27/04/2024 - Edição 540

Especial

A maré fundamentalista

Publicado em 23/02/2016 12:00 -

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Eles foram uma minoria política e religiosa por décadas. Sofreram um enorme preconceito num país majoritariamente católico. Vários cemitérios administrados por católicos não permitiam que pastores fossem enterrados ali. Os fiéis eram desdenhosamente chamados de "crentes" e classificados de ignorantes. Ainda há resquícios desse olho torto – basta escutar uma conversa num bar descolado na zona sul do Rio de Janeiro ou na Vila Madalena, em São Paulo. Se a pessoa se declara evangélica, uma bigorna classificatória cai sobre a cabeça dela.

Mas, o tempo de minoria acabou. Hoje, há 42 milhões de evangélicos no Brasil. Um em cada cinco brasileiros segue uma entre as milhares de igrejas espalhadas pelo País. Só que algumas lideranças evangélicas se esqueceram da época em que a democracia os protegeu. Afinal, democracia não é o regime da maioria contra as minorias. Um dos méritos da democracia é proteger as minorias contra a maioria.

Na contramão desta noção de inclusão, estas lideranças têm sido responsáveis por uma série de campanhas e ações que pretendem estabelecer sobre a totalidade da sociedade valores comportamentais que deveriam estar restritos ao âmbito da individualidade. Sob esta orientação, evangélicos agitaram bandeiras conservadoras empunhadas em nome do Senhor, ensaiaram marchas militares com o exército dos Gladiadores do Altar, estabeleceram uma cruzada que chegou até à sala de nossas casas, com o boicote que refreou os índices de audiência da global Babilônia, no ano passado, impuseram uma noção equivocada do conceito de família.

E eles não param por aí. A intolerância religiosa promovida por setores evangélicos tem cruzado os limites do bom senso e, em algumas oportunidades, da lei.

Preconceito e fé

Lúcio Barreto Júnior, o pastor Lucinho, é uma estrela da Igreja Batista da Lagoinha, tradicional instituição evangélica de Belo Horizonte. Ele já pregou na Inglaterra, Espanha e Luxemburgo. Também foi para o Rio de Janeiro, Santa Catarina e Paraíba. Muitas das suas pregações têm ingressos esgotados. Ele é uma celebridade evangélica.

Em seu site oficial, Lucinho vende camisetas com a frase "Com Jesus, venço até Chuck Norris". Ele também tem uma linha de DVDs, com títulos como A Verdadeira Tropa de Elite e Treinando um Louco Por Jesus.

Na igreja da Lagoinha, Lucinho é responsável por evangelizar jovens e adolescentes, e se apresenta como se fosse um. Nem de perto aparenta seus quarenta e tantos anos – usa cabelo espetado e gírias de quem tem pouco menos de 20 anos. Também faz questão de se definir como um "Louco por Jesus", uma versão religiosa do "vida loka" da puberdade. Lucinho fez dessa definição tanto um slogan das suas pregações quanto um estilo de vida.

Num vídeo que circulou pelo Facebook, o pastor aparece pregando em Belo Horizonte. Logo no começo, Lucinho diz: "Só vai ter marcha das vadias se você quiser. Só vai ter boate gay, parada gay, parada dos maconheiros, se você quiser. Outro dia, em Belo Horizonte, falaram comigo: 'Lucinho, vai ter a festa do Preto Velho'. Eu falei, 'ninguém me pediu. Não aceito. Não vai ter'". Então ele explica como estragar a festa alheia. "Cheguei lá no meu grupo de jovens, chamei 20 jovens, falei 'vamos dar um B.O. na festa do capeta?'". Os jovens, para tristeza do pastor, não estavam dispostos a dar B.O. na festa de umbanda. Mas Lucinho não desiste.

