28/03/2024 - Edição 540

Meia Pala Bas

Debaixo do nome

Publicado em 02/10/2015 12:00 - Rodrigo Amém

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Antes de inventarem o mundo, os membros das tribos e dos clãs se conheciam por um único nome. Ou era João, ou José, ou Maria e ou Rosa. Não era preciso mais que meia dúzia de títulos, e a morte tratava de disponibilizar os nomes das gerações anteriores para as futuras. Como todo mundo era família, bastava homenagear os pais nos netos e seguia o baile.

Mas aí as famílias vizinhas tinham mercadoria para negociar e serviços para oferecer. Não demorou para que dois Josés e três Joãos fossem mencionados em uma mesma conversa. Tudo ficou confuso. De que José você está falando? O padeiro? O pedreiro? Nascia o sobrenome e a necessidade de interagir com indivíduos de fora do clã. E, se não é família, passamos a classificar os estranhos de acordo com suas utilidades na comunidade.

Na cabeça do ser humano, quem importava tinha o seu nome. Quem era apenas momentaneamente útil tinha uma função. Um cargo. Assim o sobrenome plebeu evoluiu para delimitar a relevância de uma pessoa na sociedade: Robert Smith era um gringo chamado Roberto, que trabalhava como ferreiro. Segue o baile.

Hoje só se fala em "aldeia" como eufemismo de internet ou endereço de massacre étnico. Mas os velhos costumes permanecem. Os sobrenomes de famílias nobres e pobres se misturaram em séculos de fornicação e contamos nos dedos as linearidades que ainda carregam o "nome" de seus ancestrais.

Em nossa sociedade de rostos anônimos, nome não basta. É preciso saber a utilidade do indivíduo. Antes de saber o que ele tem a dizer, é preciso saber para que ele serve.

Aí surgem os jornalistas, os repórteres, com seus microfones e gravadores, colhendo as opiniões dos transeuntes, "humanizando" suas reportagens e seus artigos noticiosos. Antes que o entrevistado abra a boca, o gerador de caracteres já anuncia nome e função: José da Silva, advogado.  Em nossa sociedade de rostos anônimos, nome não basta. É preciso saber a utilidade do indivíduo. Antes de saber o que ele tem a dizer, é preciso saber para que ele serve.

O problema desta história é que, se o sobrenome não nos define mais, muito menos a função. O que "ser advogado" nos informa sobre José da Silva? Que ele deve uma fortuna de crédito educativo? Que seu pai achava que teatro era coisa de maconheiro e por isso ele não largou a faculdade? Que ele tem ganas de tocar a reforma do judiciário com as próprias mãos? Isso significa que ele pode opinar sobre a alta da gasolina? Indica que ele é feliz? Vai que ele odeia ser advogado. Não seria bullying chamá-lo assim?

Num mundo onde nomes de estranhos não tem qualquer significado, nossa mente tribal ainda implora contexto. Mas é injusto e ineficaz que sejamos definidos pelo nosso contracheque. A próxima revolução editorial no jornalismo vai permitir que os entrevistados escolham o que vem abaixo de seus nomes. "José da Silva, especialista em caipirinha de saquê". "Maria das Graças, mãe das antigas". "Antônio das Dores, puto com a diretoria do Vasco".

Pode não ser a melhor maneira de identificar a utilidade de um estranho. Mas pode ser um primeiro passo na direção de conhecer sua verdade.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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