19/04/2024 - Edição 540

Especial

Maconha no STF

Publicado em 14/08/2015 12:00 -

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O Supremo Tribunal Federal (STF) deve realizar na próxima quarta-feira (19), o julgamento que pode definir se é crime ou não portar drogas para consumo próprio.

O julgamento tem como base um recurso que chegou à Corte mais alta do país em 2011, em decorrência de um flagrante de maconha, dois anos antes, dentro do centro de detenção provisória de Diadema (SP).

A partir desse episódio, o STF vai analisar se é ou não constitucional o artigo da Lei Antidrogas que criminaliza o porte de entorpecentes. A tendência do tribunal, segundo fontes do meio jurídico, é que o STF descriminalize o porte de drogas para uso pessoal.

Em seu recurso, o defensor público Leandro Castro Gomes – da Defensoria Pública de São Paulo – alegou que o porte de drogas, tipificado no Artigo 28 da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006), não pode ser configurado crime, por não gerar conduta lesiva a terceiros. Além disso, os defensores alegam que a tipificação ofende os princípios constitucionais da intimidade e a liberdade individual.

Vice-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), Cristiano Maronna concorda. Ele também argumenta que o usuário não causa dano a terceiros e, portanto, não pode ser penalizado por carregar drogas para consumo pessoal.

Em 2011, parecer enviado pela Procuradoria-Geral da República ao STF defendeu a manutenção da criminalização.

A expectativa é de que o relator da matéria, ministro Gilmar Mendes, aumente o poder de decisão do juiz diante do flagrante do porte de drogas. Se hoje cabe à polícia decidir se a pessoa será enquadrada como usuária ou traficante, agora essa análise passaria a se feita pelo magistrado.

Os ministros podem discutir ainda se uma eventual mudança na legislação atual tem efeito retroativo. Hoje, quem é flagrado com drogas para uso próprio pode ser penalizado com advertência, prestação de serviços à comunidade ou medida educativa. De toda forma, a condenação tira a condição de réu primário.

Tráfico e consumo

Para o ministro Luís Roberto Barroso, além de decidir se é constitucional criminalizar o consumo de maconha, por exemplo, o julgamento poderá avançar na discussão sobre critérios objetivos para distinguir o que caracteriza tráfico e consumo. De acordo com o ministro, a definição não é “um debate juridicamente fácil nem moralmente barato, mas precisa ser feito”.

“É um debate muito importante e que vai ter uma influência na definição da política de drogas no país. No Brasil, acho que a questão da droga tem que levar em conta, em primeiro lugar, o poder que o tráfico exerce sobre as comunidades carentes e o mal que isso representa, em segundo lugar, um altíssimo índice de encarceramento de pessoas não perigosas decorrente dessa criminalização e, em terceiro, a questão do usuário”, argumenta Barroso.

O ministro Marco Aurélio entende que o uso de drogas é uma não é uma questão penal, mas de saúde. O ministro acredita que o Supremo não conseguirá estabelecer critério para a distinção entre usuário e traficante. “É o tipo de situação em que não dá para definirmos, neste julgamento,  quem é usuário e quem é traficante. Até mesmo para evocar quem é usuário ou traficante  e não porta grande quantidade de droga.”, diz.

A lei atual, de 2006, não define, por exemplo, quantidades específicas de porte em cada caso, como em outros países, e deixa para o juiz decidir, com base no flagrante e em “circunstâncias sociais e pessoais”. “Em outras palavras: quem é pobre é traficante, quem é rico é usuário”, critica o diretor para a América Latina da Open Society Foundation, organização não governamental que defende direitos humanos e governança democrática, Pedro Abramovay.

Passo importante

Para especialistas em segurança pública, direitos humanos e drogas, o STF tem a chance de colocar o Brasil no mesmo patamar de outros países da região e dar um passo importante para viabilizar o acesso de dependentes químicos ao tratamento de saúde, além de pôr fim à estigmatização do usuário como criminoso.

“A lei de drogas manteve a posse de drogas como crime, mas não estabeleceu a pena de prisão – o que foi um avanço. O entendimento que se tem é que isso [a proibição] é inconstitucional, diante dos princípios da liberdade, da privacidade, no sentido que uma pessoa não pode ser constrangida pelo Estado, sob pena de sanção, por uma ação que, caso faça mal, só faz mal a ela”, explicou a coordenadora do Grupo de Pesquisas em Política de Drogas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Luciana Boiteux.

