29/03/2024 - Edição 540

True Colors

Quando um padre descobre que uma travesti é ser humano

Publicado em 12/12/2015 12:00 - Guilherme Cavalcante

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O Padre Fabio de Melo é como uma ovelha desgarrada do rebanho, digamos assim, para citar um contexto mais bíblico. Com tom progressista e palavras que acalentam, ele soma incríveis 1,43 milhões de seguidores no Twitter. Além de bonito, ele é extremamente carismático. Brincadeiras daqui e dali, o famoso pároco que também é cantor e faz até piadas de futebol para os seguidores.

Se o papa João Paulo II era pop, o padre Fábio de Melo é um legítimo olimpiano.

Mesmo assim, é de se espantar vê-lo deixar ser fotografado ao lado de uma travesti e dizer palavras de acolhimento num vídeo que vai ser fortemente compartilhado na Internet. E até quando erra o tratamento (que deveria ser no feminino para se referir a uma travesti) e volta para pedir desculpas, causa frisson.

Foi o que aconteceu no último dia 10, quando esteve na Quadra da Mangueira, no Rio de Janeiro, para o aniversário da cantora Alcione. Lá também estava a travesti Luana Muniz (aquela do Profissão Repórter, dona do 'bordão' "Travesti não é bagunça"). A história você confere relatada pelo próprio Padre no vídeo abaixo:

O que a maioria vê diante do vídeo é um padre progressista que abraça 'até' travestis. Foi sensação. Sai em jornais, no Facebook, em sites LGBT especializados, mesmo que estivesse escancarado o tratamento de Luana no masculino. Padre Fabio de Melo se tornou o último bastião do cristianismo acolhedor, mas, na prática, o aspecto que relutamos a enxergar é que o testemunho dele foi no mínimo condescendente.

Parabenizar o Padre Fabio de Melo por que? Porque ele descobriu que travesti é um ser humano? Porque pediu desculpas por ter tratado Luana no masculino? Precisa ser aplaudido por isso? Menos, queridos, menos.

Olha, de um sacerdote da igreja católica, não pode se esperar mais que isso. Fato. Mas, mesmo assim, é absolutamente legítimo que a comunidade T observe os aspectos que lhes ofende, como o tratamento no masculino. Mas nem é este o foco. O lance que incomoda, mesmo, é quando se constatam os discursos, principalmente de gays cisgêneros, relativizando a transfobia e apontando o depoimento do padre como um avanço.

Ta aqui o avanço: Depois da foto, Luana voltou para sua casa, continuou vivendo da prostituição e sendo ameaçada, correndo riscos. Continua a escória da sociedade, jogada para baixo do tapete, assim como milhares de outras pessoas transexuais Brasil a fora. Quer dizer, na prática, nada mudou. O 'avanço' de que tanto falam é falacioso. É pura condescendência. História pra inglês ver.

O que seria um avanço era um padre se inteirar sobre a comunidade LGBT, em especial sobre transexuais, posicionar-se diante da opressão a que estas pessoas são submetidas sob uma ótica cristã, custasse o que custar. E ainda assim, continuaria apenas no campo do avanço, porque na prática continuaria sem mudar nada.

A partir disso, deixo a minha reflexão, a que mais importa: ainda acho preocupante que tantos, mas taaaaaantos LGBT ainda aguardem essa mudança de postura das igrejas para terem o acolhimento de Deus em sua forma mais institucional, o que é um claro sintoma de que não basta que nós nos aceitemos, temos que ser aceitos pelos outros. Temos? Não basta ter nossos direitos reconhecidos, nossa dignidade respeitada? Isso não faz com que a máquina mude com o passar do tempo?

Quer dizer, não pensam sobre Deus, não problematizam a mensagem da religião. Não entendem o que a militância faz. É o clássico contentar-se com migalhas.

Afinal, se defendemos tanto o estado laico, porque o 'sim' cristão se torna tão importante? Por que não conseguimos sustentar um posicionamento? Qual a grande dificuldade nisso, gente? Fica a pergunta.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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