25/04/2024 - Edição 540

Entrevista

Territórios em disputa

Publicado em 23/02/2016 12:00 -

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O Estado brasileiro tem um projeto territorial?

Entendo que nós temos projetos territoriais e que determinados territórios não são exclusivos. Então, podemos falar de vários projetos; temos um projeto na área da agricultura, vinculado ao agronegócio, por exemplo, que privilegia determinadas culturas, principalmente commodities voltadas para a exportação; mas neste mesmo espaço rural temos projetos vinculados às populações indígenas e também projetos ligados aos agricultores familiares. Dentro dessa especificidade das áreas rurais, esses projetos entram em conflito em determinados momentos da história brasileira. Isso nós podemos resgatar em um período amplo, ou em um intervalo mais breve, como acontece na disputa pela posse da terra, onde sempre aqueles atores que conseguem mobilizar mais recursos financeiros e políticos acabam tendo êxito na implementação de suas ações.

Na área rural do Brasil, durante os anos 1970 houve uma modernização da agricultura que privilegiou os grandes proprietários e marginalizou as populações locais tradicionais porque elas ficaram de lado neste processo. Dos anos 1990 para cá nós tivemos um período de criminalização dessas populações locais, porque os grandes projetos agropecuários e minerais geram passivos ambientais e como contrapartidas, em muitos casos, são criadas, por exemplo, reservas biológicas. Então as populações originárias que foram marginalizadas nos anos 1970 passaram a ser criminalizadas nos anos 1990, porque elas não têm mais acesso às áreas em que elas coletavam, pescavam, porque esses espaços se tornaram zonas de conservação ambiental em virtude dos grandes projetos agrominerais. Podemos tomar como referência aí o caso da região amazônica.

E a região urbana?

Há um segmento empresarial que mobiliza projetos, interesses, e nós temos duas cidades que são referência para esse Brasil. O Rio de Janeiro, com a realização das Olimpíadas, onde muitos grupos historicamente desfavorecidos foram retirados de seus locais para que os grandes empreendimentos vinculados aos Jogos Olímpicos fossem construídos, desde unidades esportivas, até unidades habitacionais para os atletas e outros grandes projetos. E o Recife, onde o mesmo vem acontecendo, em que as pessoas são desalojadas para que os setores imobiliários possam construir seus grandes empreendimentos, horizontais ou verticais, e assim ganhar dinheiro.

Com isso quero resumir que nós não podemos falar em um único projeto territorial, mas sim em projetos que disputam legitimidade e recursos, e claro que os grupos que têm uma capacidade maior de eleger deputados, governadores, vereadores e prefeitos tendem a implementar com mais facilidade seus projetos. Não estou colocando em questão aqui o apoio muito forte dado pela imprensa. Há redes de televisão e jornais de grande circulação no Brasil que defendem alguns projetos, os quais, se forem analisados do ponto de vista socioeconômico ou socioambiental, não são tão interessantes, mas acabam sendo implementados.

Na área rural do Brasil, durante os anos 1970 houve uma modernização da agricultura que privilegiou os grandes proprietários e marginalizou as populações locais tradicionais porque elas ficaram de lado neste processo. Dos anos 1990 para cá nós tivemos um período de criminalização dessas populações locais.

Essa é a ideia que perpassa sua pesquisa.

Sim. Não trabalho, por exemplo, a Amazônia legal e o Cerrado como áreas exclusivas ou do agronegócio da soja, ou das populações locais e tradicionais, mas como um território que é composto de diferentes grupos sociais que procuram dar legitimidade aos seus projetos. De um lado, temos os grandes produtores e empresas que produzem grãos e, de outro lado, há os pequenos produtores, os chamados agricultores familiares, e as disputas entre esses dois grupos ocasionam diferentes tipos de mudanças sociais, econômicas e especialmente ambientais.

Quais são as forças de poder envolvidas nos processos de territorialização no Brasil?

Há uma variação no tempo quando falamos em poder. Nos anos 1970 havia muitos políticos locais, no caso da posse da terra, se articulando para regularizar áreas não tituladas ou não reconhecidas formalmente pelos cartórios como pertencentes a uma determinada família ou pessoa, embora nesse espaço já existissem agricultores e índios morando e trabalhando há muito tempo. Na pesquisa que realizei pude comprovar que, em um primeiro momento, o que nós entendemos como grileiros ou pessoas que procuraram regularizar essas áreas eram políticos locais, funcionários da polícia e comerciantes influentes. A partir da consulta a outros trabalhos, percebi que essa situação foi comum a outras regiões do Brasil, como Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, oeste da Bahia, sul do Piauí, Maranhão, Amazonas, Pará e outras áreas de expansão de fronteira agrícola.