Abramovay, diz que em nenhum país onde o porte de drogas foi flexibilizado houve aumento do consumo. “O Brasil está atrasado e se descriminalizar vai se igualar a dezenas de países que já passaram por esse processo. Todos os países que descriminalizaram o consumo, que falaram que ter o porte para o consumo pessoal não é mais crime, não viram o consumo crescer. Então, esse medo que as pessoas têm, de haver aumento, é infundado com os dados da realidade”, destaca.

Ele acredita que a medida pode fazer com que dependentes tenham acesso facilitado à saúde. “Hoje, um médico que trata uma pessoa que usa crack, lida com um criminoso, tem a polícia no meio, o que torna a abordagem mais e mais difícil”, destacou Abramovay, que já foi secretário nacional de Justiça.

Boiteux aposta na regulação – da produção à venda das substâncias – como solução para enfrentar a violência e os homicídios no país relacionados ao combate ao tráfico.

Delegado e doutor em ciência política pela Universidade Federal Fluminense, Orlando Zaccone diz que utilizar drogas não traz "lesão à coletividade".

"Se existe alguma lesão, é só à pessoa", afirma ele, que é porta-voz da Leap Brasil, associação de agentes da polícia e da Justiça contrários à atual política de proibição das drogas.

“Não tem como não ser a favor. Luto pela legalização da produção, do comércio e do consumo de todas as drogas. O fim dessa guerra insana às drogas passa pela regulamentação de todo o processo. A criminalização do uso viola princípios do direito penal. Não se pode punir condutas que não tenham vítima, não se pune a autolesão. A pessoa não pode ser autora e vítima do mesmo crime. O consumo de drogas não tem lesão à coletividade. Se existe alguma lesão, é só à pessoa”, afirma.

O argumento de que os usuários de droga afetam os que estão ao seu redor é, para Zaccone, uma bobagem. “Eles deveriam ser a favor, então, da proibição do consumo do álcool. Você não pode proibir ações porque incomodam subjetivamente alguém. Seria o caso de criminalizar qualquer comportamento que não é aceito por outras pessoas. É algo inconcebível numa sociedade democrática”.

Para ele, a legalização não quer resolver essas questões de ordem pessoal. O que ela quer resolver são os danos causados pela apreensão, o que não tem nada a ver com o consumo. “Quem mata não é a droga, é a guerra às drogas. Quem morre é a criança e o idoso que estão ali no meio do fogo cruzado e que nunca usaram drogas. Além disso, o sistema carcerário precisa ser desafogado. Por que o rivotril é liberado? Por que receitam ritalina para crianças e a maconha é proibida? Isso viola o princípio da isonomia, que é dar tratamento igual para discussões semelhantes. Todas as drogas podem ter efeito terapêutico também e isso não pode ser ignorado”.

Outro lado

Contrário à descriminalização do porte de drogas para consumo próprio, o deputado federal Osmar Terra (PMDB-RS) acredita que a medida é o primeiro passo para a legalização das drogas o que, de acordo com ele, seria ruim para a sociedade.

“Se descriminalizar o uso, acabou, legalizou a droga. Se não for crime usar [a droga], as pessoas vão andar com droga à vontade. Vão levar para o colégio, para a praça, distribuir para os amigos. E como é que pode não ser crime comprar, mas ser crime vender? Como se resolve esse paradoxo? Isso vai acabar legalizando a venda. Os traficantes vão [fingir] ser todos usuários. Isso vai aumentar a circulação da droga. Liberar a droga só agrava o problema, não melhora”, disse Terra que preside a  Subcomissão de Políticas Públicas sobre Drogas da Câmara dos Deputados.

Ele discorda da tese de que o uso de drogas é uma liberdade do indivíduo, que só afeta a ele. “A dependência química é uma doença incurável. A pessoa vai levar aquilo para o resto da vida. Isso pode reduzir sua capacidade laborativa e de cuidar da família. Muitas vezes, [o usuário] sobrecarrega a família, porque a maioria é desempregada e não consegue cuidar da família. Ele sobrecarrega seus pais, irmãos, que têm que cuidar dele, tem que arrumar dinheiro para manter, tem que trabalhar mais. A liberdade de ele usar droga é a escravidão da família”, afirma.

O deputado relaciona ainda o uso de drogas, lícitas e ilícitas, ao aumento da violência no país. “Nossa epidemia da violência é filha da epidemia das drogas. O Brasil é o país em que mais se mata gente no mundo. Mata mais em homicídios, em acidentes de trânsito. Se liberar vai aumentar tudo isso. Qual é a maior causa de violência doméstica? É o álcool, porque é uma droga lícita. Não é crime comprar álcool. A violência doméstica vai aumentar muito em função da circulação das drogas ilícitas”, diz.

