18/04/2024 - Edição 540

Meia Pala Bas

O argumento do banheiro ocupado

Publicado em 06/11/2015 12:00 - Rodrigo Amém

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Nem todo mundo que faz argumentações equivocadas é mal intencionado. Tem gente que repete o que ouve sem a devida reflexão, por exemplo. Mas, é claro, tem um monte de gente intelectualmente desonesta por aí. A minoria até ganha para ser assim, obtuso. Eu evito confrontar diretamente esses charlatães profissionais, ou mesmo citá-los nominalmente. Para eles, propaganda é a alma do negócio. E eu não estou disposto a direcionar meu modesto tráfego para suas baixarias filosóficas. Meus leitores já sofrem bastante com minhas bobagens sinceras. Não merecem a exposição à tanta estupidez dissimulada.

Mas é minha obrigação, vez por outra, conferir as sandices dos pistoleiros de aluguel dessa terra sem lei. Nada muito criativo ou diferente costuma acontecer, a não ser padrões de argumentos toscos reciclados na base do copia e cola. A última moda é o que eu chamo de "argumento do banheiro ocupado". Seguem exemplos retirados da vida real:

"Bolsa Família não funciona porque tem gente que não quer trabalhar, quer só ficar recebendo benefício dos outros".

"Cota universitária é um absurdo. Tem gente que, mesmo sendo negro e pobre, consegue passar no vestibular sem ajuda de ninguém. Olha o Joaquim Barbosa".

Direitos iguais? Tem gente que não precisa. Programas sociais? Tem gente que abusa. Direitos Humanos? Tem gente. Tem gente. Tem gente!

"Aborto legalizado é um absurdo. Tem gente que vai sair por aí dando adoidado só pra poder abortar de graça nas custas do governo".

"Tem gente que tem 15 anos e tá matando, tá estuprando. Tem que acabar com essa palhaçada de maioridade penal!"

"Ser politicamente correto é uma babaquice. Tem gente que é retardado, deformado e aguenta uma brincadeira."

Quando usamos um caso (na maioria das vezes hipotético) de exceção para declarar que um princípio é inválido, estamos usando o argumento do banheiro ocupado. Direitos iguais? Tem gente que não precisa. Programas sociais? Tem gente que abusa. Direitos Humanos? Tem gente. Tem gente. Tem gente!

Tem gente pra tudo no mundo. Gente que abusa, gente que explora, gente que vence todas as adversidades da vida sem qualquer ajuda (aparente). Mas esses casos singulares (quando reais) só significam isso. Casos singulares, pontos fora da curva, com a relevância estatística da exceção que confirma a regra.

Gritar "tem gente" não é uma forma sensata de discutir direitos e deveres numa sociedade democrática. Tal expressão só deveria ser empregada durante o uso do sanitário. Ironicamente, em ambos os casos, fica subentendido o que o emissor da frase está realmente fazendo.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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