20/04/2024 - Edição 540

Especial

Meritocracia

Publicado em 22/05/2015 12:00 -

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O governador de Mato Grosso do Sul, Reinaldo Azambuja (PSDB) iniciou neste mês a execução de uma das bandeiras de sua campanha: a implantação da meritocracia para servidores do Estado. O projeto-piloto, chamado “Programa de Meritocracia – Gestão por Competências” será primeiramente implantado no Instituto de Meio Ambiente de Mato Grosso do Sul (Imasul), e visa, segundo o governo, ‘valorizar o servidor’ e modernizar a gestão pública’ estadual.

A ação do governador sul-mato-grossense não é um ato isolado. Depois de algum tempo submerso, o debate da meritocracia voltou à superfície em todo o país. No mundo corporativo, executivos flertam novamente com o tema, ansiosos por superar práticas anacrônicas e “mudar a cultura”. No governo, alguns gestores apostam nos poderes da meritocracia para resolver problemas crônicos de gestão, que desvirtuam agendas, bloqueiam iniciativas e atrasam prazos.

A meritocracia é um dos principais sistemas de hierarquização social da sociedade moderna. Pode ser definida como um conjunto de valores que postula que as posições sociais dos indivíduos na sociedade devem ser resultado do mérito de cada um, ou seja, das suas realizações individuais.

Cingapura, por exemplo, estabelece explicitamente a meritocracia como pedra fundamental de sua filosofia de governo. Nessa cidade-Estado de 5,4 milhões de habitantes e renda per capita de mais de 54 mil dólares, “o sistema de meritocracia assegura que os melhores e mais brilhantes, independentemente de raça, religião e origem socioeconômica sejam encorajados a desenvolver totalmente seu potencial”.

No século XIX, os países europeus e os Estados Unidos superaram o sistema de distribuição de cargos e funções públicas aos vencedores das eleições. No Brasil, segundo a antropóloga Lívia Barbosa, pesquisadora da PUC-RJ, se copia sem muita vontade os precursores: a meritocracia tornou-se um critério apenas eventualmente aplicado, em permanente disputa com o fisiologismo e as cotas políticas.

Implantar a meritocracia significa estabelecer metas ambiciosas para os funcionários, cobrar resultados e recompensar a realização. Espera-se, com a mudança, vencer a acomodação, reconhecer aqueles que de fato trabalham e fomentar um esforço coletivo para aumentar o desempenho.

Sem cobranças

Para Lívia Barbosa não há no Brasil uma demanda coletiva pela meritocracia, seja na esfera pública, seja nas empresas privadas. Segundo a antropóloga, uma análise da história brasileira revela que a introdução de critérios relacionados à meritocracia ocorreu em diversos momentos, porém sempre de cima para baixo, sem nunca permear de maneira consistente o tecido social. Assim, passou a conviver com valores e práticas existentes, frequentemente de forma ambígua e paradoxal. “Queremos os resultados materiais da eficiência, da produtividade, da competitividade, mas não queremos seus custos pessoais. Queremos a igualdade, mas aceitamos múltiplas lógicas hierárquicas quando elas nos beneficiam”, afirma a pesquisadora.

Embora genericamente a meritocracia seja um consenso, existem várias divergências a cerca deste princípio no momento da sua aplicação prática. Por exemplo: como deve ser a avaliação do desempenho das pessoas? Como definir habilidades e esforços? Qual a relação entre responsabilidade individual e/ou social e desempenho? Existe ou não igualdade de oportunidade para todos? Qual a origem das diferenças de desempenho, serão elas fruto da loteria, da natureza, ou de variáveis sociais?

“Não existe aqui (no Brasil) uma ideologia meritocrática fortemente estabelecida na sociedade, mas sim sistemas e discursos meritocráticos. Entre nós existe, do ponto de vista do sistema cultural, a ideia de que cobrar resultados e ainda por cima mensurá-los, é uma atitude profundamente autoritária. Avaliar serviço, público então, é muito mais complicado. Existe nas representações coletivas brasileiras uma relação grande entre competição, cobrança de resultados e desempenho como procedimentos e processos autoritários, e não como processos funcionais ou de hierarquizar pessoas no interior de um todo para fins específicos”, argumenta Lívia.

