19/04/2024 - Edição 540

Entrevista

Quem não vai bem são os clientes

Publicado em 19/07/2022 12:00 -

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Se antes as empresas de planos de saúde estavam obrigadas a oferecer, no mínimo, aquilo que estava descrito no rol de procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), agora elas se tornam livres para ofertar, no máximo, aquilo que é descrito. Na prática, essa mudança de um rol mínimo para máximo é como o sanitarista José Sestelo avalia a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que desobriga as empresas operadoras de saúde a cobrirem procedimentos e tratamentos que estejam fora da lista estabelecida pela ANS, chamada de rol taxativo. Com a decisão do STJ, caiu por terra o entendimento anterior de que o rol da ANS era exemplificativo, o que abria a possibilidade de o usuário, a pedido médico, incluir novas terapias, exames e medicamentos não previstos nesta lista. Caso a operadora negasse algum procedimento, por exemplo, o beneficiário tentava obter essa cobertura pela via judicial.

Segundo Sestelo, a nova interpretação torna o caminho muito mais difícil para os usuários. Em entrevista à Radis, ele afirmou que a decisão é um indício da força do lobby empresarial na sociedade e no meio jurídico. “Ela é favorável às empresas. Elas passam a ter o entendimento de que, liminarmente, essas pessoas [beneficiários] não têm direito [a outras coberturas]. Podem recorrer, mas a tendência é que não consigam um resultado judicial favorável”, afirmou o pesquisador, que integra o Grupo de Pesquisa e Documentação sobre o Empresariamento da Saúde da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e representa a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) na Comissão de Saúde Suplementar do Conselho Nacional de Saúde (CISS/CNS). Para ele, é enganoso pensar que a medida vai diminuir a judicialização. “Pelo contrário, vai aumentar. A judicialização é um indício muito forte de mau funcionamento do nosso sistema de saúde”, observou.

 

Como você avalia a decisão do STJ sobre o rol taxativo?

Esse debate não é uma novidade, mas um capítulo novo dentro de um quadro que já existia que é a judicialização de questões de saúde. Entendo que a judicialização é um indício muito forte de mau funcionamento do nosso sistema de saúde. O ideal seria que esse tipo de questão não fosse parar nos tribunais, que a gente tivesse um sistema de saúde com um nível de organização em que a controvérsia sobre incorporação de tecnologias e procedimentos obedecesse a uma lógica diferente da lógica judicial. Veja o caso da Colômbia, onde o sistema de saúde é altamente judicializado. O financiamento é público, mas os prestadores e intermediários são empresas privadas. A oferta é dividida em pacotes, de acordo com a capacidade de pagamento dos usuários, com pacotes mais amplos e limitados. Essa segmentação sempre gera exclusões de cobertura. E, no caso da Colômbia, gera recursos judiciais. As pessoas tentam superar as barreiras impostas pelo sistema. No nosso caso, é como se a gente estivesse enveredando nessa direção, o que não é nada bom.

Qual o impacto prático do rol taxativo?

O STJ validou a execução do rol taxativo, com exceções, e não um rol exemplificativo. Essa é uma decisão favorável às empresas de intermediação [de serviços]. Um indício também da força do lobby empresarial na sociedade em geral e no meio jurídico em particular. Nós temos o caso de pessoas com condições crônicas, pessoas autistas, com síndrome de Down, que são liminarmente excluídas. É como se a controvérsia fosse resolvida de antemão. A decisão facilita a vida das empresas que passam a entender que liminarmente essas pessoas não têm direito. Elas podem recorrer, mas a tendência é que não consigam um resultado judicial favorável.

O poder de negociação dos beneficiários fica ainda mais reduzido?

Sim. As empresas passam a ter mais facilidade para negar coberturas e procedimentos. Ao contrário do que está sendo dito, isso não vai diminuir, mas aumentar a judicialização. Porque as pessoas vão continuar recorrendo. Eu entendo que a discussão não está encerrada e que o caminho judicial é o último que nos resta. O ideal seria que a gente pudesse promover uma mudança estrutural no sistema e que isso fosse feito não pela via judicial, mas por meio de mecanismos de regulação que fossem universais, efetivos, democráticos, tanto com relação ao que é ou não incorporado como com relação a preços.

O que a decisão do STJ sinaliza para um país que tem um sistema público de saúde, como o SUS?

Acredito que ela destaque o quanto nós estamos mal. Entendo que, quando o assunto vira matéria para juízes, é porque não conseguimos nos organizar de forma que ele fosse resolvido pela burocracia do Ministério da Saúde. A Conitec [Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde], que seria uma instância de avaliação e incorporação de novas tecnologias, deveria ter o seu trabalho reconhecido de forma universal em todo o sistema de saúde, não apenas no SUS especificamente. Nunca foi assim. E a Conitec ultimamente esteve envolvida no caso da cloroquina. Ela se tornou uma instância de regulação muito suspeita, infelizmente.

Qual a diferença entre o rol mínimo e o máximo?

Havia uma controvérsia se o rol era exemplificativo ou taxativo. Havia uma interpretação mais restritiva por parte das empresas que sempre defenderam que ele fosse taxativo, ou seja, que as pessoas tivessem acesso exclusivamente ao que estava previsto ali e nada mais. Originalmente, a própria ANS denominava esse rol como um rol mínimo, significando que as empresas estavam obrigadas a oferecer, no mínimo, aquilo que está descrito no rol. Obviamente que elas podiam oferecer mais, mas não podiam oferecer menos. Com essa nova interpretação, o rol se tornou um rol máximo. As empresas são obrigadas a oferecer, no máximo, aquilo que está no rol. Quem se sentir prejudicado poderá eventualmente ser contemplado em casos excepcionais a critério da autoridade judicial. Agora, a probabilidade de ser atendido é menor. Até então, havia jurisprudência informal.

O que leva à judicialização em saúde?

As empresas, de rotina, negavam a cobertura principalmente de procedimentos de internação hospitalar, os mais variados, não apenas com relação a condições crônicas ou cirurgias eletivas. Pode-se dizer que esse expediente era juridicamente questionável, mas praticado quase que rotineiramente pelas empresas. Quando havia uma negação, o cliente poderia entrar na Justiça e tinha grande chance de conseguir uma decisão favorável porque havia um entendimento no Judiciário que favorecia o usuário. Com a nova interpretação do STJ, a situação se inverte. Há pouca probabilidade de o usuário recorrer à Justiça e conseguir reverter uma negação de cobertura, se ela não estiver claramente prevista no rol e contemplada nas exceções descritas nos votos dos ministros. As chances são mínimas.

Por que é importante lutar pelo rol exemplificativo?

Há diversos procedimentos que podem ser indicados de forma precoce. A chance de produzirem resultados positivos aumenta quanto mais precocemente forem introduzidos no desenvolvimento de uma criança. O simples fato de adiar o acesso a esses procedimentos que poderiam atenuar ou dar uma condição mais favorável já cria, em si, uma condição pior para a vida futura de crianças e jovens que se tornarão adultos com mais limitações. Em termos percentuais, não é uma quantidade grande de indivíduos. A questão não é essa, mas que tipo de sociedade nós queremos ser. Não é aceitável do ponto de vista ético e sanitário tratar as pessoas com deficiência ou com condições crônicas de saúde como um estorvo, como pessoas que tem que se virar. O Brasil é um país de renda média, industrializado, razoavelmente urbanizado e acho que a gente aos trancos e barrancos conseguiu alguns avanços oferecendo apoio e suporte a pessoas com diversos tipos de deficiência. Quando o setor empresarial, e mesmo algumas categorias profissionais, comemoram um aumento no nível de exclusão, entendo como algo que vai na contramão do que a gente gostaria para o nosso país. Por isso é possível e desejável que essa decisão seja revertida.

Até que ponto a decisão do STJ pode evitar terapias desnecessárias e tratamentos experimentais?

Todo sistema tem os seus limites. O SUS, como sistema público, tem os seus limites, tem a relação de medicamentos que são reconhecidos, oficiais, e seus procedimentos. No mundo todo é assim. Pelo lado positivo, incorpora-se aquilo que é reconhecidamente benéfico. Mas não se trata disso. A questão do rol é que este seria um rol mínimo, ou seja, já está numa posição subalterna e não reflete tudo que é aceitável e que é recomendável. E aí ele se tornou um rol máximo. É o contrário. Os limites existem, a gente precisa reconhecê-los. Existe uma pressão pela incorporação de novas tecnologias e nem sempre essa pressão é correta. As empresas querem vender procedimentos que não são benéficos e para isso tem que ter regulação muito bem organizada, o que deve ser incorporado e em que medida.

O rol então ajuda a organizar o sistema impondo limites na cobertura?

