28/03/2024 - Edição 540

Entrevista

A saúde pública precisa mudar o olhar sobre os animais domésticos

Publicado em 10/07/2015 12:00 -

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Angela Caruso é um forte nome nacional no que diz respeito à causa animal. Como diretora do Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal (FNPDA), ela defende que as políticas públicas para o segmento estejam no mesmo patamar que quaisquer outras políticas municipais. Protetora há cerca de 30 anos, ela se reinventou como articuladora política e atualmente é chefe de gabinete do deputado estadual Roberto Trípoli (PV-SP), também nacionalmente conhecido como um parlamentar defensor da causa. Uma parceria que deu certo, trabalho em equipe que culminou, por exemplo na criação do primeiro hospital público de animais, em São Paulo. Angela, que também é presidente da ONG Quintal de São Francisco, esteve em Mato Grosso do Sul na última semana para participar de uma agenda extensa, que incluiu a discussão da instalação de um hospital público veterinário em Três Lagoas, castração gratuita de animais e um debate na Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul. Ela concedeu entrevista à Semana On, na qual falou sobre o resultado dos trabalhos que desempenha e sobre como as políticas públicas para animais podem refletir na saúde preventiva. Confira.

 

A cidade de São Paulo tem uma experiência bem sucedida para o bem-estar animal, que foi a criação do primeiro hospital veterinário gratuito, há três anos, projeto do qual a senhora participou. É possível considerar essa experiência um modelo para o país, no contexto das políticas públicas para o animal?

Falar de políticas públicas para os animais no Brasil é algo muito difícil, o país é gigante e possui muitas realidades. Mas, na cidade de São Paulo, a quinta maior do mundo, esta realidade foi possível devido ao trabalho árduo, ao lobby incansável. O deputado Trípoli, então vereador, pensou nela há mais de 20 anos, quando era ridicularizado por essa ideia. Mas ele acreditava que podia ser feito porque ele viajou o mundo, conheceu muitos lugares onde a atenção para com o animal era uma realidade, estava lá e funcionando. Em 1995, quando ele voltou de uma viagem ao exterior, ele conversou com algumas protetoras de São Paulo e disse “se vocês não começarem a controlar população animal, vocês não vão dar conta”. E como vereador, ele tentou aprovar uma lei para determinar o controle reprodutivo de animal, que foi vetada pelo então prefeito Paulo Maluf. E olha que era só uma campanha de castração, uma vez por ano, de graça, por 30 dias… Então as ações do Trípoli começaram a pautar essa questão e com isso  foi conquistando respeito da sociedade. Eu não sei se podemos dizer que somos modelo, mas certamente somos inspiração. Então a gente discute política pública animal pela inspiração, tentando sensibilizar as pessoas, os políticos. O fato é que sem o debate para as políticas públicas, sem colocar a causa animal, digamos assim, no mesmo nível das demais, não vamos ter progresso nenhum.

O trabalho começou com as protetoras, então?

Sim, porque era preciso juntar gente, reunir as forças. Mas o que o Roberto Trípoli fez para criar o hospital foi na verdade um lobby, não houve legislação alguma. Foram dois anos de muito trabalho em São Paulo, com técnicos, com a Anclivepa (Associação Nacional de Clínicos Veterinários de Pequenos Animais) e outras entidades. Ele conseguiu os laudos que provavam a viabilidade de implantação do hospital para animais domésticos, voltado a pessoas de baixa renda, e sabendo que a Prefeitura de São Paulo iria negar, ele disse que queria usar o dinheiro da verba parlamentar. É algo inédito, é acreditar muito numa causa. A partir daí não tinha justificativa para que o hospital não fosse implantado.

Os administradores públicos não podem mais ignorar a necessidade de tratar os animais domésticos dentro de uma política.

Os resultados são positivos?

Sim, são. Centenas de animais são atendidos diariamente de forma gratuita e isso traz um impacto positivo, porque além de contribuir no controle populacional dos animais de rua, também ajudou no controle das zoonoses, como a leishmaniose, cujos índices reduziram drasticamente na cidade. Existe também um fortalecimento do vínculo emocional entre tutores e animais. São resultados que deixam claro que isso está inserido na saúde preventiva. Os administradores públicos não podem mais ignorar a necessidade de tratar os animais domésticos dentro de uma política.

Você faz parte de uma equipe que dialoga com parlamentares do país inteiro, promovendo uma espécie de consultoria nas criação de legislações e dispositivos que engrossam a luta pela causa animal. O contato com o vereador Beto Araújo (Três Lagoas) também aconteceu assim?