No Brasil, segundo a pesquisadora, as pessoas se veem diminuídas na sua dignidade quando são cobradas e/ou avaliadas. Uma das consequências disto é que a responsabilidade pelos resultados de cada um é sempre neutralizada ou desculpada a partir do contexto em que cada um de atuou. O objetivo é minorar pela justificação de desempenho, qualquer mácula ao sentimento de dignidade pessoal. Consequentemente muito pouca responsabilidade individual é atribuída a cada um, do ponto de vista institucional.

“A sociedade brasileira, culturalmente, rejeita a avaliação. Ela é vista como algo negativo, como uma ruptura de um universo amigável, homogêneo e saudável, no qual a competição, vista como um mecanismo social profundamente negativo, encontra-se ausente”, afirma a pesquisadora.

Pobreza sem culpa

Livia Barbosa diz, ainda, que a falta de um sistema meritocrático no Brasil contribui para que as pessoas não busquem um melhor aproveitamento dos seus talentos. Segundo sua análise, no Brasil o eixo da responsabilidade individual sobre as realizações pessoais é quase inexistente. É centrado nas condições de trabalho ou no mundo a sua volta. “Você tem muito pouca responsabilidade sobre o que você faz. Então as pessoas têm uma margem imensa para justificar porque não fazem o que deveriam fazer. Ou seja, aparecem sempre espaços para justificar porque não foi feito o que deveria”, afirma.

A pesquisadora argumenta que há no Brasil uma ideia de que a pobreza não tem relação alguma com o esforço pessoal, é apenas resultado das desigualdades. “A pobreza no Brasil não tem culpa. O pobre nos EUA se sente envergonhado por ser pobre, porque parte do seu fracasso é visto como responsabilidade dele. No Brasil é da sociedade, você não tem nenhuma responsabilidade por sair daquela posição. O estado tem que chegar até você e dar condições para você se mexer. E se finalmente você tem todas estas condições e ainda assim não se mexe, bem é o seguinte: este é o seu estilo. Este é um argumento que ouvi inúmeras vezes na administração pública: este é o meu ritmo, este é o meu jeito, para que eu vou correr? Quem quer fazer geralmente faz, independentemente de qualquer situação. Na universidade não há premiação para o bom professor em nenhum aspecto, mas aqueles que fazem pesquisa, orientam alunos, fazem porque querem fazer, não porque a universidade lhes gratifica em nada disto”, sustenta.

Lívia completa sua análise afirmando que nada no Brasil pode implicar em cobrança e em hierarquia, porque estes são fatores associados com autoritarismo, por isto é muito difícil administrar do ponto de vista público.

Perdendo produtividade

Economista e ex-presidente do Banco Central, Gustavo Franco concorda. “Parece haver algo de muito suspeito no reino das políticas públicas quando o talento, o das empresas e também o das pessoas, deixa de ser reconhecido e recompensado”, afirma.

Para o economista, está surgindo uma nova cultura no Brasil que utiliza os dogmas da inclusão e da igualdade em detrimento de qualquer distinção pelo mérito; premiações e bonificações têm sido crescentemente tratadas como formas neoliberais de discriminação.

“Tudo se passa como se a velha cultura do privilégio tivesse absorvido o politicamente correto, com temperos de populismo, e criado uma neoideologia cujo princípio fundador seria o seguinte: como todos os homens e mulheres são iguais, qualquer diferença de desempenho escolar ou profissional configura a presença de desigualdade prévia ao exame que caberia ao Estado corrigir ou compensar”, sustenta Franco.

Esta abordagem afirma que no caminho de nossa maior prioridade, o crescimento, há uma pedra, a produtividade, que permanece estagnada enquanto os sindicatos não permitem que seus acordos coletivos incluam cláusulas prevendo remuneração proporcional ao desempenho. “De onde pode vir o incentivo a fazer mais e melhor?”, questiona o ex-presidente do Banco Central.

No terreno das empresas a ideia de meritocracia vai mal, em sua avaliação. O Brasil ocupa a posição 130 de 185 países em termos de “ambiente de negócios”, segundo o Banco Mundial, e a posição 100 em 177 países em “liberdade econômica” segundo o “Wall Street Journal”. E tem estado assim nos últimos cinco ou dez anos sem nenhuma indicação de mudança.