"Então fui no melhor departamento de qualquer igreja. Fui falar com os adolescentes. Cheguei e falei 'preciso de 20 malucos para dar uma busca e apreensão no Preto Velho.'" O pastor diz que os meninos aceitaram na hora. E passa a gritar com a multidão que ouvia sua pregação: "Fica velho, mas não fica idiota. Faz faculdade, mas não vira um retardado mental. Não perde o sangue nos olhos. Não deixa as suas muitas letras te levarem a delirar. Não vira um palhaço. Não é porque agora está vestindo uma roupinha engomadinha que não pode dar uma busca e apreensão no capeta".

Na sequência, ele conta como treinou os adolescentes ao longo de 20 dias. Eles não podiam causar tumultos e deveriam seguir as regras da dispersão: "Se der polícia, confusão, FBI, dá o 'vazari'. Some". E conclui: "O mais legal é você pegar gente simples. Você pode desenhar Cristo na alma deles, melhor do que gente que você tem que desconstruir para depois construir".

Missão dada, missão cumprida. No final do vídeo, o pastor descreve como os adolescentes cercaram a praça, a confusão com a festa da umbanda, a chegada da polícia e como um dos meninos depredou a estátua do Preto Velho. A festa, que deveria ir até as 6h, acabou antes da meia-noite. Lucinho diz que isso é prova de autoridade divina, de que Jesus está guiando cada um deles.

O vídeo abre para aplausos e gritos da multidão dentro da Igreja Batista da Lagoinha. Centenas de pessoas celebravam um pastor que acabava de contar como tinha formado uma milícia adolescente para acabar com a celebração de outra fé.

Poder e intolerância

Lucinho não é um caso isolado de atitudes extremas e linguagem beligerante dentro da comunidade evangélica. O vídeo do pastor é só uma entre diversas evidências de intolerância que têm se acumulado.

Por exemplo: o pastor Cezar Cavalcante, reitor da Faculdade Teológica Betesda, de Campinas (SP), disse, em entrevista à Folha de S.Paulo, que tem todo o direito de pregar contra a umbanda e o candomblé porque, afinal, são duas religiões "em pecado".

Nessa toada extremista, a Igreja Universal lançou uma campanha de evangelização chamada de Gladiadores do Altar. Num vídeo, as pessoas, vestidas de soldados, dizem que "graças ao Senhor, hoje estamos aqui prontos para a batalha".

Há muitos pastores Lucinhos brotando pelo Brasil. Principalmente no Rio de Janeiro. O Rio é o Estado com maior presença evangélica no País, e já passou São Paulo no ranking de reclamações de intolerância religiosa. Há várias denúncias de invasões de terreiros e agressões. Nas favelas da cidade, traficantes convertidos proíbem umbanda e candomblé nos seus domínios.

Os líderes evangélicos sabem faz tempo que têm poder. A diferença é que eles nunca tiveram uma base tão grande para justificar esse poder. Nunca houve tantas pessoas para ouvi-los e seguir suas orientações. E tudo por um motivo inusitado: a China.

Sim, a China. Nossas igrejas evangélicas dão ênfase à chamada "teologia da prosperidade". Por esse ponto de vista, o sucesso deve ser procurado na vida terrena. E Deus devolve em dobro a quem contribui com a igreja, fazendo o fiel ganhar dinheiro, acumular bens, conquistar uma vida mais confortável.  

Bom, o crescimento acelerado do PIB na última década ajudou milhões de brasileiros a acumular bens, conquistar uma vida mais confortável. Uma fatia gorda dessa população ou já era evangélica, ou tornou-se no meio do caminho, e passou a fazer uma associação entre seu progresso financeiro e a igreja. Se a carteira do fiel estava mais recheada, era porque Deus estava agindo a favor dele. E se Deus estava com ele, era graças à igreja, graças ao pastor. Nada mais natural do que confundir o alho do crescimento econômico com o bugalho da teologia da prosperidade.

Mas fora do mundo espiritual o benfeitor foi outro: o crescimento da China. A segunda maior economia do mundo se tornou o comprador número um das nossas mercadorias agrícolas e minerais. Isso fez chover dólar no Brasil, ajudando a girar as engrenagens do resto da economia. Foi um dos maiores círculos virtuosos da nossa história, com inflação sob controle, renda lá em cima e desemprego lá embaixo.      

