25/04/2024 - Edição 540

Especial

Democracia conectada

Publicado em 18/11/2015 12:00 -

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

Durante uma cerimônia na Universidade de Turim para receber o título de doutor honoris causa em comunicação e cultura, o filósofo, escritor e prêmio Nobel de Literatura Umberto Eco disse, em seu discurso de agradecimento, que as redes sociais deram o direito à palavra a uma legião de imbecis antes restritos às mesas de bar.

Apesar de exagerada, não é difícil entender a origem da opinião. Pense no tanto de informação desnecessária que recebemos diariamente pelo Facebook, Twitter, etc… E na quantidade de opinião desastrada, apressada e desinformada que nossos “amigos” postam com autoconfiança e descaso.

Mas existe o outro lado da moeda: olhar para os efeitos positivos da onipresença das redes sociais na vida cotidiana não é uma questão de otimismo. É entender que existe algo muito poderoso em curso.

Não é à toa que Umberto Eco termina o discurso dizendo que hoje os imbecis têm o mesmo direito à palavra que um prêmio Nobel. Ainda bem.

No Brasil, 45 milhões de pessoas já participaram de movimentos sociais por melhorias; 60% deles via internet. Nos últimos 4 anos, o número de brasileiros que participaram de movimentos sociais pela internet aumentou em 120%. Nesse mesmo período, 66 milhões começaram a acessar a internet pelo celular.

Estamos vivendo a criação de um novo espaço público interativo e colaborativo que impulsiona a capacidade de articulação e de ação da sociedade civil, tornando a democracia mais participativa, possibilitando assim novas interações das pessoas com as cidades, com os governos e com as empresas.

Espaço da Autonomia

Este novo espaço público é o que o sociólogo Manuel Castells chama de “espaço de autonomia”, um ambiente no qual as diversas forças sociais que disputam com as instituições o espaço para ecoar suas vozes florescem e disseminam novas leituras sobre a sociedade. Castells afirma que a mobilização coletiva é um processo que depende das formas de comunicação de um tempo, e a atual se baseia fundamentalmente nos dispositivos móveis na internet.

“Trata-se de um processo apoiado em redes horizontais de comunicação multidirecional, interativa, na internet e nas redes de comunicação sem fio. Este é o novo contexto que tem o cerne da sociedade em rede como nova estrutura social, em que os movimentos sociais do século XXI se constituem”, afirma.

Apesar de terem sua gênese nas redes sociais, esses movimentos também se estendem ao espaço urbano, seja por ocupação permanente de uma praça, seja por manifestações de rua. O que importa é que este movimento ocorre sempre na confluência de interação entre o espaço dos fluxos na internet e redes de comunicação sem fio com o espaço urbano. É este híbrido de cibernética e espaço urbano que constitui o terceiro espaço, a que Castells denomina espaço da autonomia. “Esses movimentos sociais em rede são novos tipos de movimentos democráticos que estão reconstruindo a esfera pública no espaço de autonomia constituído em torno da interação entre localidades e redes da internet” diz o sociólogo espanhol.

E não é só isso. Estudo realizado na Inglaterra pelo sociólogo Michael Willmott, com base em dados globais obtidos pelo World Values Survey da Universidade de Michigan, no qual foram analisadas 35 mil respostas individuais, entre 2005 e 2007, mostrou que o uso da internet qualifica as pessoas ao reforçar seus sentimentos de segurança, liberdade pessoal e influência – todos com efeitos positivos no bem-estar pessoal. O efeito é particularmente benéfico para indivíduos com baixa renda e pouca qualificação, habitantes do mundo em desenvolvimento e mulheres. Aprovação, autonomia e reforço da sociabilidade parecem intimamente conectados à prática de entrar frequentemente em rede pela internet. Prática que tem se disseminado pelo Brasil. Em 1 ano, 26,5 milhões de brasileiros passaram a se conectar à internet via celular; o número de pessoas que se conectam via celular no País já é equivalente à população da Alemanha.

Para Bruno Torturra, um dos criadores do Mídia Ninja, a tecnologia que permite esta revolução nos movimentos sociais não é técnica, mas social. “A tecnologia não é o celular, não é o smart, não é a câmera, é uma tecnologia social. A ideia de que você precisa ter gente na base, em casa, e na rua fazendo o mesmo trampo. É exponencial. Não simplesmente achar as pessoas por afinidade, mas esta possibilidade de você conseguir desfragmentar a sociedade que estava separada em vários grupos e fazê-los encontrar causas que são cada vez mais universais.