A aversão ao empreendedor vem de longe. Referindo-se ao Segundo Império, o Visconde de Mauá dizia: “tudo gira, move-se, quieta-se, vive ou morre, no bafejo governamental”. Naquele capitalismo preguiçoso e patrimonialista não havia propriamente empresário, risco e empreendedorismo: as empresas eram emanações do Estado. “Pior: o fracasso apenas poderia ocorrer por descuido governamental. O lucro era a justa consequência da regulação, e o prejuízo pertencia aos assuntos do governo, que devia sempre assumir a responsabilidade por indenizar os prejudicados pela omissão oficial em ajudar”, lembra Franco.

Para ele, a atualidade do diagnóstico de Mauá, ainda que como caricatura, é perturbadora. “Se o mérito não readquirir precedência, para pessoas e empresas, não vamos a lugar algum”, conclui o economista.

O controverso filósofo Olavo de Carvalho vai na mesma linha. Ele afirma que toda ideia de justiça pressupõe não apenas uma distinção de mérito e demérito, mas também as diferenças escalares dentro de um e do outro. “Homenagens, cargos, premiações escolares, hierarquias burocráticas, civis e militares refletem a escala do mérito, o Código Penal e os vários mecanismos de exclusão social a dos deméritos. É inútil falar em meritocracia, pois todas as hierarquias sociais são meritocráticas, divergindo apenas no critério de aferição dos méritos. Mesmo essa divergência é mínima. Nenhuma sociedade é tão fortemente apegada a prestígios de família que negue toda possibilidade de merecimento individual autônomo, nem é tão desapegada deles que não reconheça diferença entre ser filho de um herói nacional ou de um assassino estuprador”, afirma.

No contraponto

Do outro lado do palco, os críticos da meritocracia desfilam seus argumentos. Para os seus detratores, trata-se de um discurso alienígena, primo do neoliberalismo e da globalização. Uma vez implantada, fomenta a competição desagregadora entre colegas, promove a quantidade, com prejuízo da qualidade, dá vantagens a poucos, em detrimento da maioria, gera estresse e ainda prejudica o ambiente organizacional. Para esse grupo, a culpa pela baixa produtividade, pela má qualidade dos serviços e pelos prejuízos é sempre externa: a falta de tecnologia, de ferramentas, de investimentos, ou a incompetência dos gestores e do próprio governo.

Pesquisadores italianos afirmam que quanto mais as pessoas sobem na carreira, menos competentes se tornam. Os cientistas criaram um software que simula o funcionamento de uma empresa onde reina a meritocracia – cada vez que um dos 160 empregados se aposenta, é substituído pelo melhor funcionário do departamento inferior. Mas, segundo os italianos, isso acaba tendo um efeito ruim: depois de apenas 50 promoções, a competência total da empresa cai 25%.

Esse efeito acontece porque, de tanto ser promovidas, as pessoas acabam se afastando dos seus verdadeiros talentos e assumindo funções para as quais sua competência tende a ser menor (nada garante que um bom costureiro dê um bom gerente de loja, por exemplo). Solução? Reservar 50% das promoções para os piores empregados da empresa – porque eles, estatisticamente, têm mais chances de evoluir do que os funcionários bons. "Nosso estudo vai criar um problema. Ninguém aceitaria perder uma promoção para um colega menos competente", admite o sociólogo Cesare Garofalo, da Universidade de Catania (800 quilômetros ao sul de Roma)

Os críticos da meritocracia argumentam que ela é uma das maiores crenças irrefletidas que vingaram nas sociedades capitalistas – e que por isso, as pessoas aceitam como algo natural e verdadeiro.

Segundo esta concepção, passamos a acreditar que o sucesso ou o fracasso são consequências diretas do esforço individual, ou da falta dele. Que todas as pessoas bem-sucedidas na vida chegaram lá porque batalharam muito para isso (“mérito”) e que qualquer pessoa, caso trabalhe duro e aceite as dificuldades da vida, também pode chegar lá. Para

Para Jessé Souza, professor titular de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF) – e presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a meritocracia é o “mito” que fundou o capitalismo dos Estados Unidos, o “sonho americano”.

Souza aborda o tema em seu livro “A Ralé Brasileira – quem é e como vive”. Segundo ele, ao focar o sucesso ou o fracasso no indivíduo, a sociedade brasileira comete a injustiça de ocultar as origens de classe que determinam as oportunidades de cada um na sociedade.

