20/04/2024 - Edição 540

Poder

Vergonha internacional

Publicado em 13/11/2020 12:00 -

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O vice-presidente Hamilton Mourão afirmou nesta sexta-feira (13) que entende que a vitória do democrata Joe Biden nas eleições dos Estados Unidos e a consequente derrota de Donald Trump "está cada vez mais sendo irreversível".

Em entrevista à Rádio Gaúcha, Mourão apontou, no entanto, que essa é sua posição individual e que não estava falando pelo governo. Por outro lado, ele afirmou acreditar que "brevemente" o governo Jair Bolsonaro vai reconhecer Biden como presidente eleito.

"Como indivíduo, eu reconheço, mas temos que olhar que eu não respondo pelo governo. Como indivíduo, eu julgo que a vitória do Joe Biden está cada vez mais sendo irreversível", disse Mourão. "Brevemente acho que vai acontecer isso [o reconhecimento pelo governo]. E acho que não há uma tensão entre as duas nações, é mais um fogo de palha", completou.

O democrata Joe Biden venceu as eleições nos EUA no último sábado, após cruzar a marca de 270 votos no Colégio Eleitoral, segundo várias projeções. No entanto, o governo Bolsonaro vem se mantendo em silêncio sobre o resultado, em contraste com dezenas de outros países, incluindo aliados dos EUA, que já parabenizaram Biden e sua vice, Kamala Harris.

Apenas um punhado de nações como Brasil, Rússia e Coreia do Norte ainda permanecem em silêncio. Nesta semana, a China e a Turquia, que vinham evitando tomar posição, acabaram por reconhecer Biden como presidente eleito.

Bolsonaro, por enquanto, segue em silêncio, mas também vem dando sinais de que ficou desapontado com o desfecho da eleição americana. Na quinta-feira, seis dias após o anúncio do resultado, ele disse: "Mas já acabou, já acabaram as eleições?", sinalizando que espera que recontagens ou processos judiciais ainda possam reverter o resultado e dar continuidade ao governo Trump, que não reconhece a derrota e vem tumultuando o processo de transição.

Na terça-feira, Bolsonaro também demonstrou sua contrariedade com um governo Biden ao insinuar que pode ter que recorrer a uma demonstração de força militar para driblar eventuais sanções econômicas impostas pelo futuro presidente democrata em resposta ao desmatamento desenfreado da Amazônia.

Redes ligadas à família Bolsonaro na internet também vêm espalhando que a eleição americana não acabou e que o vencedor só é oficializado em dezembro. Várias contas também vêm propagando as acusações sem provas do republicano de que o pleito foi marcado por fraudes.

Em novembro de 2016, quando ainda era deputado, Bolsonaro parabenizou Trump pelo Twitter poucas horas depois do anúncio da primeira projeção que apontou a vitória do republicano, sem esperar pela oficialização do resultado em dezembro. 

Durante a campanha eleitoral de 2020, Bolsonaro chegou a afirmar publicamente que torcia pela reeleição de Trump e, na semana passada, quando a contagem já sinalizava que Trump seria derrotado, o brasileiro disse que a "esperança é a última que morre". Apelidado de "Trump dos trópicos" por seu estilo radical e afinidade com o homólogo americano, Bolsonaro promoveu durante seu governo um alinhamento incondicional com os EUA.

Mas a simpatia de Bolsonaro não se limitou a falas. Seu governo chegou a dar ajuda indireta para a campanha de Trump, como na visita do secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, ao estado de Roraima, próximo da fronteira da Venezuela, em setembro. A viagem foi encarada como um gesto para a comunidade latina antichavista do estado da Flórida. A visita de Pompeo a Roraima foi alvo de críticas do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que apontou que a vinda do americano não era apropriada a menos de 46 dias da eleição nos EUA.

Bolsonaro não é o único membro do governo que é fã de Trump. Seu ministro das Relações Exteriores, o ultraconservador Ernesto Araújo, já chegou a comparar Trump com uma espécie de cavaleiro medieval que salvaria o Ocidente.

Os filhos do presidente, que têm forte influência sobre o governo do pai, também são admiradores do republicano. Em 2018, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) chegou a aparecer publicamente com um boné "Trump 2020" durante uma visita a Washington, depois que seu pai já havia sido eleito.

