19/04/2024 - Edição 540

Camaleoa

Poder, protesto e resultados práticos de uma administração pública

Publicado em 21/03/2014 12:00 - Cristina Livramento

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Nunca antes na história de Campo Grande, um prefeito foi cassado. Nem um radialista, alguém de fora do metiê dos sobrenomes e partidos reinantes da história política de Mato Grosso do Sul. Quando voltei para a cidade, a notícia me parecia uma sinalização de mudança. Mas, como nada é perfeito e o poder corrompe o homem (e não me refiro aqui especificamente ao ex-prefeito, Alcides Jesus Peralta Bernal, mas a todos nós seres humanos), acabamos com o desfecho que tivemos. O voto de protesto dos campo-grandenses, que elegeu o símbolo da oposição política reinante, foi derrubado na quarta-feira, dia 12 de março, de 2014.

Naquela noite tive a oportunidade de conversar com algumas pessoas do lado de fora da Câmara Municipal, manifestantes pró-Bernal que assistiam a transmissão da sessão pelo telão montado no estacionamento, ao lado da Casa de Leis. Nesses momentos, como em passeatas, é forte e viva a sensação – de protesto e reivindicação de um povo – no ambiente. A massa tem um poder que nem ela mesma reconhece. E essa energia é contagiante. Escrevendo isso agora, reflito, talvez seja justamente essa experiência que transforma as pessoas em militantes cegos e esbravejadores de supostas verdades. Uma pena porque todo o excesso impede um diálogo frio e prático em prol da coletividade.

Mas voltando àquela quarta-feira de cassação, eu conversei com João Vilamajor, 43 anos, montador de móveis, que tinha ido lá apenas para participar do exercício da democracia. Vestindo a camiseta do Brasil, João sentia orgulho em estar muito bem acompanhado. “Eu trouxe o meu filho de 10 anos para acompanhar esse dia tão importante para a nossa história.” A criança não tinha a menor ideia do que se passava lá dentro da Câmara, mas o pai estava fazendo o que lhe cabe como figura paterna, educar, ser companheiro. Ambos estavam ali desde às 13h.

Maristela Marques, de 37 anos, após rasgar o título de eleitor pela manhã, em protesto ao desrespeito a seu voto para Alcides Bernal, continuava ali, em pé, em frente ao telão atenta ao que os vereadores diziam. “O que vale meu título para eles? Nada! Se a nossa voz não tá valendo nada, pra que a gente vai votar?”

Neli Lopes, de 47 anos, costureira, Vanderson Escobar, 42 anos, pintor, e Marcio Ferreira, 49, aposentado, da ocupação do Jardim das Ortências, vestiam camisetas pró-Bernal e distribuíam panfletos com as melhorias feitas durante a administração do ex-prefeito. Entre elas estavam a redução do valor do passe de ônibus, contratação de 330 professores e 80 guardas municipais, atendimento noturno nos postos de saúde e cultura para os bairros. E todos reclamavam do desprezo dos políticos em relação ao bairro. “Nós cansamos de ser roubados. Nelsinho nunca apareceu no nosso bairro”, contou Neli.

A resposta quase unânime para “o que Bernal fez durante esse um ano para você estar aqui defendendo o nome dele” se referia a melhoria nos postos de saúde. O que, é claro, me chama atenção porque todo dia nós (eu, você e toda comunidade) lemos nos sites de notícias de Campo Grande, relatos absurdos, que mais parecem enredo de um livro de ficção científica do que de uma história real.

Infelizmente ainda não percorri os postos de saúde, como usuária não como jornalista, para falar do assunto com mais conhecimento, mas podemos citar algumas coisas que sabemos pela imprensa e outras por experiência própria.

1. Toda semana praticamente lemos denúncias sobre falta de pediatra. Com tanta mulher grávida pela cidade, com tanta gente tendo filho é praticamente um crime a administração de uma cidade permitir que isso seja assunto rotineiro da imprensa;

2. Com frequência lemos denúncias sobre mulheres que têm seus partos adiados. As consequências, quando a história é publicada pela imprensa, são relatos medonhos de descaso e humilhação. Muitos deles acabam em morte ou deixam sequelas irreparáveis na criança. Toda denúncia com esse desfecho deveria ser apurada e os responsáveis exemplarmente punidos.

3. Minha filha, ano passado, bancando a skatista profissional na Orla Morena – sem nunca ter subido num skate – torceu o tornozelo. Fui ao Hospital Infantil São Lucas, na Santa Casa e, naquela noite, descobri que só existe ortopedista na Santa Casa. Apesar da minha filha ter plano de saúde, nós precisaríamos entrar na fila do atendimento do SUS para sermos atendidas porque na Santa Casa, um dos hospitais mais importantes da cidade, só tem um ortopedista atendendo.