Os estudantes que neste momento ocupam cerca de 50 escolas de São Paulo contra a reestruturação do sistema educacional apelaram para este potencial com o objetivo de divulgar suas ações. Eles criaram um mapa colaborativo que é atualizado a cada nova ocupação.

Os manifestantes protestam contra a reorganização escolar que será implantada em janeiro de 2016 pela Secretaria de Educação. O projeto prevê o fechamento de 94 escolas e a transferência de cerca de 311 mil estudantes para instituições de ensino da região onde moram. O objetivo da reorganização, segundo a secretaria, é segmentar as unidades em três grupos (anos iniciais e finais dos ensinos fundamental e médio), conforme o ciclo escolar.

Pesquisa

A pesquisa F/Radar, realizada pela F/Nazca em parceria com o Datafolha e com o apoio estratégico da CRica consulting, mapeou a disseminação da internet móvel, o uso das redes sociais e a adesão ao ativismo digital no Brasil nos últimos 4 anos. O levantamento quantitativo foi ainda repercutido em conversas sobre as novas formas de fazer política em redes, com ativistas e estudiosos do assunto.

Mais da metade dos 107 milhões de internautas brasileiros (69%) já ficaram sabendo de algum movimento social pela internet, a maioria dos quais (75%) via redes sociais. Além disso, 58% dos internautas acreditam que as redes contribuem para a mudança de opinião a respeito de algum problema social.

Desde 2011, o número de ativistas digitais cresceu 120%, chegando a quase 30 milhões de pessoas. Destes, 80% se envolveram com causas pelas redes sociais: curtindo, comentando ou compartilhando conteúdos relacionados. A pesquisa mostra ainda que engajamento político não é privilégio. A maioria dos ativistas digitais do País, 45%, está na classe C.

O estudo aponta uma relação entre as redes sociais e o envolvimento presencial em mobilizações: metade daqueles que já participaram pela internet o fizeram também fora dela. Além disso, 4 em cada 10 internautas acreditam que as redes contribuem para eles participarem presencialmente.

O envolvimento com uma causa pode partir de um like. E chegar a uma assembleia, ocupação ou até a um confronto com a polícia. Mais do que online ou offline, a nova presença conectada expandiu a consciência e as possibilidades de articulação da sociedade civil. A pesquisa F/Radar atesta uma relação entre as redes e o envolvimento presencial em mobilizações: metade daqueles que já participaram de movimentos sociais pela internet o fizeram também fora dela. Além disso, 6 em cada 10 ativistas digitais acreditam que as redes contribuem para eles participarem presencialmente.

A noção de pertencimento evoluiu: basta olhar pra rua e ver na prática o resultado de uma sociedade mais conectada. São centenas de projetos voltados à participação ativa de cidadãos comuns nos processos de decisão das cidades. Do Parque Minhocão ao Parque Augusta. Do Largo da Batata, em São Paulo, ao Estelita, no Recife. Das feiras gastronômicas às hortas comunitárias, passando pelo ressurgimento do Carnaval de rua da cidade de São Paulo. Sem contar inúmeras conquistas na defesa de direitos, na criação das políticas públicas e até em mudanças de legislação. Vide o sucesso de redes como Meu Rio e Nossas Cidades.

A nova esfera pública colaborativa ampliou os sensos de pertencimento. As redes vêm impulsionando a troca de ideias e o encontro de afinidades. É o que mostram os dados da pesquisa F/Radar. Dos 74 milhões de brasileiros que ficaram sabendo de movimentos sociais pela internet, 75% tomaram conhecimento pelas redes sociais. Além disso, 69% dos internautas acreditam que as redes contribuem para eles trocarem opiniões sobre problemas do bairro, da cidade ou do País.

Mudando o mundo

Mais do que brincar com a potência do megafone que têm nas mãos, muitos estão se conectando para construir um mundo melhor. Conscientes de que atitudes e escolhas — mesmo um compartilhamento no Facebook — têm consequências e podem fazer alguma diferença. Menos paternalismos, mais mão na massa.