Nos anos 1980 temos a chegada de outros atores, algumas empresas passam a entrar nesse mercado. Muitas vezes são empresas nacionais que vendem terras que possuem na região sul e passam a investir no Cerrado, como, por exemplo, o grupo SLC Agrícola, que vendeu dois mil hectares em Horizontina, no Rio Grande do Sul, e comprou 26 mil hectares no Maranhão, então conseguiram mobilizar muitos recursos financeiros para se instalar.

E a entrada do capital estrangeiro?

Nos anos 1990 já há uma modificação nesse cenário, com o processo de abertura econômica que o país iniciou, com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) financiando não só empresas de capital nacional, alguns segmentos sendo privatizados, então há uma reestruturação do agronegócio brasileiro. Empresas que detinham segmentos da indústria têxtil, processamento de grãos e produção de carne foram se desfazendo de alguns segmentos que atuavam. Por exemplo, o grupo Hering ficou só com a parte têxtil e vendeu a CEVAL para a BUNGE, empresa europeia que já atuava no Brasil e ampliou os seus tentáculos com a negociação. Há também uma expansão da atuação da CARGIL e a entrada de outras empresas no mercado. Assim passa a haver uma força muito maior do capital internacional atuando no processo produtivo e de comercialização de grãos no país.

Esse cenário interfere também na questão política.

Sim, por isso julguei importante abordar no meu trabalho como esses grupos e atores sociais conseguem mobilizar recursos financeiros e políticos. O grande exemplo disso foi a Lei de Cultivares, Lei n° 9.456, de 25 de abril de 1996, que implementou no Brasil a possibilidade de cultivar organismos geneticamente modificados. Trata-se de um processo de mobilização de grandes empresas multinacionais, com destaque para a Syngenta e Monsanto, que conseguiram, a partir do financiamento de campanhas de políticos e de lobbies no Congresso Nacional, modificar a legislação brasileira.

Isso vem ocorrendo de forma muito mais intensa nas duas últimas décadas dos anos 2000, porque hoje no Brasil não existem apenas produtores particulares, ou empresas de grãos investindo na produção agropecuária brasileira; há, por exemplo, um grupo argentino, o Los Grobo, que não compra terra, mas sim arrenda propriedades, maquinários, e o antigo proprietário se torna às vezes um funcionário, um gestor. Há também outro grupo, o Agroinvest, muito associado aos grandes fundos de investimentos e de pensão dos Estados Unidos e da Europa, que está investindo na compra de terras no Brasil.

Esse discurso de que a soja produz desenvolvimento não é verdadeiro, porque as vantagens se revertem apenas para os atores que produzem, e para as comunidades locais ficam os grandes passivos ambiental e socioeconômico. Para se ter uma dimensão disso, para cada 100 hectares de soja é gerado apenas um posto de trabalho.

De que forma a expansão das atividades agropecuárias e de mineração tornou-se um dos principais agentes da expropriação de territórios e de todos os problemas advindos desse processo?

O Estado brasileiro, principalmente durante a ditadura, partiu do pressuposto que o Cerrado e a Amazônia eram áreas desabitadas, então houve um intenso processo de elaboração de programas, políticas e projetos para deslocar populações para essas regiões. O Estado disponibilizava terra para esses projetos, ou então os atores políticos – que muitas vezes tinham informações privilegiadas sobre esses planos do governo – grilavam terras para depois vender esses territórios para tais projetos governamentais.

Nessa articulação de compra e venda há políticos locais e grandes empresários envolvidos, o que favorece que pequenos produtores sejam expropriados de suas áreas porque não possuem titulação formal delas. Assim os projetos governamentais de colonização foram implementados, especialmente naquele momento em que não havia muito rigor em termos de fiscalização ambiental.

Em um segundo momento, há grandes grupos, como os fundos de pensão e de investimento, que passam a atuar nessas áreas para produzir grãos, e também passa a ter uma articulação do capital internacional para controlar esse processo produtivo, o qual está muito relacionado ao cultivo dos organismos geneticamente modificados, porque aí é possível receber royalties com essa produção. Por outro lado, não se sabe quais são os impactos desses organismos modificados no corpo humano nem na natureza, e não há uma preocupação do Estado brasileiro e dos órgãos internacionais que teriam a função de analisar com mais cuidado essa questão. A preocupação é do grande capital em obter lucro.

Essa lógica é a mesma que desaloja populações indígenas para construir usinas hidrelétricas.

Exato. Algo muito comum no sul do Maranhão é vermos grandes torres de transmissão de energia elétrica e, ao mesmo tempo, as populações que habitam abaixo dessas linhas nem sequer têm acesso à eletricidade. Ou seja, a energia produzida é destinada a abastecer grandes centros e o passivo ambiental e social fica para as comunidades locais, geralmente indígenas, ribeirinhos e pequenos produtores.

