ano e meio, os salários ofertados caíram 20% e a taxa de desemprego passou de 6,8% para 8,3% (são 8,6 milhões de pessoas desempregadas — 1,7 milhão a mais que no ano anterior). A maior faixa de desocupados fica justamente entre os jovens, que correm atrás de emprego quando a crise aperta e os pais ficam sem grana. O desemprego e a inflação voltaram a assombrar — e agora, pela primeira vez, estamos bem no meio do furacão.

Desejo de consumir

Mas, saber que o país está em crise e que a situação tende a piorar não é o suficiente para acabar com a nossa vontade de comprar aquele tênis incrível que, olha só, está até em liquidação! O caso é que fazer compras dá muito prazer. Enquanto você cobiça um celular recém-lançado no mostruário da loja, o sistema de recompensa do seu cérebro começa a trabalhar. O nível de dopamina, substância química ligada à sensação de prazer e satisfação, vai às alturas. Pesquisadores da Neuroco, uma empresa britânica de neuromarketing, colocaram um monitor portátil de impulsos cerebrais em voluntários que passeavam pelo shopping. Quando a intenção dos participantes era fazer compras (e não apenas caminhar à toa por lá), o cérebro agia diferente: as regiões do sistema dopaminérgico fervilhavam.

Isso tem mais a ver com a expectativa do que com o desejo de compra em si. Em outro teste, elaborado por Gregory Berns, neurocientista da Universidade Emory, nos Estados Unidos, voluntários se deitaram em uma máquina de ressonância magnética com um tubo conectado à boca. Por ele, desciam doses de água ou de um suco bem doce. Quando havia uma ordem preestabelecida (duas vezes de água seguidas por três doses de suco), o sistema de recompensa do cérebro não se alterava muito. Mas quando não havia um padrão, e eles não sabiam quando esperar por aquele sabor doce outra vez, o cérebro parecia eufórico. Não à toa, na vida real, assim que você sai da loja com as sacolas nas mãos, a dopamina volta ao normal (desde que você não tenha problemas patológicos com compras). Sobram só as prestações.

Esse desejo impulsivo de consumir pode ser um comportamento herdado dos nossos ancestrais, da época em que a escassez era a regra. Como cada tomada de decisão exige um consumo de energia — e isso cansa o corpo —, o cérebro cria atalhos mentais. É por causa deles que, depois de algum tempo de experiência ao volante, você não precisa mais pensar tanto para dirigir. Seu cérebro conhece os caminhos e tem a resposta pronta, aí aciona o piloto automático e segue em frente. Um dos atalhos mais antigos diz que, na dúvida, é melhor consumir. Guiadas por ele, as pessoas gastam muito mais no supermercado quando vão às compras com fome, por exemplo. “Na incerteza de que se estará vivo para usufruir esse valor no futuro, o cérebro logo nos instiga a consumir o quanto antes. Por um lado, as pessoas têm forte tendência a acumular gordura corporal. Por outro, também têm enorme dificuldade de formar uma poupança financeira”, conta Jurandir Macedo, especialista em finanças comportamentais, no livro “A árvore do dinheiro” (Editora Insular, 2013).

Mas não é apenas o instinto que pode tomar a frente das decisões. Outra parte do cérebro também tem sua parcela de culpa: é o sistema límbico, envolvido com as emoções. Pessoas tristes tendem a gastar mais que as felizes. Quem descobriu foi um trio de psicólogos norte-americanos da Universidade Carnegie Mellon. Eles mostraram vídeos nojentos, neutros ou tristes a alguns voluntários e em seguida deram a eles a chance de comprar alguns produtos. Os tristonhos topavam pagar os preços mais salgados. Em pesquisa semelhante, outros pesquisadores também mostraram vídeos aos participantes, mas dessa vez pediram a eles que escrevessem sobre o que estavam sentindo. Quanto mais tristes os voluntários se sentiam, mais usavam palavras como “eu” e “mim” no texto. E esses pagavam até quatro vezes mais por uma garrafa de água do que os neutros e os enojados. “Triste, você se sente desvalorizado. E uma maneira de melhorar essa imagem consiste em sobrevalorizar aquilo que se poderia adquirir”, escreve Macedo. É provável que outras emoções e sentimentos, como o meu “merecimento” após meses de trabalho, também favoreçam a gastança.