Mas aí veio a crise – a China perdeu o fôlego, o governo federal pedalou na política econômica, a inflação saiu da toca e o demônio do desemprego voltou a assombrar nossas almas. Nisso, a corrente para frente da teologia da prosperidade começou a enferrujar. Afinal, como justificar que Deus está tirando algo que essas pessoas suaram tanto para conquistar? Essa é a teoria que alguns pesquisadores vêm montando para entender o radicalismo evangélico recente. Com a crise econômica, é difícil sustentar a teologia da prosperidade. A agenda moral, portanto, vem a calhar. Ela serve para manter os fiéis unidos sob uma bandeira clara e agressiva. Nada mais distante das origens humildes de nossa comunidade evangélica.  

Unidos por Deus

Um estudo do teólogo Jung Mo Sung, da Universidade Metodista de São Paulo, mostra que essa agenda política moral encontra sustento na agenda política com com base na teologia. Temas como aborto e legalização da maconha seriam ofensas diretas a Deus – mesmo que a Bíblia tenha mais citações contra a manipulação da fé do que contra a homossexualidade.

O pastor Ricardo Gondim, mestre em ciências da religião pela Universidade Metodista e pastor da Igreja Betesda, em São Paulo, é um crítico dessa agenda extremista. "Hoje, a agenda evangélica é reacionária. Eles só reagem, e isso vem dando unidade a essa parcela mais radical", diz Gondim, que é uma figura influente entre os evangélicos mais liberais. "Isso é uma pena, porque divide o País e reforça o estigma de que todo evangélico é um radical."

De fato. Não faz sentido generalizar os evangélicos. "É um erro achar que todos seguem uma agenda comum", conta Christina Vital da Cunha, professora de antropologia cultural da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisadora da relação entre evangélicos e política. "Poucas coisas unem todos os líderes da igreja. E todos, no final das contas, competem por fiéis para seus templos. A agenda de defesa da família tradicional é uma das poucas coisas que eles têm em comum", explica ela.

Dois personagens, com forte ascendência na Frente Parlamentar Evangélica, sinalizam essas semelhanças e diferenças. Eles simbolizam as duas instituições com os projetos políticos mais claros.

Silas Malafaia, pastor da Assembleia de Deus, usa as redes sociais e a TV para ofender adversários, pregar contra o aborto, atacar homossexuais e pressionar candidatos a cargos públicos. É admirado e temido por vários líderes evangélicos País afora. E adora ostentar riqueza. Mostra o carro de meio milhão de reais e o relógio caríssimo como provas de que Deus aprova o seu trabalho. Malafaia cresceu bastante a partir de 2010, quando se transformou num dos principais opositores do PT, e segue como oposição ao governo federal.

Do outro lado está Edir Macedo, da Igreja Universal. Ele já mistura fé e política há muito tempo. Desde os anos 1990, seus programas de rádio e TV e seus templos são usados para ungir algumas pessoas, atacar outras e defender a família tradicional. Um dos seus primeiros alvos, há mais de 20 anos, foi o então eterno candidato à presidência Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que alguns dos seus pastores definiam como o "demônio de quatro dedos". Essa fase passou quando Lula foi eleito presidente em 2002 e contou com apoio significativo da Universal. Desde então, Macedo tem adotado uma atitude discreta em público e agressiva nos bastidores. Ele emplacou ministros e aliados em ministérios e postos-chave dos governos Lula e Dilma. Apesar de sua igreja não ser a maior do País, é a mais influente.

Malafaia e Edir estão longe de ser unanimidade entre os evangélicos, naturalmente. Vários pastores são contra a mistura de fé e política e preferem fazer seu trabalho de formiguinha nos recantos do País. E não são poucos.