Resolvemos nosso caso no Hospital Adventista do Pênfigo, mas e quem não tem plano de saúde? Nenhum homem, mulher, criança ou idoso deveria se ver numa situação de dor aguda, e ainda assim ser obrigado a percorrer – sabe-se lá de que jeito – vários hospitais para descobrir onde e como funciona o atendimento de uma especialidade. Campo Grande tem pichação, viciado em crack em semáforo, arrastão, sequestro relâmpago, já somos uma grande capital, deveria existir um especialista de cada área médica – pelo menos – em todos os hospitais da região central da cidade.

4. Nunca consegui agendar uma consulta com um neurologista em NENHUM posto de saúde de Campo Grande, nem em São Paulo, nem em Porto Alegre. Se você precisa de um neurologista, tá simplesmente perdido porque a lista de espera é gigantesca, e não tem profissional suficiente. Agora imagina uma mãe vendo seu filho convulsionar de 10 a 15 vezes ao dia e ser obrigada a esperar uma vaga, a percorrer de ônibus por aí implorando atendimento?

Não sou de nenhum partido, nunca fui, não defendo ala nenhuma e não estou aqui para falar nem bem nem mal do ex-prefeito, mas refletir sobre nossas posições políticas quanto a resultados práticos coletivos. A população merece respeito.

Do descaso com o povo, a indiferença com o servidor

 

Na mesma quarta-feira de cassação do ex-prefeito, cobri o assalto a mão armada na farmácia da Rua Brilhante, na Vila Carvalho, onde um policial civil entrou em confronto com um dos assaltantes e morreu no local. Quando saí de lá, a esposa do policial tinha acabado de chegar. O que dizer para essa mulher, esposa de um policial morto, grávida e mãe de 3 crianças?

O que dizer para o irmão dele, policial militar, que andava de um lado para o outro com a mão na cabeça incrédulo com o que tinha acontecido, com a imagem que ele via e revia com os próprios olhos e não conseguia acreditar?

Qualquer lugar do mundo precisa do serviço da polícia, essencial na engrenagem administrativa de um vilarejo, uma cidade, uma metrópole. Ao invés de zelar por esses servidores, a polícia é tratada como a população, como os médicos e enfermeiros contratados pelos SUS, como homens-máquinas. O município, o estado, o poder federal disponibilizam o caos e diz – bom, camarada, problema seu se o carro tá caindo aos pedaços, se você tá dando a sua vida pela segurança, se existe infraestrutura para você atender e tratar seus pacientes, TE VIRA.

E tudo bem porque não somos nós a viúva do policial, não somos nós o viúvo que perdeu a esposa no parto após ver sua mulher durante dias sofrendo de dor, o parto ser adiado e agora se vê sozinho com uma criança deficiente nos braços. Não somos nós que sentimos dor aguda ou estamos sangrando e precisando de uma ambulância. Querendo ou não, tudo isso é responsabilidade nossa, minha e sua.

Para o mau administrador, o esquecimento

Um administrador público que lê e tem conhecimento, por exemplo, da superlotação das cadeias, dos presídios, e não toma nenhuma atitude prática deveria ser colocado na prateleira do esquecimento. No mínimo. Um administrador público que lê e tem conhecimento do crescimento da violência na cidade, com assaltos, tráfico, contrabando, sequestros, estupros e não investe maciçamente em educação, lazer, saúde, moradia e alimentação, deveria ser colocado na prateleira do esquecimento.

Um administrador público que sabe das condições de trabalho de seus servidores e não o trata com dignidade (salário, benefícios, carga horária de trabalho respeitada, infraestrutura básica, no mínimo), não é capaz de produzir em seu profissional o prazer em cumprir seu papel de profissional e cidadão, deveria ser colocado na prateleira do esquecimento.

Estamos todos à margem dos interesses políticos vigentes e, infelizmente, o curso da história da humanidade parece dizer que sempre estaremos. Independente da sigla do partido da vez, do sobrenome tradicional à frente da prefeitura, do governo estadual, seu João, a população, o servidor público continua refém da vulgaridade, do jogo de interesses pessoais, da mesquinharia “política”. João não é massa, a massa não vai à manifestações movida pelo exercício da cidadania, a massa se embola nela mesma, no grito, no desespero, no medo, na culpa, na ignorância. O Ministério da Saúde Adverte: ignorar a massa embolada em tais sentimentos contraditórios é prejudicial à saúde de um país.

Mas, como disse João, independente do resultado (se referindo a sessão de cassação), “tenho que continuar trabalhando do mesmo jeito”. Afinal, um dia é sempre diferente do outro, mas sempre igual.

* Todas as imagens foram feitas com aparelho celular.

 

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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