Preservar o patrimônio histórico de um bairro. Impedir a demolição de uma escola. Plantar uma horta urbana coletiva. Transformar uma passagem em lugar de convivência. Despertar o interesse por algo comum. Conectar sonhos e visões de mundo. Reflexos da nova esfera pública colaborativa mapeada pela pesquisa F/Radar.

É o caso do movimento Direitos Urbanos, que surgiu da articulação de pessoas interessadas em política e preocupadas com os problemas da cidade do Recife. A partir de um grupo de pessoas que se conheciam offline, o grupo foi se expandindo através das redes sociais e começou a transformar suas preocupações em ação. Uma das principais ações do gripo foi o movimento OcupeEstelita, mobilização pela preservação do cais José Estelita, estopim que desencadeou mobilizações em outras áreas da cidade do Recife e Região Metropolitana, envolvendo questões urbanísticas, como o projeto proposto e cancelado pelo governo de construir quatro viadutos no coração da cidade do Recife.

“As redes sociais são uma ágora digital, quase um espaço público virtual em que as pessoas se sentem compelidas a falar, principalmente pelo fato de que abriu-se a possibilidade de você descobrir que não está isolado no mundo”, afirma Ana Lira, do Direitos Urbanos.

Cristina Gouveia, do Movimento Ocupe Estelita, concorda. “Eu acompanhava o movimento pelo Facebook. Mas a qualidade do debate estava tão boa que eu achei que valia a pena fazer uma intervenção em uma conversa. A partir daí comecei a entrar nas discussões online e me envolver no dia a dia do movimento. O Direitos Urbanos começou desta forma híbrida. Foi uma discussão na internet que evoluiu para a mobilização.

Lira destaca o poder aglutinador das redes sociais para o fortalecimento dos movimentos sociais. “A gente pode criar pontes. Por exemplo, nós nos aproximamos do movimento do Parque Augusta (SP), do pessoal de Pinheirinho (CE), da galera de Belo Horizonte, do pessoal do Rio Grande do Sul. Como a gente viu que estas lutas eram muito próximas, o know how que cada um ia adquirindo no seu dia a dia acabava fortalecendo as demais”

Esta mescla de conhecimentos é o que fortalece os movimentos em rede, afirma Gouveia. “A conexão com outros movimentos é importante do ponto de vista de criar força política e mobilização, mas o mais importante é quando ela consegue realmente cruzar os debates e fazer com que o amadurecimento de uma causa sirva para outra causa”.

Para o pesquisador André Lemos, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), estes movimentos ganham força quando englobam outros elementos sociais. “Se houver outros elementos em sinergia, se outros agentes e atores se envolverem, eles podem efetivamente gerar um resultado positivo mais efetivo”.

Todos por uma praça

A mobilização popular em torno da luta pelo Parque Augusta (última área verde do centro de São Paulo) tem cerca de 40 anos. A partir de meados de 2013, como resposta a uma nova investida dos proprietários em construir prédios no terreno e a necessidade em se fazer pressão pela sanção de um projeto de lei que autorizaria a criação do Parque Augusta, um novo levante popular se formou e cresceu de maneira exponencial, organizado por meio dar redes sociais.

Essa mobilização deu origem ao Organismo Parque Augusta (OPA), que define-se como um movimento autogerido, horizontal e heterogêneo. O OPA não tem líderes e nenhum grupo ou entidade oficialmente constituído o representa. Organiza-se a partir de assembleias públicas, reuniões de grupos de trabalho, ações diretas na rua e rede mundial de computadores.

Foi por meio da ação dos membros do OPA que o Parque Augusta teve suas portas reabertas em junho passado – por uma decisão judicial – depois de ter ficado um ano e meio fechado.

Membro do OPA, o arquiteto Augusto Aneas atesta a força das redes sociais neste processo. “Com o fechamento do parque nós perdemos a presença do território, o que obrigou a intensificação do trabalho virtual. Mesmo depois do parque ser reaberto, o espaço virtual virou uma ferramenta indispensável”.

Ele lembra um momento em que o poder de convocação da rede foi vital para a luta pelo Parque Augusta. “Houve uma tentativa da polícia de tirar os manifestantes do local. Um alerta pelo Facebook reuniu mais de cem pessoas ali, em 15 minutos, protegendo o parque da ação ilegal da própria polícia”.

As cidades somos nós

A força da mobilização nas redes sociais também tem sido a principal arma dos movimentos Meu Rio e Nossas Cidades, que se valem de ferramentas digitais para mobilizar a população por causas comuns.

