28/03/2024 - Edição 540

True Colors

Carta a Geovana

Publicado em 02/10/2015 12:00 - Guilherme Cavalcante

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Campo Grande, 2 de outubro de 2015.

Querida amiga Geovana,

Já faz um tempo que diariamente leio coisas tuas que talvez nem mesmo você lembre que escreveu, de uns dez, doze anos atrás e que guardo até hoje. Muitas delas me fizeram voltar às lembranças dos sonhos que construíamos, mas também despertaram minha imaginação sobre você. Onde anda? O que faz? Ainda pensa em mim vez ou outra (aquele guri mal resolvido que vez ou outra dizia algo interessante)?

Acabei de lembrar, completei trinta anos nesta semana. O tempo passa. Foi com você minha última travessura, um beijo a três para chocar a comunidade acadêmica numa festa que entrou para a história. Mas aí o tempo já tinha passado, eu não era nada do que sou, mas era visivelmente mais tolerante do que no colégio. A vida ensina, amiga. E na distância, cada parte do corpo é ainda mais vulnerável. No aperto da distância, não tem colo de mãe. Cheguei aos trinta e convivo com as frustrações de não ter, ainda, realizado meus sonhos ou de sequer saber se estou no caminho certo.

Falando em sonhos, nunca soube dos seus. Crescer, formar, concurso, casamento, filhos? Não, né? Eu sei… Mas naquele tempo não tinha como aceitar ou sequer entender que nossos mundos, como você mesmo dizia, eram tão diferentes… Você também dizia que pensar na vida é como viajar num carro com a cabeça do lado de fora, com essas exatas palavras. Estou a uns 160 km/h. É como você descreveu, as emoções percorrem o corpo, sorrio e choro com os altos e baixos – perdas, conquistas, surpresas, derrotas, todos dispostos em saquinhos multicoloridos em cima duma mesa de toalha florida.

O tempo nos esbofeteia, percebo que a gravidade não pode ser ignorada, mesmo no auge da juventude, ainda em flor, apenas 30 anos se passaram desde o primeiro grito, tenho uns risquinhos aqui e ali na testa, no cantinho dos olhos. Nesse tempo, raspei a cabeça exatamente sete vezes, consegui perdoar meu pai, passei a admirar meu irmão, finalmente compreendi minha mãe, já cheguei aos 107 kg, emagreci 30 e já engordei outros 32.

Tem dias que acordo angustiado, aquele medo latente de me tornar aquele de quem falávamos mal. Quem diria, há uma década éramos eu e você naquele bar de calçada, tomando cerveja barata e dando em cima de fulano só para ter carona pra casa. Sexo em cama de solteiro (quando conseguíamos uma) era muito bom, hoje não cogito qualquer lugar que não minha enorme cama, com o ar condicionado no máximo.

Veja que absurdo, será que amadurecer é burocratizar a vida? Já não tenho energia para aquela viagem dos sonhos cruzando a América do Sul com uma mochila, mas conto as moedas para uns sete dias em Nova Iorque, porque não? Às vezes tenho umas epifanias e elenco as coisas que desejo: um filho, um amor que dure, fins de semana. Em casa. Acho que perdi a vaidade de ter uma carreira.

Sendo bem franco, eu não sei o que quero ser, que rumo seguir. Sinto-me infeliz e derrotado em todas as atividades que faço. Nenhum prazer. Indeciso, medroso. Veja, há uns dias acordei inconformado com meu cabelo (está crescendo) e dediquei a tarde a pesquisas no Google até descobrir que quero que eles fiquem exatamente como estão. Esse sou eu, no momento, em um exemplo dos mais frugais. Cabeça fora do carro, 160km/h.

Posso te falar sem medo que o seu compromisso com você mesma me inveja. Você parece saber de tudo e comigo ainda esse tudo ainda é tão incerto… Penso eu que devo ter Libra pelo menos em três pontos do mapa astral, seria a explicação possível para tanta indecisão e ansiedade. Fico impressionado como e por que depois de tanto tempo ainda consigo te amar tanto e tanto. Você nem sabe, Geovana, mas você me inspira.

 

Uma Flor de Dama

Está longe de ser a mesma coisa que assistir ao original, mas finalmente encontrei na íntegra o espetáculo Uma Flor de Dama, dirigido e estrelado pelo ator cearense Silvero Pereira, baseado na obra homônima de Caio Fernando Abreu. O espetáculo esteve em Campo Grande no ano passado, trazido pelo Circuito Sesc de Teatro, e foi um sucesso, tanto de público como no debate após o espetáculo. Para quem não pode assisti-lo, ei-lo aqui (veja vídeo abaixo).

O espetáculo traz uma desconstrução do imaginário trans e nos confronta com nossos próprios preconceitos. Ssucesso no país inteiro, Uma Flor de Dama integra as ações do coletivo cearense As Travestidas, um grupo de estudos/prático que destrincha em forma de produtos culturais o universo LGBT, sobretudo o de pessoas trans e travestis. Originário do Ceará, o grupo causa frisson a cada evento do grupo (como o espetáculo BR Trans).

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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