Tanto que o número de evangélicos que frequentam templos menores ou que não se identificam com uma igreja específica explodiu nos últimos anos. As pessoas vão aos lugares onde se sentem bem. Na prática, aumentou a infidelidade a uma igreja específica. É como uma playlist da fé – você escolhe apenas as experiências que fazem mais sentido para você. Ao mesmo tempo, a Universal, igreja mais identificada com política partidária, foi uma das poucas a perder fiéis entre 2000 e 2010. Mais um ponto a favor dessa tendência de uma comunidade evangélica mais difusa, menos disposta a servir como massa de manobra ou curral de votos.

A moderação vem de dentro

Macedo, Malafaia e o pastor Lucinho são três entre os 42 milhões de evangélicos do Brasil, mas de um ramo específico. Eles são evangélicos pentecostais – assim como outros 26,9 milhões de brasileiros. Segundo dados do World Christian Database, o Brasil é o país com o maior número de seguidores desse ramo do cristianismo. Nigéria, Estados Unidos, Indonésia e Gana completam o ranking dos cinco maiores.

Os evangélicos pentecostais são difíceis de entender num país majoritariamente católico, acostumado com uma hierarquia rígida, com papa, bispos e padres, e com uma celebração clara – a missa, organizada em torno do sermão do sacerdote. Evangélicos não têm uma doutrina padronizada nem uma forma única de celebração – muito menos um "papa", claro. Qualquer um pode mudar de igreja e continuar sendo evangélico. Na prática, dizer que alguém é evangélico é tão vago quanto dizer que alguém nasceu na América do Sul, sem mencionar o país, a região, a cidade.

Há os evangélicos nascidos na reforma protestante, como os luteranos, metodistas e calvinistas. Há os batistas, que são anteriores à grande cisão com a Igreja Católica. Há a linhagem fundamentalista, que surgiu nos EUA, no início do século 20, e pregava uma interpretação literal do Velho Testamento, à moda do que fazem os judeus ultraortodoxos.  Por fim, há os evangélicos pentecostais – que são basicamente os evangélicos que chamamos de evangélicos no Brasil. Muitas dessas pessoas estão em igrejas que têm expoentes como Silas Malafaia e Edir Macedo. Outros milhões, não.

Os evangélicos pentecostais nasceram nos EUA, no começo do século 20. Eles são inspirados pelo dia de Pentecostes – o quinquagésimo dia após a Páscoa, ocasião em que os apóstolos, segundo a Bíblia, receberam do Espírito Santo a capacidade de falar línguas estrangeiras, de modo que pudessem pregar a palavra de Jesus pelo mundo inteiro. Pentecostais acreditam em curas espirituais e profecias. E, além de conservadores, são fortemente missionários.

Nos anos 1970, surge o neopentecostalismo – uma versão mais midiática e estridente dos pentecostais. Eles dão ênfase maior à cura – espiritual e física – e, principalmente, à teologia da prosperidade. Por isso mesmo os neopentecostais ganharam tanta força no Brasil nos anos de estabilidade e crescimento, já que entenderam tal bonança como prova da graça divina.  

Mas a teologia da prosperidade e a posição reacionária não são as únicas bandeiras, claro. Na verdade, elas até ofuscam outras causas evangélicas, como a assistência social e a organização comunitária de ajuda mútua. No fim das contas, colocar todo evangélico no balaio conservador de Silas Malafaia e Edir Macedo é como dizer que todo brasileiro foi corintiano enquanto Lula, que torce para o time do Parque São Jorge, foi presidente. Há muita vida além do fanatismo. Basta olhar para a história.

Nos EUA, um país majoritariamente evangélico, vários líderes comunitários são pentecostais ou de outros ramos evangélicos. Martin Luther King, líder do movimento de direitos civis nos anos 1960, era pastor. No Brasil, vários pastores vêm abrindo seus templos para gays e lésbicas. Essa quantidade enorme de pessoas, muitas delas silenciosas, sofrem um duplo preconceito. Para os evangélicos radicais, elas não são evangélicas o suficiente. Para o restante da sociedade, são fanáticos.

