28/03/2024 - Edição 540

True Colors

Corpos subalternos, talentos também

Publicado em 03/09/2015 12:00 - Guilherme Cavalcante

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Mais dois filmes sobre pessoas transgênero estão em vias de sair do forno, direto para as telinhas. Um deles traz a excelente Elle Fanning interpretando um adolescente trans em "About Ray" . Já o outro chegou causando frisson, pois conta a história verídica de Lili Elbe, a primeira mulher transgênero que se submeteu a uma cirurgia de redesignação sexual (conhecida rudimentarmente como troca de sexo). Na película, é o recém vencedor do Oscar, Eddie Redmayne, que interpretará a personagem. E um fato: as duas histórias podem agregar muito ao mais que necessário debate sobre o direito às identidades, sobretudo no campo do gênero (veja trailers abaixo).

Mas (sempre tem um mas)… Não é um tanto quanto curioso, ou no mínimo inusitado, que personagens transgênero de filmes tidos como empoderadores não sejam interpretados por artistas que compartilhem da mesma condição?

Primeiro uma contextualização. Hollywood é um dos principais polos de produção audiovisual do mundo, certamente o principal do ocidente. Lá, dezenas de estúdios disputam anualmente as indicações para o prêmio máximo do cinema, o Oscar. E para isso fazem superproduções, os blockbusters, campeões de bilheteria. E como toda superprodução hollywoodiana, uma transformação no elenco é sempre bem vinda. Logo, quanto mais "bizarra" a caracterização for, melhor.

É assim que a qualidade da interpretação se torna apenas um detalhe. Deixar atriz bonita feia, fazer ator parecer mulher, alcançar um bom resultado nisso daí já é quase sinônimo de indicação ao Oscar. Hollywood gosta do freakshow e quando a transformação acontece direitinho, a bilheteria é certa, afinal, é esse o resultado que importa. E cá entre nós, quem não teria curiosidade de conferir Leonardo DiCaprio caracterizado como mulher? Difícil resistir.

Daí acabamos percebendo que a poeira não cabe mais sob o tapete. A poeira, no caso, atrizes e atores transgênero. Em termos gerais, quem está fora da norma não atua (a não ser atores gays que se mantêm no armário para não "arruinar a carreira"), não tem espaço nas grandes produções, são estranhos demais. A invisibilidade só é rompida com o movimento organizado, que ganha voz através da Internet, forma o buzz e deixa seu recado: representatividade importa.

Ainda para contextualizar, não é só no cinema que essa invisibilidade acontece. Nas telenovelas brasileiras são pouquíssimos e raros os exemplos de transgêneros em atuação. Aliás, falando em minoria, é meio inacreditável que há algumas décadas personagens negros eram interpretados por brancos por meio do "recurso" blackface – pele e rosto pintados de preto. Isso porque TV e cinema era lugar de gente branca. Aliás, não tem muito tempo, mas a Justiça precisou ter um papo tête-à-tête com a direção da TV Globo para que mais atores negros fossem inseridos nas tramas. Quer dizer…

No mercado internacional, são poucos exemplos de transgêneros em atuação, só me recordo de duas – Laverne Cox em "Orange is The New Black" e Jamie Clayton em "Sense8", mulheres trans interpretando mulheres trans. E no segundo exemplo, dá para citar que um dos criadores da série (ambas do sistema Netflix, a propósito) é Lana Wachowski, também mulher trans. Mas cisgêneros que interpretaram trans há aos montes: Hilary Swank em "Meninos não Choram", Felicity Huffman em "Transamerica", Glen Close em "Albert Nobbs" e, claro, o controverso Oscar vencido por Jared Leto em "Clube de Compra Dallas", dentre outros.

Veja, esse debate aqui não é o caso de deslegitimar o talento dos artistas citados, mas de falar que sua utilização em filmes que pretendem acender uma certa discussão faz com que o propósito "transformador" seja… desonesto. Não dá para sustentar o discurso (possivelmente dito quando o ator ou o diretor forem receber suas estatuetas) de que o filme transformará realidades se nenhum ator ou atriz transgênero estão no elenco.

Quer dizer, em outras palavras, isso significa dizer que toda e qualquer produção audiovisual com pessoas trans e que utilize cisgêneros em megatransformações para viver alguém da comunidade T não passará de fetichização de uma realidade que está aí, cada vez mais invisibilizada.

Assim, promover a representação de personagens trans por um elenco trans é revelar uma realidade que não se pode mais ocultar, é fortalecer a representação e, consequentemente, empregar pessoas igualmente talentosas em encenações memoráveis. O talento importa, mas não é exclusivo de cisgêneros. Oportunizar essa vivência também é impactar e romper com a transfobia, colocar corpos subalternos em evidência e promover oportunidades. É um ato de cidadania, de respeito e de dignidade à pessoa humana.

É o que nós, espectadores, queremos ver.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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