23/04/2024 - Edição 540

Meia Pala Bas

MS campeão de escravidão

Publicado em 14/08/2015 12:00 - Rodrigo Amém

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Em 1619, um navio chamado Leão Branco chegou extremamente avariado à colónia de Virgínia, nos EUA, trazido pelas marés. A tripulação, quase toda morta. Nos porões, 20 reféns africanos famintos sobreviviam. Não havia um modelo escravagista na América do Norte. Os colonos alimentaram e acolheram os africanos sob os moldes de emprego oferecidos aos imigrantes pobres europeus: eles ganhariam suas próprias terras depois de sete anos de trabalho nas fazendas dos primeiros colonos.

As colônias prosperaram e os donos repensaram suas promessas. Ao contrário do que aconteceu com os imigrantes europeus, os africanos não tinham seus direitos reconhecidos pela justiça das colônias. Eram trabalhadores sem direitos. Eram tratados como rebanho. Um modelo de negócio tão lucrativo que, em 1641, a escravidão foi legalizada. Em 1660, a Inglaterra criou uma empresa estatal para explorar o tráfico de escravos africanos, chamados de “ouro negro”. Os navios negreiros da coroa britânica só seriam proibidos em 1807, quando este modelo de exploração econômica já havia se consolidado dentro da cultura do ocidente. 

A igreja e até alguns acadêmicos destinaram tempo e dinheiro para apaziguar os corações dos cidadãos que viam com desconforto a violência e a crueldade que moviam o estilo de vida nas colônias. Alguns catedráticos afirmavam que os negros não eram “plenamente humanos”. Alguns religiosos sugeriam que eles não possuíam alma, ou que aquele sofrimento era biblicamente justificável, de alguma maneira. 

Resta perguntar quando deixaremos de discriminar por espécie. Em que momento nos daremos conta de que ser vivo nenhum deve ser tratado como propriedade, ser vendido e ser torturado. Que todo ser vivo tem direito à felicidade, à liberdade.

Custou muitas vidas, levou muito tempo e muito derramamento de sangue, mas a escravidão foi abolida na maior parte do mundo ocidental. Ainda existem pessoas trabalhando em condições análogas à escravidão abastecendo nossa sociedade de smartphones e calças jeans. Mas fingimos que não sabemos e condenamos publicamente, ao mesmo tempo que continuamos a desfrutar as benesses de um mercado de produtos barateados pelo desrespeito aos direitos humanos. Não adotamos mais o discurso de desumanização. Adotamos a santa ignorância. Ainda é horrível, mas já é um avanço. Quem lê esses fatos nos livros de história sente repulsa e pensa: “Como as pessoas eram capazes de conviver com tanta violência?"

As mazelas do escravismo não são fáceis de curar. É uma reorganização social que pode levar muitas gerações. Há sim, uma dívida social a ser paga. Há a questão injustificável do preconceito. Casamentos interraciais não eram reconhecidos até o meio do século XX. Mas já existe um consenso entre a sociedade civil (e sã) que todo ser humano é igual e direitos reconhecidos pela Constituição. Nem todo mundo pensa assim e tem gente que vai morrer sem concordar, mas é um começo. Acredito que podemos dizer que a era em que renegávamos os direitos de um ser vivo em função de sua origem e sua cor de pele pertencem a um passado incomodamente recente, mas estamos nos distanciando desse pesadelo a cada velório de velhinho reacionário. 

Resta perguntar quando deixaremos de discriminar por espécie. Em que momento nos daremos conta de que ser vivo nenhum deve ser tratado como propriedade, ser vendido e ser torturado. Que todo ser vivo tem direito à felicidade, à liberdade. Que nós, seres humanos, com nossas convenções aleatórias sobre o que é vida e qual seu valor, não podemos continuar matando por prazer, vaidade, lucro e tédio. Que um sistema econômico baseado na exploração de seres vivos é um sistema escravista.

É uma evolução de perspectiva que hoje parece drástica e impensável para uma sociedade construída sobre esse modelo de abuso e crueldade. Mas evoluir é preciso e inevitável. Chegará o dia em que nossos irmãos animais terão seus direitos reconhecidos, sem dúvida. Provavelmente nenhum de nós estará vivo para presenciar o momento. Mas Mato Grosso do Sul estará presente nos livros de história do futuro como um dos líderes mundiais em escravidão animal. E nossos descendentes pensarão: “Como eles foram capazes de conviver com tanta violência?"

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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