Há uma dicotomia entre desenvolvimento local e riqueza?

Embora algumas regiões produzam muita riqueza, essa riqueza não se reverte em desenvolvimento social e econômico local. Pelo contrário, todas as divisas são enviadas para as grandes empresas, muitas delas com sede fora do país,. Junta-se a isso a participação dos fundos de investimento, que compram terras no Brasil. Esse discurso de que a soja produz desenvolvimento não é verdadeiro, porque as vantagens se revertem apenas para os atores que produzem — as grandes empresas —, e para as comunidades locais ficam os grandes passivos ambiental e socioeconômico.

Para se ter uma dimensão disso, para cada 100 hectares de soja é gerado apenas um posto de trabalho, há diversos estudos que comprovam esse dado. Então são gerados poucos empregos, e a população rural que no município de Balsas, nos anos 1980, era algo em torno de 70%, hoje está apenas entre 11 e 14%. Com a migração de boa parte da população do município para a zona urbana, há um aumento da violência, prostituição e outros problemas que afetam todos os municípios brasileiros que cresceram rapidamente e não tiveram investimento em infraestrutura. Casos semelhantes são encontrados em Uruçuí no Piauí; no oeste da Bahia, tanto em Luiz Eduardo Magalhães como em Barreiras; em cidades dos Estados de Goiás, Tocantins e Pará. Há investimentos para que determinados grupos econômicos possam ter mais lucros e as populações locais não têm acesso a esses dividendos.

O que nós entendemos como grileiros eram políticos locais, funcionários da polícia e comerciantes influentes. Essa situação foi comum no Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, oeste da Bahia, sul do Piauí, Maranhão, Amazonas, Pará e outras áreas de expansão de fronteira agrícola.

Na trajetória histórica do Brasil, que papel ocupa a grilagem de terras nas disputas territoriais?

A grilagem ainda continua sendo uma prática e o processo de ocupação de terras no Brasil está muito relacionado à própria colonização, com a prioridade que se deu às grandes áreas de cultivo e às grandes propriedades. Mas a grilagem propriamente dita tem uma intensificação a partir dos anos 1960 quando se inicia a política de cercamento das propriedades. Se observarmos o Nordeste nesta época, uma das principais atividades econômicas no interior era a pecuária e os rebanhos eram criados soltos, os terrenos que deveriam ser cercados eram as áreas de cultivo agrícola.

Então, a política de cercamento de terras e especialmente a modernização da agricultura nos anos 1960 e 1970 acirraram muito o conflito pela posse da terra e a grilagem, principalmente nas regiões em que havia grandes áreas de terras devolutas, e aqui me refiro ao oeste da Bahia, sul do Piauí, sul do Maranhão, Tocantins e Pará. Essas localidades nesse período tiveram grandes grilagens. Eu cito no meu estudo um comerciante da cidade de Balsas que possuía 500 hectares de terras aproximadamente e, quando foi julgada a posse, essa propriedade aumentou para 70 mil hectares. Logo que ele conseguiu regularizar, toda essa área foi repartida com funcionários públicos locais do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), da polícia, comerciantes e políticos.

No momento os grileiros estão atuando em locais que ainda possuem terras devolutas, e o foco hoje é o estado do Pará, onde há uma grande gama de áreas desse tipo. Embora haja uma política do governo de tentar regularizar a situação de pequenos proprietários e populações ribeirinhas, esses grupos menores não têm capacidade, em termos políticos e financeiros, de se organizar e mobilizar de forma tão rápida quanto esses grileiros, que “regularizam” as terras muito brevemente, ao passo que populações do município de Balsas tentam regularizar suas áreas há mais de 20 anos e sempre se defrontam com questões burocráticas que dificultam muito essa titulação. No entanto, os mais influentes conseguem em dois ou três meses regularizar áreas enormes, utilizando pessoas como laranjas.

É um problema que muitas pessoas pensam que não existe mais no Brasil, mas ele ainda ocorre, especialmente na região amazônica, porque há municípios e estados muito grandes onde o poder público é muito ausente ou faz parte do processo de grilagem.

Como se dão os conflitos com as populações tradicionais, como os índios, ribeirinhos, quilombolas e pequenos produtores, que habitam os territórios em disputa?