Portanto, se há algum caminho para impedir o crescimento dessa agenda agressiva, ele passa necessariamente por esses evangélicos moderados. São os milhões de pessoas que seguem as palavras que Jesus disse quando alguns radicais queriam matar uma mulher a pedradas: "Quem não tiver pecado que atire a primeira pedra". Esses evangélicos são os mesmos fiéis que o pastor Lucinho chama de "palhaços". Na vida real, porém, eles não têm nada de ridículos. São nada menos que a chave para a construção de um Brasil tão evangélico quanto tolerante.

Proliferação

O que explica a ascensão religiosa e como isso impacta as relações de poder? Bom, para começar, é preciso retornar vários capítulos na nossa história. O cientista político Cesar Romero Jacob, professor da PUC-Rio e um dos autores do Atlas da Filiação Religiosa e Indicadores Sociais no Brasil (PUC-Rio e Edições Loyola, 2003) chama a atenção para o fato de que não se trata de um fenômeno homogêneo. 

A proliferação de evangélicos no país se concentra historicamente nas fronteiras agrícolas e nas periferias metropolitanas. E isso nada tem de aleatório. A origem remete ao nosso processo de urbanização. Entre o início da I Guerra Mundial, em 1914, e a crise do petróleo de 1974, o Brasil muda progressivamente seu perfil, de rural para urbano.

Até então, os migrantes que saíam do campo apostavam no sonho de uma vida melhor na cidade. A partir do agravamento das crises econômicas, que fariam os anos 1980 ficarem conhecidos como "a década perdida", as economias urbanas estagnaram enquanto o agronegócio deixou de precisar da mão de obra tradicional.

Isso fez com que a população rural passasse a ser expulsa do campo sem ter mais as luzes da cidade.

Em crise, os centros urbanos não conseguiam absorver tanta gente, e o resultado foi a favelização. Criaram-se aí, de acordo com o professor Jacob, as condições ideais para a entrada de um discurso de salvação trazido pelos pentecostais. O período coincide com o enfraquecimento da atuação da Igreja Católica na periferia — diante da decisão do Vaticano de centrar forças no combate ao comunismo na Europa do Leste.

Abandonados à própria sorte em lugares onde o Estado não chegava, sem moradia, sem emprego, sem saneamento básico, migrantes que romperam seus vínculos tradicionais para cair em selvas de pedra encontraram alento nas pregações inflamadas que prometiam prosperidade. Como resultado, o número de evangélicos no Brasil saltou exponencialmente.

O alastramento estatístico vem sendo amplificado simbolicamente pela atuação de pastores nos meios de comunicação e na política, que levantam questionamentos de para onde tanto fervor pode nos levar.

Mesmo com o ruído provocado por sucessivos projetos da bancada religiosa contra direitos dos homossexuais e das mulheres, por exemplo, a antropóloga Christina Vital, professora da Universidade Federal Fluminense e colaboradora do Instituto de Estudos da Religião (ISER), avalia que os evangélicos são menos poderosos em termos de efetividade política do que aparentam.

“Olhar para o Congresso como se fosse a vitória da força conservadora não é verdade. A grande quantidade de projetos da bancada evangélica representa mais um modo de fortalecer seu capital político do que propriamente um avanço nas agendas conservadoras”, pondera Christina.

Na sua avaliação, a militância conservadora é também uma reação a avanços sociais conquistados na sociedade, como as novas configurações familiares e sexuais. Por isso, refletiria o tensionamento da própria sociedade. “Há um limite para o que está posto, não é uma coisa avassaladora”, entende.

Pós-doutor em Sociologia da Religião, o professor da USP Ricardo Mariano concorda. Segundo ele, o perigo não mora na bancada evangélica em si, que foi eleita pelas regras democráticas e representa 15% do Congresso — com pouca força para aprovar projetos isoladamente.

O que lhe agrega força — e pode, sim, representar obstáculos preocupantes a avanços no campo dos direitos sociais e de minorias — é a sua associação com outros setores conservadores, num triunvirato que já vem sendo chamado de BBB, por unir as bancadas da Bíblia, do Boi e da Bala — evangélicos, ruralistas e defensores da indústria de armamentos.

