26/04/2024 - Edição 540

Entrevista

Brasil nunca investiu plenamente no acesso à saúde

Publicado em 25/11/2015 12:00 -

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“O Brasil, até o ano passado, era a sétima economia do mundo e o 72º em investimento em saúde. Não há gestão eficiente que seja capaz de entregar serviços de excelência sem o financiamento adequado.  O setor privado conta com quase 60% do que é gasto anualmente em saúde para dar conta da assistência de cerca de 25% da população, enquanto o pouco mais de 40% de recursos restantes deve dar conta da assistência dos demais 3/4 em situações ordinárias, além de atender os que têm planos de saúde em tratamentos que os planos se isentam de cobrir”, dizem os médicos Gerson Salvador de Oliveira e Pedro Carneiro. Para eles, o cenário aponta para uma tentativa de desmantelar o SUS

 

O Estado brasileiro está privilegiando planos de saúde em detrimento do SUS? Se sim, desde quando isso vem acontecendo e por quais razões?

Gerson Salvador de Oliveira – Desde meados da década de 1960 o Estado brasileiro estimula o setor privado em saúde, via incentivos fiscais. Até hoje incentiva, através de desconto no imposto de renda de despesas com saúde e isenção de impostos de serviços classificados como filantrópicos, entre eles os muitos dos principais hospitais particulares do país. Parte deste incentivo se deu com objetivo de utilizar os serviços de uma rede já instalada, mas sua intensificação tem a ver com o financiamento de campanhas para os legislativos e executivos. O poder de lobby das empresas de saúde tem se intensificado e a representação no parlamento de defensores do Sistema Único de Saúde tem diminuído.

Há uma tentativa de desmantelar o SUS? Quais são as evidências de que isso está acontecendo?

Pedro Carneiro – Garantir atenção integral à saúde de toda nossa população custaria muito, e o Brasil nunca investiu num patamar que pudesse viabilizar plenamente esse direito. Em tempos de crise há algumas iniciativas claras de desmantelamento do que existe, como por exemplo, por parte do Governo Federal: a PEC 86, que estabelece que os percentuais mínimos para investimento em saúde devem ser calculados não mais sobre a receita bruta do Estado, mas sobre a receita corrente líquida; a Lei de Diretrizes Orçamentárias em que os recursos previstos para custear a saúde pública não chegam ao mês de outubro de 2016; a “Agenda Brasil”, proposta pelo Senador Renan Calheiros que em seu texto original orientava “avaliar possibilidade de cobrança diferenciada de procedimentos do SUS por faixa de renda”; a proposta do deputado Eduardo Cunha: PEC 451 que “inclui como garantia fundamental, plano de assistência à saúde, oferecido pelo empregador em decorrência de vínculo empregatício, na utilização dos serviços de assistência médica”; PEC "do Impositivo" que garante aos parlamentares disporem de 15% do orçamento da saúde, a ser destinado a partir de emendas; a aprovação pela Câmara de Medida Provisória, que visava anistiar dívidas bilionárias de multas das empresas de medicina de grupo, vetada pela presidente Dilma. São diversas evidências de que existem iniciativas institucionais de favorecimento do setor privado ao custo do desmantelamento do SUS.

O poder de lobby das empresas de saúde tem se intensificado e a representação no parlamento de defensores do Sistema Único de Saúde tem diminuído.

Que avaliação o senhor faz do SUS ao longo desses 25 anos? Quais foram os avanços e quais ainda são as principais dificuldades do Sistema Único de Saúde brasileiro?