Desde 2011, o Meu Rio conquistou muitas vitórias, como as campanhas Favela + Limpa no Lugar, Prudente de Moraes de Volta, Dados abertos dos GPS de Ônibus, Friedenreich de Pé, Legislação Ambiental Protegida, Ficha Limpa Estadual e Delegacia de Desaparecidos.

Para Miguel Lago, um dos fundadores do Meu Rio e do Nossas Cidades, a grande vantagem do ativismo digital é que, mesmo que a pessoa trabalhe o dia inteiro e passe horas no trânsito para ir e voltar do trabalho, ele permite que em cinco minutos a pessoa participe de alguma forma do processo político de sua cidade. “É preciso entender que a partir desta rede você pode mudar políticas públicas”, afirma

A Batata

Estas mudanças, no entanto, muitas vezes colocam o poder público do outro lado da trincheira. É o que argumenta Laura Sobral, do movimento A Batata precisa de você, surgido com o objetivo de fortalecer a relação afetiva da população local com o Largo da Batata.

Segundo o site do movimento, a ideia é evidenciar o potencial de um espaço hoje tão árido como local de convivência, testar possibilidades de ocupação e reivindicar infraestrutura permanente que melhore a qualidade do Largo como espaço público.

“O espaço público traz conflito, traz interesses diferentes, classes sociais diferentes. Isso não interessa para a cidade, dentro do sistema econômico de hoje. No momento em que você se apropria da sua condição de cidadão e age sobre sua cidade sem maiores autorizações e recursos, você está fazendo guerrilha. Os conflitos de fato acontecem. Que bom”, afirma Laura, que se também destaca o papel das redes sociais no fortalecimento do movimento

“Resolvi fazer uma intervenção semanal. Foi só começar que muita gente se juntou em torno desta ideia e se formou um grupo. Acho importante a gente discutir as coisas no território e também dar continuação da conversa no âmbito virtual. Não conseguiríamos estar no território de maneira permanente”.

Vivemos na biosfera

O sociólogo Massimo Di Felice (USP) ressalta que a internet, ou melhor, aquilo que hoje podemos chamar de tecnologia comunicativa das redes, é uma nova arquitetura comunicativa, o que influencia diretamente o convívio social.

“Neste sentido, estamos em uma passagem importante no âmbito da democracia e da participação. Uma passagem que é marcada por um novo tipo de participação, que não é mais apenas opinativa ou eleitoral, parlamentar. É um tipo de acontecimento que muda não apenas a forma de nos comunicarmos muda a ecologia interna social”, afirma.

Para Di Felice, a descoberta que a internet nos permite fazer é que não habitamos mais países, cidades: mas a biosfera.

FIQUE LIGADO

107 MILHÕES DE BRASILEIROS ACESSAM A INTERNET.

87 MILHÕES DE BRASILEIROS ACESSAM A INTERNET PELO CELULAR.

NOS ÚLTIMOS 4 ANOS, 66 MILHÕES COMEÇARAM A ACESSAR A INTERNET PELO CELULAR.

NESTE MESMO PERÍODO, O NÚMERO DE PESSOAS QUE PARTICIPARAM DE MOVIMENTOS SOCIAIS PELA INTERNET AUMENTOU MAIS DE 100%.

27 MILHÕES DE BRASILEIROS SÃO ATIVISTAS DIGITAIS.

80% DO ATIVISMO DIGITAL OCORRE VIA REDES SOCIAIS.

31 MILHÕES DE BRASILEIROS JÁ PARTICIPARAM PRESENCIALMENTE DE ALGUM MOVIMENTO SOCIAL.

63% DOS ATIVISTAS DIGITAIS ACREDITAM QUE AS REDES SOCIAIS OS INCENTIVAM A PARTICIPAREM PRESENCIALMENTE.

74 MILHÕES DE BRASILEIROS FICARAM SABENDO PELA INTERNET DE ALGUM MOVIMENTO SOCIAL.

PARA 69% DOS INTERNAUTAS, AS REDES SOCIAIS OS INCENTIVAM A TROCAR OPINIÕES SOBRE PROBLEMAS SOCIAIS.

PARA 57% DOS BRASILEIROS AS MANIFESTAÇÕES DE RUA A FAVOR DE ALGUMA CAUSA AJUDAM O PAÍS A MELHORAR.


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *