20/04/2024 - Edição 540

Entrevista

Agronegócio e pré-sal estão afundando o Brasil

Publicado em 29/04/2015 12:00 -

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Tudo indica que, mesmo com pré-sal, o Brasil terá outra década perdida e um agravamento da pobreza e das condições sociais. A previsão pouco otimista é de José Eustáquio Alves, doutor em Demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE. Nesta entrevista, ele critica o discurso que associa as reservas de pré-sal encontradas no país com a ideia de “passaporte do futuro” e critica o que classifica como uma falta de um projeto viável e esperançoso para o país.

 

O pré-sal poderia garantir o desenvolvimento do Brasil? Em que contexto esse discurso foi elaborado?

As origens deste discurso são antigas. O uso dos combustíveis fósseis como motor do desenvolvimento vem ocorrendo de maneira sistemática desde 1776, quando entrou em operação a primeira máquina a vapor aperfeiçoada por James Watt. Foram os combustíveis fósseis que possibilitaram o crescimento da renda e do consumo. Em todo o mundo, o progresso humano é tributário da energia fóssil. O Brasil não é diferente. É neste contexto de mais de meio século de esperança no óleo redentor que surge o pré-sal. As jazidas pré-salinas foram apresentadas como o resgate do sonho da independência energética e como um “bilhete premiado” que iria tirar os pobres brasileiros das míseras condições de vida, distribuindo saúde e educação para todos. O Brasil seria a Arábia Saudita tropical vivendo à custa das riquezas abissais. Quem não sonha em ganhar milhões na loteria ou receber uma grande herança da “Mãe” natureza?

A perspectiva de desenvolvimento a partir do pré-sal é um mito?

A descoberta de ouro e prata nas colônias espanholas da América estimulou os aventureiros portugueses e europeus a procurar riquezas minerais no Brasil, pois o mito do Eldorado se alimenta do sonho da riqueza fácil. Mas, desde a chegada de Pedro Álvares Cabral, gastaram-se dois séculos até que os bandeirantes descobrissem ouro em Vila Rica e diamantes em Diamantina, ambas cidades das Minas Gerais. A carta de Pero Vaz de Caminha falava da facilidade da riqueza agrícola: “em se plantando tudo dá”. Estes dois mitos fizeram do Brasil a pátria da “roça e da mina”. Já houve vários ciclos de exportação de produtos do campo e de minérios. Hoje em dia, a roça é o agronegócio e a mina é o pré-sal.

Por que o senhor se refere ao pré-sal como a “mistificação que está afundando o Brasil”? 

A “roça e a mina” estão afundando o Brasil porque estão promovendo uma “especialização regressiva” na estrutura econômica do país. Isto é, o Brasil passa por um processo de desindustrialização precoce e uma reprimarização das atividades produtivas. Este grave retrocesso no desenvolvimento industrial não entrou no centro das preocupações nacionais enquanto houve o boom das commodities. Durante os anos de 2004 a 2010 o Brasil conseguiu acumular reservas internacionais, reduzir a dependência do Fundo Monetário Internacional (e das finanças internacionais), manter a inflação dentro dos limites da meta, reduzir o desemprego e promover políticas públicas pró-pobre. A despeito da imobilidade urbana e do “carmagedon”, a ilusão do conforto, do bem-estar e do consumo da “nova classe média” garantiu a governabilidade para o presidencialismo de coalizão e deu a impressão de que o PT tinha um projeto de nação. Mas na realidade existia apenas um projeto de poder” e tudo indica que, mesmo com pré-sal, teremos uma outra década perdida e um agravamento da pobreza e das condições sociais.

Não há recursos advindos do pré-sal que deem conta de tanto desperdício, corrupção e ineficiência.

O senhor afirma que a ideia do pré-sal como “bilhete premiado” é equivocada.

Bertolt Brecht dizia: "Infeliz a nação que precisa de heróis". Parafraseando Brecht, podemos dizer: “Infeliz a nação que precisa de um ‘bilhete premiado’”. A ideia do “passaporte para o futuro” foi pouco questionada porque abriu-se a possibilidade de muita gente ganhar dinheiro com o pré-sal. O governo montou a estratégia de criar “campeões nacionais” e promover o “conteúdo nacional”. Isto abriria a possibilidade de fortalecer muitas empresas – especialmente as empreiteiras – dinamizando toda a cadeia produtiva ligada aos combustíveis fósseis.