Força de vontade

Mas, dizem os especialistas, dá para escapar dessas armadilhas. Quando você sai da loja e volta para casa sem nada nas mãos, acabam as desculpas: a decisão cai no lado racional. Aí é com você. Com calma, é possível racionalizar os prós e contras daquela compra. A sua lista de necessidades pode ser bem diferente no dia seguinte.

Existe uma maneira bem prática de tomar consciência e racionalizar suas compras: planilhas de gastos e receitas. Imagine um sujeito cujo salário líquido beire a casa dos R$ 3 mil. Toda quarta-feira, como de costume, ele passa no supermercado depois do expediente e compra algumas latinhas de cerveja: R$ 20. Em casa, pede uma pizza (R$ 30 que compensam a falta de vontade de cozinhar) e liga a tevê a cabo (R$ 135 mensais) para assistir ao futebol. Às quintas-feiras, religiosamente, vai ao cinema e compra uma pipoca para enganar a fome. São mais R$ 25. E na sexta, claro, não perde o happy hour, que rende uma conta média de R$ 50. São gastos pequenos, nem dói pagar. Só que, ao final do mês, lá se foram R$ 1.000, um terço do salário. Fora os gastos menores, que passaram ainda mais despercebidos: um brigadeiro aqui, um café ali, um remédio acolá, as parcelas mensais do cartão de crédito cheias de pequenas parcelas. Lá pelo dia 20, quando o aluguel suga mais R$ 1,5 mil do salário, o dinheiro praticamente acabou. E nosso amigo nem sabe como isso aconteceu.

É por isso que planilhas de custos são tão importantes. Colocar no papel cada centavo que entra e sai durante o mês ajuda a desligar o piloto automático: você não vai mais jogar o recibo fora e esquecer quanto gastou. A enxurrada de números vermelhos, maior a cada novo débito, vai parecer assustadora e ajudá-lo a repensar seus gastos.

É claro que não dá para acabar com todos os prazeres da vida. “Sou contra as pessoas cortarem todos os gastos extras, não irem mais ao cinema ou a festas. É como fazer uma dieta com zero açúcar, é inviável, vai fazer muita falta”, diz o economista Samy Dana. Mas com um diário de gastos você pode descobrir o que anda mais calórico e se vale a pena manter na dieta (compensa mesmo pagar aquele pacote de tevê a cabo se você assiste quase todos os dias apenas aos programas dos canais abertos?).

Se aquele sujeito deixar para ir ao cinema apenas duas vezes por mês, cortar a pipoca e reduzir os gastos com tevê a cabo pela metade, sobram R$ 130 por mês. Ainda parece pouco, mas, veja bem, equivale a quase 5% do salário — e em 12 meses ele terá poupado R$ 1,5 mil sem fazer muito esforço. Mauro Calil, especialista em planejamento financeiro, recomenda um empenho maior: uma economia mensal de 30% do salário. “As pessoas precisam aprender a investir primeiro para gastar depois. Dívida significa qualidade de vida no passado, investimento é qualidade no futuro”, orienta o especialista. Se a meta estiver impossível, vale considerar mudanças mais drásticas. O lugar onde você mora talvez esteja pesando muito no bolso. E não apenas no aluguel: qualquer banana no mercadinho de Ipanema vai ser mais cara que em bairros cariocas menos badalados. Ter um plano bem definido (viajar, casar, comprar uma casa etc.) motiva você a definir prioridades e escolher como reduzir gastos.

Primeiro a dívida

Mas e aí, o que você faz com aquele dinheirinho que conseguiu economizar com tanto esforço? Antes de mais nada, quita as dívidas que você muito provavelmente já tem. É que os jovens costumam não guardar dinheiro. De acordo com o Credicard Itaú, 20% dos cartões de crédito do Brasil estão nas mãos de pessoas de até 29 anos — só que elas representam 43% dos endividados com esse meio de pagamento. Também são as que mais distribuem cheques sem fundo. E os custos dessas dívidas todas aumentaram em 2015. Os juros anuais de cartões de crédito e cheque especial ficam, respectivamente, acima de 300% e 200% ao ano. É por isso que não existe investimento melhor do que quitar suas dívidas (não há fundo que renda tanto a ponto de pagar e compensar os prejuízos de empréstimos vencidos e acumulados).