“Esse BBB está atuando junto, e aí sim a coisa é bem mais infernal. Mas não acredito que corremos qualquer risco de virar uma teocracia fundamentalista, não seremos talibãs evangélicos. A grande questão é a instrumentalização mútua entre religião e política”, analisa Mariano.

Estado laico

A ascensão religiosa também suscita reflexões sobre ameaças ao Estado laico. Estaria a laicidade correndo risco? Para o professor de sociologia da religião Edin Sued Abumanssur, da PUC-SP, a questão costuma ser mal colocada. Na sua avaliação, é o próprio Estado laico que permite a competição entre as religiões — e a consequente disputa democrática na esfera política.

“Esse florescimento das religiões está diretamente associado ao fato de não haver mais uma única igreja com monopólio dos bens religiosos. Não existe mais um Estado para limitar, garantir um monopólio da religião. Antes a gente era católico por herança, agora existe concorrência”, observa Abumanssur.

E as religiões sempre influenciaram o Estado, como lembra Marcelo Tadvald, doutor em antropologia social e pesquisador do Núcleo de Estudos da Religião da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Desde a época colonial, o cristianismo foi utilizado pelos governos, numa íntima associação com o poder.

Mesmo com a primeira Constituição, de 1891, que declarou a laicidade do Estado — por influência das elites, que queriam reduzir a influência do catolicismo nas instâncias do poder — a Igreja continuou representada. Por isso, olhando a história com uma lente mais alargada, Tadvald questiona a perspectiva de que estaria ocorrendo uma ascensão religiosa. Na sua avaliação, essa configuração apenas ganhou novas versões:

“O que ocorre hoje é uma troca do catolicismo pelos evangélicos. O traço cristão se mantém e se reatualiza pelos evangélicos, com mais visibilidade pela forma de atuação”.

Em pleno século 21, o avanço da ciência não se traduziu em secularização, como no passado muitos imaginavam. O recrudescimento dos fenômenos religiosos no Brasil e em todo o mundo comprova que a busca pelo transcendente permanece. Para Alberto Moreira, doutor em teologia e em ciência das religiões, professor da PUC-Goiás, a crença de que a modernidade significaria o fim do mito do pensamento mágico se revelou uma falácia.

“A própria modernidade se tornou um mito, como se a ciência fosse salvar todas as angústias. O mundo se desencantou, mas reencantou outras práticas”, analisa.

Em todo o mundo, a reafirmação da identidade pela religião seria também uma forma de resposta à globalização. Com vínculos sociais e territoriais cada vez mais frágeis na aldeia global, sentir-se parte de uma comunidade é mais do que nunca uma tábua de salvação. Moreira cita, por exemplo, o caso de imigrantes muçulmanos que moram na França, mas não são reconhecidos como franceses. O apego à tradição religiosa seria uma forma de garantir pertencimento.

“A globalização nos desterritorializou a todos. Nessa crise de referência, a religião permanece fonte para a construção da identidade”, diz Moreira.

Mas as instituições tradicionais deixaram de ser as principais mediadoras, dando espaço a uma maior subjetividade. Isso faz com que seja mais fácil fiéis transitarem entre crenças como quem escolhe produtos num hipermercado da fé.  “Hoje cada um é gerente de seu próprio céu”, define Moreira.

Numa era de tantas incertezas, nada mais vendável do que um produto que promete curar todos os males, trazer dinheiro e amor aos convertidos. “A classe média gasta muito em terapia, a Igreja Católica exige muita penitência. Na Evangélica é mais fácil. Eles dizem que todo o pecado vem por alguém não aceitar Jesus. Mesmo que a pessoa tenha cometido crimes, é só aceitar Jesus e a pessoa zera o passado, vira a página”, compara o professor Cesar Romero Jacob.

Seja em nome de qual crença, a fé continua movendo milhões. A seguir, cenas dos próximos capítulos.


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