19/03/2024 - Edição 540

Camaleoa

A jornada de quatro viajantes pelo mundo ou quatro corações poéticos flamejantes

Publicado em 21/02/2014 12:00 - Cristina Livramento

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E me arrastei, como tenho feito toda minha vida, indo atrás das pessoas que me interessam porque os únicos que me interessam são os loucos, os que estão loucos para viver, loucos para falar, que querem tudo ao mesmo tempo, aqueles que nunca bocejam e não falam obviedades, mas queimam, queimam, queimam como fogos de artifício através da noite. Jack Kerouac

 

De todas as (in)certezas dessa vida materialmente medíocre levamos em conta alguns detalhes imprescindíveis para nossa (sobre)vivência. Acordamos cedo para trabalhar e termos uma remuneração que pague não somente nossas contas, mas que também nos confira a devida dignidade econômica e segurança (emocional e física). Passamos a maior parte do tempo lutando contra o cansaço e tentando equalizar força (mental, física) com o bem-estar (físico e espiritual). Algumas pessoas fazem tudo bem diferente.

Em uma noite qualquer, enquanto saía do trabalho e ia para a casa, parada em uma esquina no centro de Campo Grande, vejo na minha direção um rapaz com várias mochilas e um olhar vibrante. Mais malabaristas pela cidade pensei, e ao dar mais um passo para atravessar a rua, ele me chama. Onde fica a praça central, você pode me dizer?

Seu nome é Jaime, um espanhol de Ibiza, de 25 anos. Eu estou com minha amiga que está ali pegando uma comida para nós. Ela é Luciana, argentina de Buenos Aires, 38 anos. Como a praça central (Ary Coelho) é meu caminho, vamos os três conversando. Enquanto observo Jaime e Luciana com suas mochilas e sacolas pesadas, eles me contam que acabaram de chegar da Bolívia. Ela é a mais pura alegria. Estou muito feliz de estar aqui, eu adoro o seu país.

No curto trajeto da esquina qualquer até a praça central, observo o cansaço nítido no rosto dos dois, penso no meu cansaço ao sair do jornal e o desespero por um banho e uma janta, no conforto da minha casa. Jaime e Luciana não têm dinheiro, não têm a mínima ideia de onde vão dormir, muito menos de como será o dia seguinte.

Mas nenhum dos dois se abate por isso. Ambos são movidos pela insatisfação com o estado de coisas e estão dispostos a pagar o preço da incerteza do minuto seguinte. Em um primeiro momento pode parecer coisa de louco, mas como diria os Mutantes, “louco é quem me diz que não é feliz.” Se você vive reclamando de cansaço, de falta de dinheiro, de tempo para os filhos, do patrão, do trabalho e esperando o dia perfeito em que todo o sonho se tornará realidade… bem, eu acho que você me entendeu.

O mochileiro ganhou um lugar na minha imaginação quando conheci o programa Lonely Planet e um de seus apresentadores, o inglês Ian Wright. Nem lembro mais em qual canal isso passava, mas naquela época, eu que ainda não tinha saído com minha própria mochila por aí, experimentava o mundo através da tela de uma tevê, em uma sala de uma casa qualquer em Campo Grande, pelas descrições de Ian.

A reposta à grande questão sobre a vida, o Universo e tudo o mais é 42.

O próprio conceito do programa, que tem guiado desde a década de 70 vários jovens pelo mundo todo, nasceu de uma viagem feita pelo casal de australianos, Tony e Maureen Wheeler. Recém-casados, eles saíram pela Ásia e escreveram um livro a respeito, o guia Lonely Planet.

Não eram só Jaime e Luciana que andavam sem lenço e sem documento, Jánossy Zsolt, um húngaro, 36 anos, ex-policial e DJ, também andava pelas ruas de Budapeste na mesma incerteza de onde dormir e acordar.

Conheci Zsolt no site de relacionamentos OkCupid que, por sinal, tem sido uma experiência bem interessante. Por meio das respostas de um questionário (chato e duvidoso), o site estabelece uma lista de “matches” (equivalentes) a você. A foto do perfil dele me chamou a atenção e começamos a trocar mensagens.

Um dia, ele me disse que não acreditava mais na paz na Europa e que tinha chegado a hora de ter uma vida diferente. A partir disso, Zsolt passou a me fazer perguntas sobre a América do Sul e me falou sobre a ideia de estabelecer uma ponte cultural entre o Uruguai, Brasil e a Europa. Em seguida, ele criou um tumblr para contar sua jornada e estabelecer contato com outras pessoas que compartilhassem desse mesmo sonho – uma vida diferente –, outros desbravadores de novas trilhas.

O que eles têm em comum é a realidade de vida completamente diferente do conceito que lutamos desesperadamente por manter – segurança econômica, endereço fixo e conforto. Jaime, Luciana e Zsolt desconhecem as palavras conformismo e estabilidade. Enquanto nós estamos aprisionados diariamente no conceito de certo e errado, esses três não perdem tempo com o “se”.

Jaime e Luciana, quando os encontrei, dois dias após o primeiro encontro estavam hospedados no Centro de Apoio ao Imigrante, continuavam sem dinheiro, já tinham feito malabares na Afonso Pena com a Tiradentes e as coisas não iam bem. Mas eles tinham planos e não estavam arrasados, como nós ficamos, muitas vezes, por coisas bem insignificantes.