Gerson Salvador de Oliveira – A saúde a ser garantida como direito de todos e dever do Estado em nossa Constituição, através de um sistema único, provavelmente é a maior conquista cidadã da história de nossa República. Houve grandes avanços: o Plano Nacional de Imunizações; a oferta de atenção primária à saúde, principalmente através da estratégia saúde da família; o programa nacional de HIV/AIDS; os serviços de transplantes e captação de órgãos; a atenção pré-hospitalar a partir do SAMU; entre outros. Os principais obstáculos: financiamento insuficiente, serviços com qualidade muito heterogênea, dificuldade de acesso à atenção especializada na maioria dos municípios, leitos de internação insuficientes, emergências lotadas, recursos humanos com formação muito heterogênea e com vínculos dos mais variados devido à "salada" que existe na gestão da saúde pública: há servidores federais, estaduais e municipais admitidos por concursos, outros contratados por autarquias, outros através de terceirizações, organizações quer seja para formação quer seja para a carreira dos profissionais de saúde.

A que atribui as dificuldades do SUS, como a oferta insuficiente de serviços e os déficits de leitos de internação, por exemplo? O problema é orçamentário, de gestão ou outras razões? Quando se trata de funcionamento do SUS, que pontos fundamentais devem ser considerados?

Pedro Carneiro – Em resumo há problema de gestão, há problema de recursos humanos, mas o financiamento é muito insuficiente. O Brasil, até o ano passado, era a sétima economia do mundo e o 72º em investimento em saúde. Não há gestão eficiente que seja capaz de entregar serviços de excelência sem o financiamento adequado.

Quais são as principais contradições que percebe entre o financiamento do Estado ao setor privado e ao setor do SUS?

Gerson Salvador de Oliveira – O setor privado conta com quase 60% do que é gasto anualmente em saúde para dar conta da assistência de cerca de 25% da população, enquanto o pouco mais de 40% de recursos restantes deve dar conta da assistência dos demais 3/4 em situações ordinárias, além de atender os que têm planos de saúde em tratamentos que os planos se isentam de cobrir: atenção pré-hospitalar, emergências, tratamentos para câncer, transplantes, medicamentos para HIV e hepatites virais por exemplo, além de ações de vigilância e imunizações para toda a população.

Pedro Carneiro – Além disso, ao SUS cabe, como diz o professor Ricardo Teixeira, fazer muito mais com muito menos. Além do orçamento insuficiente, a União continua oferecendo descontos no imposto de renda para serviços privados e isentando de impostos grandes serviços privados classificados como filantrópicos.

O setor privado conta com quase 60% do que é gasto anualmente em saúde para dar conta da assistência de cerca de 25% da população.

Que comparações faz entre o SUS e o sistema de saúde público de outros países da América Latina?

Pedro Carneiro – O Brasil é o único país da América Latina que oferece sistema universal de atenção à saúde não só a seus cidadãos, mas também a estrangeiros. Mas o financiamento per capita é menor do que a média de países da América Latina.

De que modo, além da questão do financiamento, a crise política pode impactar no SUS?

Gerson Salvador de Oliveira – Há um campo político, em torno da liderança de Eduardo Cunha, com uma agenda que pode ter sérios efeitos no SUS, por exemplo, pela limitação do atendimento de mulheres vítimas de estupro, que inclui a possibilidade de aborto legal. A proposta de Cunha é que se exija o boletim de ocorrência e exame de corpo de delito, retrocedendo numa garantia que data da década de 1940. Há disposição de tentar proibir a pílula do dia seguinte também. O estatuto da família, a redução da maioridade penal, a iniciativa de cancelar o estatuto do desarmamento, caso essas propostas sejam aprovadas, caberá ao SUS atender às pessoas afetadas.

O que seria um sistema de saúde público possível para o Brasil neste atual momento?

Pedro Carneiro – O sistema público possível para o Brasil agora é o SUS, não há possibilidade de uma inflexão, de um novo sistema que garanta que os avanços que tivemos sejam preservados. É necessário haver maiores recursos e parâmetros de gestão que orientem o funcionamento dos serviços. Apesar de suas dificuldades, por sua orientação humanista, é o SUS (funcionando nos termos do que está garantido na nossa Constituição) que pode garantir que o Brasil ofereça saúde com dignidade para todos.


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