Por exemplo, as contratações de sondas de perfuração e equipamentos para as plataformas reativaria a indústria naval, que demandaria produtos da indústria siderúrgica, que demandaria máquinas e equipamentos, que abriria espaço para a engenharia e os avanços tecnológicos da pesquisa científica. Tudo isto estava gerando emprego, impostos, renda para os municípios e novas oportunidades de negócios em diversas áreas do território nacional. Todas as fichas do desenvolvimento brasileiro estavam colocadas na ampliação da produção e refino de petróleo. Havia refinarias em construção no Rio de Janeiro (Comperj) e Pernambuco (Abreu e Lima) e outras duas previstas para o Ceará e o Maranhão. Portanto, os recursos do pré-sal eram vistos como a redenção do Brasil e o fio condutor do desenvolvimento nacional. As esperanças do “Brasil do Futuro” foram depositadas nas camadas profundas do pré-sal e muita gente acreditou neste conto de fadas.

Como avalia o discurso do ex-presidente Lula em relação ao uso dos recursos do pré-sal para a educação?

Avalio como um erro duplo. Os recursos da educação deveriam ser garantidos independentemente do pré-sal. Mas este discurso de vincular royalties à educação visa muito mais a legitimar a produção abissal de petróleo do que solucionar os problemas da política educacional do governo (PEG). Por exemplo, o senador Cristovam Buarque, perguntado pelo jornal Zero Hora (01-03-2015) se achava arriscado vincular a educação brasileira ao pré-sal, disse: “Não é arriscado, é absurdo. Veja bem, é certo reservar o pré-sal para a educação, mas é absurdo vincular a educação ao pré-sal. Primeiro, porque ninguém sabe se vem esse dinheiro. Segundo, ninguém sabe quanto é. Terceiro, se vier, vai demorar muito. Com o preço atual do petróleo, o pré-sal não tem possibilidade de ser explorado. Não compensa. E, com a crise atual da Petrobras, não vejo como vai se explorar o pré-sal”.

Em 2014, a despeito do aumento da produção do pré-sal, foram repassados apenas R$ 33,7 milhões para saúde e educação, sendo que o governo havia orçado R$ 12 bilhões. É estranho que o governo de uma mulher na Presidência tenha lançado o refrão: “Pátria educadora”. No mínimo, por questões de gênero, deveria ser “Mátria educadora” ou “Frátria educadora”. Mas a educação brasileira está longe de atingir níveis de qualidade já atingidos por países tipo Chile, Uruguai, etc. Relatório da UNESCO (08-04-215) mostra que o Brasil cumpriu apenas duas das seis metas mundiais para a educação. Infelizmente, o governo tem prometido muitos recursos para o futuro da educação advindos do pré-sal, mas no presente tem cortado verbas do ministério no dia a dia.

Na busca da independência energética do pré-sal, o Brasil está aumentando a dependência financeira em relação à China.

Quais são as diferenças entre os conceitos de jazida e reserva de petróleo e entre reserva provada e reserva estimada? Essas distinções não foram sinalizadas adequadamente?

De maneira simplificada pode-se dizer que a jazida é toda a quantidade de combustíveis fósseis existentes na camada de pré-sal, enquanto a reserva é o recurso disponível para exploração e que pode ser produzido economicamente, em função de custos, demanda e preços do momento. Uma reserva não possui um valor econômico em si, mas só adquire valor após a necessária avaliação. Uma reserva estimada só passa a ser provada depois que a decisão de investir é tomada pela comprovação da exequibilidade técnico-econômica para o aproveitamento, como medida de rentabilidade ou de remuneração do capital investido. No Brasil, não há dúvidas de que as decisões de investir no pré-sal tiveram um componente político maior do que o desejado em relação à avaliação técnica.

Economicamente, as reservas de pré-sal são viáveis?

Depende de vários fatores. Em primeiro lugar, depende do preço internacional do petróleo. Fred Pearce mostra que o preço de equilíbrio (break-even) do barril do petróleo para o retorno dos investimentos no pré-sal está em torno de US$ 120,00. Também depende do custo envolvido na exploração e no refino. A Petrobras estimou que o Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro deve gerar um prejuízo mínimo de US$ 14,3 bilhões (R$ 44,8 bilhões) aos cofres da companhia. A Petrobras considera que os recursos já investidos não teriam mais como ser recuperados. Isto vale para vários outros projetos megalomaníacos superdimensionados. Não há recursos advindos do pré-sal que deem conta de tanto desperdício, corrupção e ineficiência.