Do outro lado do oceano, Zsolt dormiu em uma estação de rádio, em casas de amigos e, apesar disso ser tão chocante para nossos princípios (e às vezes princípios só atrapalham porque estão encharcados de preconceito), ele traçou uma trajetória para conquistar seu sonho, criou o blog EURUGUAY e tem trabalhado como DJ em diferentes lugares com o único propósito de chegar na terra do Mujica. Terra que ele escolheu para viver.

Olhar para os três é olhar para o próprio casulo que construímos com tanto empenho e tanta disposição para mantê-lo em pé, limpo, intocável e indestrutível. Ficamos tão obcecados com a necessidade da segurança que esquecemos de viver e de como a vida é mutante, instável e incontrolável. Na verdade, a vida é uma maldita sacana (para bom e ruim).

Perdemos o tempo correndo atrás do dinheiro para suprir nossas falsas necessidades do cotidiano e nos escravizamos dela. Enquanto isso, a senhora maldita sacana nos mostra, minuto a minuto, como o dinheiro não nos livra do calote da casa própria (desde Plaenge e Homex), não nos garante a tranquila fase da aposentadoria (veja quantas pessoas foram demitidas perto disso acontecer e se viram obrigadas a virar prestadores de serviço a contra gosto da noite para o dia), quanta gente de carteira assinada tem sido surpreendida pela falência ou a compra da empresa por uma outra em que os funcionários passam a ganhar menos ou até a sofrer pressão para que abandonem o emprego.

Sem falar de toda sorte de azar e tragédia que nenhum de nós está livre, a doença, a morte, a violência. Nenhum dinheiro paga a dor de ter um filho assassinado em um assalto. Nenhum dinheiro paga a notícia de que seu marido tem um câncer terminal. Nenhum dinheiro paga a notícia que sua filha foi estuprada.

Nem no pessoal e nem no contexto mais abrangente. É só olharmos para o que está acontecendo na Europa e em todos os países – como a Grécia – considerados uma economia forte. Em todos os casos, a certeza nunca é absoluta, mas acreditamos nela cegamente, e em quase todos os casos, é possível prever a merda se aproximar do ventilador. (Como nem a merda nem o ventilador andam sozinhos, provavelmente o responsável seja…). Mesmo assim nos agarramos desesperadamente ao casulo como se ele fosse de fato indestrutível.

Frederico Mourão não faz malabares em semáforos, não é homeless e nem estrangeiro. Carioca da Vila Isabel, Fred é formado em Administração pela UERJ e especialista em Marketing na Universidade da Califórnia, mais resumidamente, executivo e mochileiro. Ele morou em seis países, aprendeu cinco idiomas, lavou pratos, morou em apartamentos invadidos, foi assistente de cozinha, garçom e babá. Fred não se intimida pelo desconhecido, mas encara cada jornada com muito planejamento.

“Aos 23 anos construí minha primeira experiência: viajei por toda a Europa, morei na Inglaterra, Espanha, França e Alemanha. Aos 33, após conhecer o Brasil de norte a sul e também alguns países da América do Sul, fui fazer especialização em Marketing na Califórnia, e aos 39, saí pra dar uma volta ao mundo por quase dois anos.”

Fred já vendeu apartamento para viajar, faz economias para conhecer novos lugares e se prepara com muita informação sobre regras, hábitos e custos de cada país. Ele planeja gastos e analisa cada lugar a ser visitado antes de sair de casa. “O essencial é o planejamento.”

O Universo, como já foi dito anteriormente, é um lugar desconcertantemente grande, um fato que, para continuar levando uma vida tranquila, a maioria das pessoas tende a ignorar.

Dessas viagens todas, Fred transformou as vivências em palestras para executivos, ele fala sobre zona de conforto e de como olhar a vida por uma outra perspectiva. Empresário ou não, em zonas de conflitos como temos visto no Brasil e na Ucrânia ou fora delas, talvez um dos segredos para não envelhecermos cheio de recalque, culpa e sonhos acumulados, seja fazer o que ele diz “ser flexível”. “Precisamos desapegar do que não é essencial para viver ou nossa ‘mochila’ começa a ficar pesada e atrapalha nossa ‘viagem’ nessa vida.”

Jaime e Luciana, após nosso último encontro, na pastelaria do japonês na Afonso Pena, foram embora para a Bahia. De carona. Jaime me deu uma pedra de quartzo para dar sorte. Fred Mourão está no seu terceiro livro, De Carona por aí, sobre a experiência de uma viagem de 7 meses por 18 países e 74 cidades por mais de 20.000 km cruzando a Europa, a primeira viagem ao exterior que ele fez, aos 23 anos. Zsolt? Bem, ele continua cumprindo a agenda à risca e segue com apoio de amigos e familiares na realização desse sonho. “Espero que esse projeto encontre seu caminho natural. Não espero o Canaã, mas acredito que esteja em um caminho promissor.”

P.S.: Todas as frases inseridas em destaque no texto, entre aspas, foram retiradas do livro O Guia do Mochileiro das Galáxias, de Douglas Adams.

Links relacionados

Jánossy Zsolt ou Beatinspector, DJ

Fred Mourão

Ian Wright

No cinema

O guia do mochileiro das galáxias

Na estrada

Na Natureza Selvagem

A vida secreta de Walter Mitty, a wink for my daughter Madu

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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