A opinião é compartilhada pelo empresário Luiz Fernando Oderich, que fundou a organização não governamental Brasil Sem Grades, que pede mais segurança e defende leis mais duras para combater a violência. Max, filho de Oderich, foi assassinado há 13 anos durante uma tentativa de assalto.

Segundo ele, o usuário não deve ser tratado como criminoso. Entretanto, muitas vezes, ele se envolve em outros crimes por causa do uso de drogas. “Existe uma relação entre um comportamento não social e o consumo de drogas. Alguns, de uma maneira menor, e outros, de uma maneira maior. É uma coisa que não faz bem”, disse o empresário.

O psiquiatra Osvaldo Saide, da Associação Brasileira de Alcoolismo e Drogas (Abrad), diz que o ideal é não tratar o usuário como criminoso, mas encaminhá-lo para tratamento. No entanto, segundo ele, é preciso que a legislação deixe claro o que fazer em casos de pessoas que cometam crimes sob efeito de drogas e em casos de venda de drogas pelos usuários para sustentar seu próprio vício.

Para Saide, seria necessário criar alternativas ao usuário como receber a pena pelo outro crime cometido ou se submeter a tratamento compulsório. “A Justiça pode pressionar a pessoa para o tratamento em uma situação em que ela não tem a noção da gravidade do seu problema, até porque a dependência química leva a uma falta de noção da gravidade do próprio problema. Às vezes, uma pessoa com profissão fica imersa, por exemplo, no crack”, disse.

A presidenta da Associação Brasileira de Estudos de Álcool e outras Drogas (Abead), a psiquiatra Ana Cecília Marques, acredita que a descriminalização do uso precisa ser discutida pela sociedade, mas discorda que isso seja feito por um julgamento do STF.

“É preciso que haja uma lei que defina claramente os casos específicos, como se ele é um usuário eventual, se tem uma dependência. Sou a favor de descriminalizar, mas acho que precisa ter todo esse rigor, que não é algo que existe nas nossas leis de drogas. Elas não são claras, deixam várias lacunas. E no país faltam políticas para as drogas. Sou a favor, mas temo por esse processo de descriminalização”, disse.

Para o presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), Antônio Geraldo da Silva, quem defende a mudança na legislação tem interesses pessoais.

Sou contra qualquer facilitador de acesso a qualquer droga. Sou contrário ao acesso ao cigarro e ao álcool, é preciso deixar claro que isso não diz respeito somente à maconha. Sou médico, como posso facilitar o acesso a substâncias que causam doenças mentais? A descriminalização da maconha vai aumentar e muito o número de pessoas com transtornos mentais. Hoje, o sistema público não consegue ter espaço para atender os alcoólatras que temos. Vamos ter o uso de mais uma droga que muda a atitude das pessoas? A nossa luta é para dificultar o acesso ao álcool e jamais discutir o acesso a outra droga”, explica.

Para Antonio Geraldo, o argumento de que a droga só afeta o usuário é falso. “Isso não é verdade. O Brasil não comporta mais doentes. Temos 2 milhões de dependentes de maconha, libera tudo e vamos ver como vai ficar isso. Você vai entrar em um avião e vê que o comandante tem um maço de maconha no bolso. Como você vai se sentir? Você está em um centro cirúrgico, sua mãe vai entrar para a operação, o médico chega com um maço de maconha no bolso, como fica a sua tranquilidade? Tem gente que tem o absurdo de dizer que a maconha não provoca nada. Quanto estão ganhando para dizer isso?

O professor de psiquiatria da Unifesp, Ronaldo Laranjeira, PhD em psiquiatria pela Universidade de Londres e presidente da Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM), acredita que, do ponto de vista da saúde, não se pode legalizar mais uma droga.

Laranjeira acredita que quem usa entorpecentes vai facilitar o tráfico de drogas de uma maneira geral. Ninguém é a favor da criminalização do usuário. Hoje em dia, o usuário não é criminalizado porque ele não é preso. O debate é em relação ao artigo 28 da Lei Antidrogas [11.343, de 23 de agosto de 2006], que diz que a pessoa não poderia plantar ou produzir a droga. Se esse artigo cair, você não está só legalizando o consumo, como legalizando a produção. Você vai facilitar o mercado de drogas de uma maneira geral”, opina.


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