Os conflitos se dão da seguinte maneira: como hoje é necessário georreferenciar as terras, essas pessoas que vão grilar áreas enviam funcionários para fazer essas coletas de informação. As populações locais que estão minimamente organizadas entram em conflito proibindo que esses funcionários entrem nos territórios, mas muitas vezes são reprimidas duramente com execuções. Sobre o município de Balsas, na minha tese apresento relatos de pessoas que sumiram depois que entraram em conflito com grileiros. As pessoas já moravam naquela localidade, porém os grileiros simplesmente chegaram com um funcionário e disseram que determinadas terras eram deles. As pessoas, por sua vez, se recusaram a sair e depois disso nunca mais foram vistas.

Estou falando de regiões que são mais isoladas, nas quais, se não houver a atuação de movimentos sociais e sindicatos para divulgar o que acontece no campo, não se tem acesso às informações. Para se ter uma ideia, eu fiz meu estudo em uma localidade que fica distante 200 Km da sede do município de Balsas, que são áreas de difícil acesso.

Os conflitos só não foram maiores na área onde pesquisei porque houve a intervenção de instituições internacionais, principalmente da Alemanha e da Itália, que defendem Direitos Humanos e passaram a pressionar o governo do estado do Maranhão a criar assentamentos rurais. Entretanto, o projeto do grupo de grileiros era de povoar a região só com produtores de soja, tornar as populações locais trabalhadores rurais assalariados e criar um município.

Há muitos conflitos, alguns também relacionados à construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, em que os índios não foram ouvidos sobre as questões relacionadas à cultura local, como a existência de cemitérios indígenas em áreas de alagamento, a destruição de espaços de caça, pesca e moradia históricos da população, elementos que não foram respeitados. Em alguns casos os índios detiveram os engenheiros das empresas que trabalhavam nas obras e ficaram com eles reclusos por um tempo para chamar a atenção da imprensa.

O Estado brasileiro, principalmente durante a ditadura, partiu do pressuposto de que o Cerrado e a Amazônia eram áreas desabitadas, então houve um intenso processo de elaboração de programas, políticas e projetos para deslocar populações para essas regiões.

Tem havido denúncias a respeito da compra de terras no Brasil por empresas estrangeiras. Como têm se dado esses negócios no país?

Essa movimentação se intensifica nos anos 2000, mas as primeiras grandes entradas de capital estrangeiro aconteceram já nos anos 1970, com a companhia de gás italiana Liquigas Group, que conseguiu extensas áreas na Amazônia, e também com o estabelecimento da Volkswagen no país.

No final dos anos 1990 e início dos anos 2000, quando os chineses passaram a investir mais na compra de terras e na produção de grãos para garantir que o país tivesse acesso a alimentos, o Brasil modificou um pouco a legislação, limitando o percentual de terra que cada empresa ou pessoa não brasileira poderia adquirir por município. No entanto, a lógica do capital é o tempo todo criativa na tarefa de maximizar os ganhos. Assim a Agroinvest modificou o agronegócio brasileiro no mercado de comercialização de terras lançando formas distintas de captação de recursos.

No Brasil, se alguém quisesse comprar terras e captar recursos procurava uma instituição financeira, um banco público ou privado para fazer um empréstimo e realizar a operação. A Agroinvest criou um modo de captação de recurso a partir da expectativa de ganhos futuros, como algumas empresas fazem, mas isso não era uma prática comum na produção agropecuária. Dessa forma, em termos de negócios de terras, se abriu a possibilidade de os grandes fundos começarem a investir nessas empresas e indiretamente adquirir territórios.

Em que implica essa entrada de capital internacional na aquisição de grandes áreas de terras brasileiras?

O Brasil fechou uma porta, ao limitar o percentual de área que os estrangeiros poderiam comprar, mas abriu outra, a partir da possibilidade de investir nessas empresas que produzem grãos ou administram estabelecimentos agropecuários com base nos ganhos futuros no médio e no longo prazo. Desse momento em diante temos muitos casos de fundos internacionais que estão investindo nessas empresas que ampliam o agronegócio brasileiro.

A Agroinvest hoje controla uma região que eles chamam de MAPITOBA, que compreende o Maranhão, Piauí, Tocantins e Bahia. O objetivo é aumentar a produção de grãos, então eles compram empresas locais e vão encontrando outras maneiras de aproveitar as brechas que a legislação brasileira deixa para a compra de terras, de modo que não há um dado oficial que informe quantos hectares de terras no Brasil são propriedade de não brasileiros, porque embora a terra esteja em nome da Agroinvest, quem administra e controla financeiramente não são brasileiros, são fundos de investimento internacionais. Por isso que há dificuldade em saber qual é o tamanho real dessa presença estrangeira. Eu gosto de trabalhar com a seguinte hipótese: a área que a Agroinvest tem não é basicamente área de brasileiros, são empresas ou fundos internacionais que estão investindo nessa nova forma de negócio.


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