Claro que os jovens não são os únicos devedores no Brasil. No total, 40% dos brasileiros (mais de 50 milhões) têm dívidas, segundo o Serviço de Proteção ao Crédito (SPC) — é como se quase toda a população dos estados de São Paulo e Rio de Janeiro estivesse com o nome sujo na praça. Uma parcela ainda maior (60%) começa o mês com mais contas do que o salário pode pagar. Mas poucos se importam de verdade: se ganhasse mais, a maioria gastaria ainda mais. Em outro estudo realizado pelo SPC, em 2014, 68% dos 700 entrevistados disseram que, caso ganhassem uma bolada extra (cinco vezes o valor do próprio salário), usariam o dinheiro para reformar a casa, comprar um carro ou viajar. Opções como “investir” ou “quitar dívidas” foram bem menos populares. “As pessoas acham que dinheiro foi feito para gastar. Acreditam que merecem tomar um cafezinho fora de casa, mesmo que seja caro, porque passam horas trabalhando”, conta Mauro Calil. “Não percebem que o dinheiro precisa ser usado e também guardado.”

A crise existe, é inegável, e poupar dinheiro para pagar dívidas agora é ainda mais complicado do que era antes. Mas não adianta jogar apenas nela toda a culpa pela sua (e a minha) falta de grana. O problema é que somos mesmo consumistas. E não é uma característica exclusivamente brasileira, a gastança desenfreada também é a regra em outras partes do mundo. Nos Estados Unidos, oito a cada dez pessoas têm dívidas (a maioria com hipoteca) — e 69% da população vê as dívidas como um mal necessário. Segundo o Money Advice Services (MAS), 26 milhões de britânicos vivem no limite, sem qualquer sobra no final do mês. E 20% deles saem às compras ou para a balada mesmo se não tiverem dinheiro. Nada que um cheque especial ou cartão de crédito não resolva. Nacionalidade (ao menos no lado ocidental do mundo), PIB, inflação ou salário médio do país pouco importam: as pessoas quase sempre gastam mais do que ganham.

No topo

Quando você já não estiver mais devendo para ninguém, chegará a esperada hora de investir. Em tempos de inflação beirando a casa dos dois dígitos, deixar dinheiro parado é ser assaltado por inércia. Mas antes de decidir o que fazer com o seu dinheiro é preciso considerar uma série de fatores, como o valor e o tempo para investir. Investimentos de renda fixa são firmados por contrato, com data fixa de vencimento, e nem sempre dá para resgatar o dinheiro antes do prazo. Em alguns casos, até é possível, mas há riscos: não receber o pagamento dos juros ou mesmo perder dinheiro. Por isso, planejamento é importante. Você precisa saber exatamente quanto conseguirá investir e por quanto tempo poderá deixar o dinheiro “esquecido” por lá. Um consultor financeiro pode ajudar a escolher o melhor investimento — gerentes de bancos devem ser evitados porque o maior interesse deles é bater metas, e não oferecer a melhor opção ao cliente.

Deixar de investir tem uma consequência bem amarga: a inflação corrói o seu dinheiro suado. Vale lembrar que poupança não conta como investimento, ainda mais em tempos de crise. Na tentativa de conter a alta dos preços, o Banco Central eleva os juros (com menos crédito, espera-se que as pessoas gastem menos e os preços parem de subir). Por isso, emprestar dinheiro aos bancos e ao governo vale tanto a pena nessa época: títulos do Tesouro e CDBs estão atrelados à taxa Selic ou às taxas de inflação. Em um ano de investimento, dá para transformar R$ 10 mil em quase R$ 12 mil sem fazer nada. Só por deixar o dinheiro lá quietinho.

O problema é que a maioria dos brasileiros não consegue fundos para investir em nada. O dinheiro deles vira pó. E aqui entra a realidade perversa da história: pagando mais aos investidores, as dívidas do Brasil só aumentam, e a conta sobra para todo mundo — principalmente para quem não conseguiu se proteger e sente o bolso chorar cada vez que passa pelo caixa do supermercado.