“O conceito de classe social é sempre percebido superficialmente no debate público. Hoje, a incompreensão do processo de formação das classes sociais está desfocado pela atenção à meritocracia percebida como talento individual. Esse princípio legitima todo o tipo de privilégio injusto das sociedades modernas, mas é travestido como justo apenas porque é percebido como fruto do desempenho individual extraordinário”, afirma o pesquisador.

Para ele, o problema é que, ao se olhar apenas o mérito individual, não se enxerga que ele depende de condições familiares e portanto sociais privilegiadas. “As classes sociais privilegiadas são construídas pela reprodução dos privilégios familiares. A base do privilégio individual moderno é injusta porque é transmitida pelo “sangue”, por assim dizer, como na idade média ou em qualquer sociedade pré-moderna. Afinal não existe culpa individual por se ter nascido na família errada, nem muito menos mérito em se ter nascido na família certa”.

Ou seja, nesta perspectiva, os filhos da classe-média têm maior taxa de sucesso não porque seus pais transmitem algum tipo de herança financeira, um bem material ou uma empresa; mais do que isso: eles têm sucesso porque os pais transmitem valores imateriais e exemplos de conduta social que são valorizados pela sociedade. Por exemplo, como falar em público, como se comportar num clube social, como se vestir bem, evitar sexualidade precoce, ter algum grau de cultura. Esses valores são difíceis de serem percebidos pela sociedade como determinantes para o indivíduo, porque além de serem imateriais, são transmitidos dentro de casa, com exemplos e o convívio diário. Isso é mais importante do que a herança material, e é o que determina o sucesso ou o fracasso, em grande medida, das pessoas em suas vidas. Nesse caso, a renda econômica que advém do  sucesso é a consequência, não a causa da desigualdade.

Ao focar o indivíduo e “esquecer” que a origem social determina o sucesso ou o fracasso, a sociedade ainda pode se auto-eximir de culpa pelo abandono de uma parcela enorme da população brasileira, que não possui essas ferramentas culturais adequadas para o sucesso. Afinal, se o mérito é individual, então os fracassados são os culpados pelo seu próprio fracasso, e não há nada que os governos poderiam ou deveriam fazer para corrigir isso. A pessoa escolheu o caminho errado, seja por preguiça, incompetência ou falha de caráter, e ajudá-la seria incentivar o comodismo.

Jessé Souza argumenta que não existe nada de ruim na apologia do esforço pessoal. Ao contrário, o estímulo à competição sadia é um elemento fundamental de qualquer esforço coletivo bem sucedido. Mas, pondera: “É justo se conceder mais benesses a alguém mais esforçado e dedicado que compete em igualdade de condições com seus rivais. O que é injusto é se imaginar que exista alguma igualdade de pontos de partida entre pessoas de classes muito distintas e, portanto, com privilégios muito distintos desde o nascimento em todos os aspectos da vida, e ainda atribuir a mera reprodução de privilégios socialmente construídos desde o berço, a um suposto talento individual inato. É isso que a ideologia da meritocracia e seus defensores fazem o tempo todo sem se envergonhar nem enrubescer o rosto”.

O historiador Francês Pierre Rosanvallon vai na mesma linha. Para ele, o modelo da boa sociedade não é a meritocracia. Em seu livro La société des égaux” (Seuil), ("A Sociedade dos Iguais"), ele sustenta que o bom modelo é o da sociedade dos iguais entendida no sentido de uma sociedade de relação entre os indivíduos, uma relação fundada sobre a igualdade. Rosanvallon  critica a impressão de que a noção de igualdade de possibilidades pode ser uma visão de esquerda. “Todo o combate político se joga entre a definição mínima e a definição radical da ideia de igualdade de possibilidades. Eu digo que é preciso desconfiar dessa ideia de igualdade de possibilidades porque se vamos até suas últimas consequências terminamos por justificar as desigualdades e também justificar a falta de reação contra as desigualdades na medida em que estas foram legitimadas”, propõe.

O sociólogo britânico Michael Young foi o primeiro a falar nos anos 60 da meritocracia. Ele definia como um pesadelo todo país que fosse governado por esta ideia. “E é um pesadelo porque, neste caso, ninguém teria direito a protestar contra as diferenças. Se todas as diferenças estão fundadas sobre o mérito, aquele tem uma condição inferior a tem por culpa própria. Trata-se então de uma sociedade onde a crítica social não teria mais lugar”, conclui Rosanvallon.


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