19/03/2024 - Edição 540

True Colors

Divagação sobre o amor

Publicado em 21/02/2014 12:00 - Guilherme Cavalcante

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Existe uma regra bizarra que nos diz para ocultar o amor público em nome de um suposto respeito aos que se constrangem com aquilo para o qual "não estão preparados". Devemos sufocar nosso afeto no armário, tal qual um dia estivemos. Mas, para resultar em "civilidade", esta equação exclui um importante fator: nossa própria dignidade humana. Este é um texto em primeira pessoa.

Beijar aqui, pode ou não pode? Mãos dadas? Abraços? Quase sempre é proibido, moralmente condenado. "Existem lugares para isso". Há vezes que até mesmo um sorriso trocado ofende a quem não está acostumado com as audaciosas “novas” formas de amor. Pergunto-me, portanto, qual o real espaço a que tenho direito. Até que ponto o conforto dos olhos alheios não significa ceifar minha licença de existir, de exercer-me?

Ultimamente, tenho com bastante frequência voltado meus pensamentos a esta questão. Sob a justificativa de respeitar as mentes limitadas, sobretudo as das pessoas mais velhas, muitas vezes aceitei, por assim dizer, não exercer o que sentia, até nas coisas mais inocentes, como um simples beijo no rosto, uma demonstração de carinho tão frugal. Lembro-me, portanto, das diversas vezes que me senti oprimido a externar meu carinho por algum companheiro, ao simplesmente tocar de leve seu braço. "Ousadia"! "Desrespeito"! "Despautério"! "Sem-vergonhas"!

Existe uma regra bizarra que nos diz para ocultar o amor público em nome de um suposto respeito aos que se constrangem com aquilo para o qual não estão preparados.

Os insultos serviam como alerta. Tive medo. Conformei-me. Mantive-me calado, com amor incógnito e recluso. Eu aceitei isso. Fui covarde. E só depois de tanto apanhar com a verborragia deste conservadorismo tolo, mesmo atendendo a interesses que não eram meus, refleti sobre até que ponto devia me prestar a este papel sujo. Hoje, estou mais consciente e consigo enxergar que não deve haver fronteira entre civilidade, respeito e defender a própria dignidade. Estou em 2014, é fato que há mais tolerância que há trinta anos. Por que, então, ainda se ofendem com o afeto por aquele que amo?

“Por respeito”, dizem. “Respeito a quem?”, indago-lhes de volta.

Esconder o que sinto pela conveniência, “conforto” ou até mesmo pelo bizarro “privilégio” de conviver com aqueles que se constrangem com as facetas do amor é violento. É tão agressivo quando um soco que me arranca dentes e que me faz cuspir sangue. É indigno, imoral, desumano. Mas muitos ainda aceitam esse fardo – muito pelo medo das sanções, claro. Mas muito também pela insegurança e incerteza. É que o sol parece nem sempre brilhar para todos. Triste.

No entanto, tomei uma decisão. Escolhi não retroceder. Não vou me fingir assexuado. Eu beijo, abraço, transo. Amo! Não sou só o amigo. Sou namorado, marido, genro, tio, filho, pai! Sou diferente no exercício, mas igual nos direitos. E mereço o mesmíssimo respeito dispensado aquele outro casal a descer a rua de mãos dadas. Mereço ser notado, cumprimentado, reconhecido. Não, não é meu amigo. Nem meu primo. Somos casados há 10, 15, 20 anos. Somos uma família.

Esconder o que sinto pela conveniência de conviver com aqueles que se constrangem com as facetas do amor é violento. É tão agressivo quando um soco. É indigno, imoral, desumano.

Não entendo, eu juro, onde está esse respeito a idosos e a crianças quando deixo de abraçar meu namorado. Que mundo louco, onde um beijo no rosto – ou até mesmo na boca – é escandaloso! Que progresso e evolução, portanto, estou promovendo a esta pocilga abarrotada de “humanos” quando me envergonho ou tenho medo de exalar amor nas palavras, nas fotos, nos sorrisos, nas declarações? Eu sei que podem falar de mim, mas… E daí? Eu sou mais que as palavras ruins. Isso fará, bem ou mal, que eu “seja”, que eu exista. Que eu esteja vivo, mesmo no incômodo e no enjoo de quem rechaça o afeto em suas diversificadas dimensões.

É meu direito existir, seja pelo que visto, seja por quem eu amo, seja por quem eu sou. Seguirei em público, mesmo com a suposta sordidez de uma ofensa – que sei, é inexistente -, presente apenas nos olhos de quem repulsa o amor. Serei fiel a mim e ao meu público amor até o final da vida. Doa a quem doer, mesmo que em mim.

 

Adeus, Nárnia!

Pura emoção. A indicada ao Oscar Ellen Page honrou a própria dignidade enquanto ser humano. Suas palavras externaram a indignação com a discriminação contra LGBTs, durante um discurso magistral proferido durante uma conferência de direitos humanos em Las Vegas, nos Estados Unidos.

Mas sua fala também colocou fim à angustia de uma vida miserável nos armários da vida: Page assumiu publicamente sua homossexualidade, de forma autêntica, honesta e inspiradora. “Estou cansada de esconder e de mentir. Eu sofri por anos porque estava com medo de assumir. Meu espírito sofreu, minha saúde mental sofreu e meus relacionamentos sofreram. E hoje eu estou aqui, com todos vocês, no lado oposto de toda essa dor”, disse a atriz, visivelmente nervosa e emocionada.

Neste ponto do discurso, que pode ser conferido com legendas em português no vídeo acima, é possível até mimetizar a tensão da atriz. É como se assumir-se lésbica publicamente trouxesse todas as sensações de medo, incertezas e desafios que sentimos ao dar o primeiro passo de nossas vidas. E foi exatamente neste ponto eu lembrei da paz que senti no segundo seguinte ao dizer a minha mãe, há dez anos, com voz igualmente embargada, que eu sou gay.

Recomendo o vídeo, assim como seu compartilhamento. Espero que ele inspire outras pessoas e que lhes traga a mesma paz que Page (e eu, num certo dia do meu passado) experimentou. Que cada um tenha escolha o momento certo, mas a vida do lado de cá é bem menos pesada – é o que sempre digo. Obrigado, Ellen Page!

 

Os sapatos de Aristeu

O curta-metragem “Os Sapatos de Aristeu” (2009 – direção de Luiz René Guerra), que muito sensivelmente conta a história da travesti Aristeu, está oficialmente na Internet, gratuitamente e ao alcance de todas as pessoas que quiserem contemplar uma sensível fábula do universo das travestis.

O curta, que foi vencedor do Grande Prêmio Canal Brasil, dá sequência aos últimos momentos de Aristeu: após sua morte, sua família decide enterrá-la como homem, fazendo com que suas companheiras travestis intervenham pelo respeito à identidade de gênero dela. “Os sapatos de Aristeu” é mais uma excelente forma de romper com a representação da comunidade T como seres exóticos, mas humanos, e de promover a dignidade e respeito que este segmento merece. Super vale o play!

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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