E nem é só isso. Os investidores ainda têm vantagens na hora de pagar impostos. Os lucros tirados das letras de crédito imobiliário ou do agronegócio não custam um centavo ao investidor. São totalmente isentos de imposto de renda. Em outros casos, como o CDB e Tesouro direto, a obrigação com os impostos diminui até chegar ao piso de 15% sobre os lucros. Quando empresas distribuem dividendos, seus acionistas também não pagam absolutamente nada ao governo. O lucro dali vem cheio, livre de impostos. Não à toa, segundo dados da Receita Federal analisados por Sérgio Gobetti e Rodrigo Orair, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), os brasileiros mais ricos, com renda familiar superior a R$ 30 mil mensais, pagam menos impostos: 34% da grana deles não paga pedágio, cai líquida na conta corrente. Os privilégios de quem recebe menos de R$ 4 mil por mês são bem menores: apenas 8% de isenção em relação à renda. Por ano, os ricos conseguem livrar R$ 120 mil da cobrança de impostos, e o pobre, apenas R$ 3 mil.

É como se os afortunados ganhassem quatro meses de gratuidade do governo, e os mais pobres, cerca de 20 dias. A única “proteção” assegurada a quase todos pelo governo vem, teoricamente, do Fundo de Garantia pelo Tempo de Serviço (FGTS). Todo mês, o sujeito com re­gistro em carteira recebe o equivalente a 8% do seu salário em uma conta da Caixa Econômica Federal (o valor é pago pela empresa, sem qualquer desconto na folha de pagamento do funcionário). E o dinheiro só sai de lá em casos extremos: demissão sem justa causa, aposentadoria, doença grave ou morte. Ou se for para o financiamento da casa própria. Quando nada disso acontece, ele continua lá, engordando um pouquinho a cada ano. Quer dizer, engordando naquelas.

Na base

O governo paga uma taxa de juros de 3% ao ano mais a taxa referencial (TR), calculada pelo Banco Central com base nas taxas médias de CDBs (os juros que os bancos pagam para pegar dinheiro emprestado). A TR, na verdade, não ajuda em muita coisa, quase nunca passa de 1% ao ano — já chegou até a ficar zerada, dois anos atrás. Aí fica difícil ganhar da inflação, que sempre sobe mais que 3% ao ano. Em janeiro de 2014, por exemplo, se alguém tivesse R$ 1.000 depositados nesse fundo e o valor permanecesse assim até dezembro, os rendimentos seriam de apenas R$ 40, um ganho de 4%. O problema é que a inflação subiu mais de 6% no ano passado. Com os produtos mais caros, o poder de compra diminuiu — e os rendimentos do FGTS não acompanharam nem de perto essa alta. Para render de verdade, qualquer investimento precisa pelo menos seguir os índices de inflação. Sem essa condição básica, não é investimento, é prejuízo.

Para piorar, os pobres acabam sendo obrigados a gastar mais que os ricos justamente porque não têm dinheiro. Comprar um carro à vista, por exemplo, é missão impossível para a maioria dos brasileiros. A solução é apelar para empréstimos com juros e parcelas a perder de vista. E, quanto menor for o salário, maiores serão os juros, porque o banco também fica com medo de tomar calote. O mesmo vale na hora de alugar um apartamento: quem não tem fiador é obrigado a pagar seguro-fiança, uma taxa equivalente a até três meses de aluguel. E isso não é exclusividade do Brasil. Há alguns anos, a ativista Barbara Ehrenreich decidiu tentar viver como os norte-americanos mais pobres para entender como eles conseguiam sobreviver com salários miseráveis.

O resultado da experiência está no livro “Nickel and Dimed”, sem edição brasileira. Ehrenreich recolheu em jornais os melhores anúncios para candidatos sem qualifica­ção que conseguiu encontrar, e afinal começou a trabalhar como garçonete em um restaurante que pagava ­US$ 2,43 a hora. A conclusão foi que os pobres acabam sendo sobrecarregados por custos extras: “Se você não tem dinheiro para pagar aluguel adiantado, precisa alugar um quarto em um hotel. Se o quarto não tem fogão, não consegue economizar comendo em casa e acaba se alimentando de fast-food. Se se alimenta de fast-food, prejudica a saúde — o que fica especialmente perigoso se não puder pagar uma consulta médica”. Ou seja: não ter dinheiro custa caro. Lembre-se disso da próxima vez que sentir vontade de gastar aqueles R$ 3 no cafezinho depois do almoço.


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