Sim. O Beto Araújo já havia nos procurado há muito tempo, logo no início do mandato dele, para saber como poderia implementar ações para o município dele. Atualmente ele está com um diálogo com a prefeitura de Três Lagoas para a implantação de um hospital veterinário público e um sistema de castração gratuito. Ele também articulou o diálogo com outras experiências bem sucedidas para controle da leishmaniose, como foi o exemplo apresentado pelo doutor André Luís Fonseca. O Beto é um grande parceiro, vigilante, conseguiu coisas boas, como a exoneração do coordenador do CCZ da cidade, que sacrificava sem anestesia até os cães sadios. Ele é a prova de que vontade política e disciplina é o que falta para a implantação de uma política animais séria.

Como você avalia as diferenças entre o trato com o animal nas últimas décadas e hoje?

Naquela época, era tudo muito pragmático. O que dava para fazer era recolher o animal e colocá-lo num abrigo. Mas hoje percebemos que as protetoras tem um papel fundamental na mudança da política pública para com o animal. Se não controlar a reprodução dos animais, a conta nunca vai fechar. Mas, também é preciso articular essa energia e transformá-la em força política, dialogar com vereadores, com a prefeitura, com a academia, mais ou menos nos moldes que ocorre aqui em Campo Grande com o caso da leishmaniose.

No Brasil atualmente existe uma política pública para com os animais na perspectiva de que eles são potenciais geradores de zoonoses, e não pelo bem estar deles. Esse modelo é questionável?

Com certeza. É um modelo que não serve mais, porque não traz resultado satisfatório. Se pararmos para pensar no protocolo do Ministério da Saúde para o controle da leishmaniose, isso fica bem claro. É preciso desconstruir o mito por trás do combate dessa doença para edificar uma nova conduta não só em relação à leishmaniose, mas a outras doenças. Aqui em Mato Grosso do Sul, mesmo, nós temos referenciais acadêmicos excelentes, como o doutor André Luís Fonseca, que provam que existe um outro caminho e com custo bem reduzido. Eles mostram esses resultados de forma técnica e científica. A decisão judicial proibindo a eutanásia dos cães é um bom exemplo de como esses argumentos se sustentam.

É preciso desconstruir o mito por trás da leishmaniose para edificar uma nova conduta, não só em relação à leishmaniose, mas a outras doenças.

Então, esta desconstrução está acontecendo?

Sim, os olhares estão mudando e o animal doméstico está deixando de ser considerado simplesmente uma zoonose. Mas é um processo, é lento. A academia tem um papel importantíssimo nisso, de mudar a cabeça do profissional que vai entrar no mercado. E esses novos veterinários vão saber que estão ali para fazer um outro trabalho, onde o animal está culturalmente inserido no meio urbano e que é preciso equacionar isso sem penalizá-los.

Como a sociedade se beneficia com uma política de bem-estar animal?

Essa política depende de outras variáveis, como a posse responsável. Mas, veja que quando você trata bem um animal, e quando existe um mecanismo que defende esse vínculo, você tem um impacto muito positivo na sociedade. Vamos começar por aí: onde tem animal abandonado, isso significa que a população ali está doente. Por exemplo, você pega um animal e cuida dele desde filhote até o fim da vida dele. Isso dá uns 14, 15 anos. É um animal que não está na rua, que terá a reprodução controlada pelo tutor. Ele vai envelhecer com o tutor. Isso significa que ela está sendo controlada em doenças, porque será vacinado, bem cuidado e terá a reprodução controlada. Não tem como dizer que isso não é prevenção em saúde, é óbvio! O que falta é vontade política para nivelar as necessidades dos municípios e não se desprezar nenhuma.

Os Centros de Controle de Zooneses são financiados com dinheiro do Ministério da Saúde. Essa verba não pode ser aplicada em bem-estar animal. Como convencer as prefeituras, que enfrentam momento de crise com a redução da arrecadação, a utilizarem dinheiro do tesouro municipal neste serviço?

De fato, o que a portaria atual diz é que o dinheiro do Sistema Único de Saúde (SUS) não poderá ser usado no bem-estar animal. Mas algo que tem que ficar bem claro é que não existe proibição de usar o dinheiro da prefeitura. A questão é que é preciso mudar esse a saúde pública precisa mudar o olhar sobre os animais domésticos. Essa queda de arrecadação que você mencionou é uma realidade. Ajusta daqui, ajusta dali e mesmo assim você vê que as coisas vão andar. Devagar, mas vão andar. O que queremos, então, é que a questão do animal também evolua, no mesmo ritmo das outras políticas. Mas evolua. É preciso ter dinheiro para todas as políticas de forma igualitária, especialmente prevenção em saúde. O bem-estar animal está bem aí nessa questão.


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