É possível estimar em quanto tempo o país poderia se beneficiar dos recursos do pré-sal?

Creio que, no momento, não dá para estimar. Para que o pré-sal dê lucro é preciso uma grande reestruturação da Petrobras e um aumento significativo no preço do petróleo no mercado internacional.

Como fica o sonho de extração do pré-sal na atual conjuntura econômica da Petrobras, que já contraiu uma dívida que é duas vezes maior que o valor da empresa?

Para manter a extração do petróleo das profundezas abissais a Petrobras está programando a venda de ativos e propriedades da empresa no valor de US$ 13,7 bilhões (ou quase R$ 40 bilhões de reais). Segundo a companhia, o valor foi aprovado pela diretoria executiva no final de fevereiro. A Petrobras está usando o termo desinvestimento para tal situação. Mas, evidentemente, trata-se de um processo de privatização, que tornou-se necessária diante do endividamento líquido da companhia. Além disso, a Petrobras tem buscado financiamento na China, país que tem interesse em garantir fontes de abastecimento de longo prazo de combustíveis fósseis. Na busca da independência energética do pré-sal, o Brasil está aumentando a dependência financeira em relação à China.

O futuro da matriz energética brasileira não está nas hidrelétricas projetadas para a Amazônia, mas na difusão descentralizada das energias renováveis.

Que modelo energético e de desenvolvimento o Brasil deveria adotar, tendo em vista o atual cenário de mudanças climáticas?

O Brasil está passando por uma crise energética. Além dos problemas da Petrobras, o setor elétrico também está em crise com aumento do preço da energia e com baixa do volume dos reservatórios, que estão, em média, com capacidade abaixo de 30%, nível inferior ao do mesmo período de 2001, ano do apagão. Para evitar os riscos de desabastecimento, inevitavelmente o país terá de continuar expandindo o uso de usinas térmicas, que geram energia mais cara e mais poluente. O Brasil tem sido vítima das mudanças do clima que afetam as regiões Sudeste e Nordeste com aumento da seca. Mas ao mesmo tempo o país tem aumentado as emissões de gases de efeito estufa  devido ao aumento do desmatamento e à queima de combustíveis fósseis usados nas termelétricas.

Evidentemente, teria sido muito mais prudente e saudável se o Brasil tivesse investido parte da fortuna gasta da cadeia do petróleo em energias renováveis, como energia solar, eólica, geotérmica, das ondas, etc. O futuro da matriz energética brasileira não está nas hidrelétricas projetadas para a Amazônia (verdadeiros crimes ecológicos), mas na difusão descentralizada das energias renováveis, possibilitando que os cidadãos e as comunidades consumam e produzam suas próprias energias vindas do sol e do vento. Precisamos espalhar os presumidores (produtores e consumidores) empoderando a população brasileira, democratizando a matriz energética e evitando as falcatruas dos grandes projetos megalomaníacos.

O Brasil, que tem o maior superávit ambiental do mundo, tem desperdiçado o seu potencial de produção de energia limpa.

A Era do Petróleo está chegando ao fim?

Os combustíveis fósseis foram responsáveis pelo sucesso do desenvolvimento global nos últimos 240 anos. Mas também foram responsáveis pelo aumento da poluição e do aquecimento global. A continuidade da queima indiscriminada de energia fóssil pode comprometer o futuro da vida no Planeta. No século XXI, é preciso superar a Era do Petróleo e investir em energias renováveis. O Brasil deu um passo atrás no processo de descarbonização de sua matriz energética. Tudo indica que a Política Nacional de Mudança do Clima, de 2009, não alcançará os resultados esperados. Isto enfraquecerá a posição brasileira na COP-21 que ocorrerá em dezembro de 2015, em Paris.

Como o Brasil se posiciona neste cenário?

Infelizmente, o Brasil, que tem o maior superávit ambiental do mundo (pegada ecológica per capita bem menor do que a biocapacidade per capita), tem desperdiçado o seu potencial de produção de energia limpa. A mistificação do pré-sal está afundando o Brasil, tanto em termos econômicos quanto em termos climáticos. O Brasil vive uma situação de estagflação econômica e de “estagflação climática”. Depois do fracasso do “keynesianismo vulgar” (expressão do ministro Mangabeira Unger para se referir às políticas econômicas do primeiro governo Dilma Rousseff), parece que o governo federal está perdido e, além do ajuste fiscal, não tem um projeto viável e esperançoso para oferecer ao país.


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