Estratégia equivocada

A demora do presidente Jair Bolsonaro em reconhecer a vitória do democrata Joe Biden na eleição presidencial dos Estados Unidos ameaça ampliar o isolamento do Brasil, já bastante acentuado em razão do comportamento irresponsável do governo em relação a temas caros à comunidade internacional, como o meio ambiente.

O argumento do governo para que Bolsonaro não se juntasse a chefes de Estado de quase todo o mundo, que cumprimentaram Biden assim que ficou claro o triunfo do candidato democrata, é que ainda cabem contestações ao resultado, por meio de recursos interpostos pelo presidente Donald Trump, que tentava a reeleição.

De fato, é direito do presidente Trump, bem como de qualquer outro derrotado, ingressar na Justiça para questionar o desfecho da eleição, se considerar que houve irregularidades. Dito isso, quase ninguém nos Estados Unidos parece levar a sério as alegações de fraude.

Mas Bolsonaro, que nada tem a ver com as atribulações de Trump, decidiu levar o caso a sério. Certamente aconselhado por seu chanceler, Ernesto Araújo, para quem Trump é nada menos que o “salvador do Ocidente”, o presidente brasileiro dá a entender que acredita na possibilidade de uma reviravolta a favor de seu guru norte-americano.

A hipótese benevolente é que se trata de uma estratégia para que Bolsonaro tenha tempo de encontrar um discurso que não o indisponha com Trump nem com os fanáticos bolsonaristas que, nas redes sociais, insistem que seu ídolo venceu a eleição e é vítima de um golpe dos democratas, em conluio com a imprensa e com as autoridades eleitorais dos Estados Unidos.

A hipótese mais plausível, contudo, é que Bolsonaro realmente acredita nas patranhas inventadas por Trump e pela extrema direita norte-americana. Vê nisso a narrativa ideal para seu próprio projeto eleitoral, como já ficou claro desde a campanha de 2018.

Pouco importa que, na eleição presidencial de 2016, Trump não tenha esperado o fim da apuração para se declarar vencedor, dado que seu triunfo foi atestado pelas projeções da mesma imprensa que ele hoje acusa de mentir; também pouco importa que, naquela mesma eleição, assim que a imprensa norte-americana prognosticou a vitória de Trump, um dia depois da votação, o então deputado Jair Bolsonaro parabenizou o ídolo, chamando-o de “o melhor, o patriota, aquele que lutou contra tudo e contra todos”. Coerência, como se sabe, nunca foi o forte desses vândalos da democracia. 

O problema é que, de um jeito ou de outro, quem perde é o Brasil. Bolsonaro elevou à categoria de política externa as relações pessoais que julga ter com Trump – e que jamais foram recíprocas. Estimulado por seus estrategistas lunáticos, Bolsonaro alimentou a fantasia segundo a qual seu servilismo em relação ao presidente norte-americano tornaria o Brasil um país privilegiado pelos Estados Unidos. Isso nunca aconteceu e, para piorar, o alinhamento automático do Brasil com a irresponsabilidade de Trump ameaça converter o País de vez em pária mundial.

Não se misturam preferências pessoais com interesses de Estado. O primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, mostrou como se faz: embora muito chegado a Trump, não hesitou em reconhecer a vitória de Joe Biden, pois sabe que depende de boas relações com o governo norte-americano – qualquer governo.

O Brasil de Bolsonaro acredita que pode se dar ao luxo de hostilizar o futuro governante dos Estados Unidos desde já. Alinha-se assim à Rússia, que também demora a reconhecer a eleição de Biden sob o pretexto de que ainda não é “oficial”. A diferença é que a Rússia é um país autoritário com amplo histórico de desavenças com os Estados Unidos e não se importa de alimentar mais uma; já o Brasil, potência apenas média e bastante dependente de investimentos externos, construiu seu bom status internacional sem se alinhar preferencialmente a nenhum país e sem hostilizar gratuitamente qualquer governo. É esse patrimônio que Bolsonaro joga fora, graças a um capricho pessoal, pelo qual o Brasil pagará caro.


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