Todo sistema de saúde, por definição, é um espaço de conflito. Existe uma tensão entre interesses particulares. A oferta necessariamente tem limites, inclusive relacionados com a capacidade econômica do país e da população. Em qualquer lugar do mundo é assim. Justamente porque existe essa tensão e pelo fato de que os sistemas de saúde são um território de disputa e ela se dá no plano político, é preciso que as escolhas sejam feitas dessa forma, que a gente tenha diretrizes claras, parâmetros republicanamente definidos, que os limites sejam dados e colocados para todos. E isso deve ser feito de forma democrática e aberta. Como a gente não conseguiu seguir esse caminho, então vai parar no Judiciário. É um fracasso nosso como sistema de saúde, um indício de que nós não conseguimos nos organizar de uma forma boa.

O rol da ANS tem também um efeito protetivo para o usuário e o sistema?

Existe essa dupla face. O rol, quando bem aplicado, protege ou deveria nos proteger mostrando que isso não deve ser prescrito. Mas o contrário também é não privar aquilo que é reconhecidamente efetivo, acessível e necessário. Às vezes é caro, mas é a única alternativa que existe e nós devemos bancar. Houve controvérsia em relação à incorporação das vacinas que são aceitáveis. Outras foram excluídas, por motivos que não sabemos, até por questões políticas. Nas vacinas foi assim, em determinados tipos de medicamentos também. E devemos atuar na regulação de preços. Temos que perguntar por que determinados medicamentos são tão caros. Isso é razoável? Esse é um desafio de regulação do sistema de saúde.

Faltam recursos para evitar a judicialização no campo da saúde?

A relação não é: quanto mais gastar, melhor. O que temos é que muitos agentes econômicos sugam recursos da assistência. Os recursos ficam nas mãos dos agentes intermediários, como as empresas de planos de saúde. Claro que essa é uma lógica que favorece a privatização do sistema. E leva ao aumento dos gastos totais, que é um padrão de gastos ruins. A gente gasta muito e não tem bons resultados. Isso é preocupante. Estamos gastando cada vez mais e não estamos melhorando em termos estruturais. O problema não é existir plano de saúde. Esse tipo de oferta é para uma parcela da população. Não é uma solução estrutural para um país como o Brasil. É estranho ver essas empresas com tanto protagonismo, tanta relevância política e econômica, a ponto de as pessoas acharem normal o aumento nas coberturas. Se a gente tirar toda a fumaça, veremos que as empresas que são superavitárias foram favorecidas. Quem não vai bem são os clientes. A negação de cobertura induz a judicialização. E as empresas se valem disso como mecanismo para redução de despesas, nem que seja para ganhar tempo.

Como você observa a relação mantida entre os planos de saúde e as pessoas?

O plano de saúde é uma forma de organizar administrativamente o fluxo dos recursos para financiamento da assistência. São empresas que vendem planos ou seguros de saúde. A ANS chama de operadoras, mas nós consideramos que esse termo é espúrio. Ele não expressa muito bem a realidade da situação porque no caso dos planos de saúde, não se trata de um mercado de livre escolha e as empresas não são operadoras que disputam esse mercado. As pessoas em geral têm plano de saúde por causa de uma relação de trabalho. Elas são clientes das empresas porque pagam por algo. É uma relação comercial. Elas são também usuários. O termo beneficiário, que é próprio da regulação, é o que a ANS utiliza. É um termo da teoria dos seguros que é de uso corrente. Não é errado, mas eu acho que é mais preciso chamar de cliente. É a pessoa que compra um produto, um serviço em uma empresa. Tenho observado que, na saúde coletiva, há uma repetição desses termos propostos pela ANS, sem que haja uma leitura crítica em muitos casos.

Segundo a ANS, os planos privados devem cerca de R$ 3 bilhões de reais ao SUS. Essa é uma estratégia que elas usam para aumentar o fluxo de caixa e depois judicializar a questão?

As empresas devem para o Fundo Nacional de Saúde que é um fundo único, mas que é revertido para ações assistenciais no SUS. Em última instância, vai mesmo para o SUS. De fato, é uma elisão, ou seja, um mecanismo para que elas escapem da cobrança de algo que é devido. Essa cobrança não é um imposto, mas uma dívida das empresas. Não fazer esse pagamento é uma estratégia para aumentar o fluxo de caixa e ganhar tempo. A lei permite isso. A legislação favorece que as empresas instrumentalizem esse processo. As pessoas físicas, assalariadas, têm imposto cobrado na fonte. A pessoa física declara anualmente o imposto e depois ela tem a restituição do que pagou a mais. No caso das empresas, poderia ser feito um mecanismo semelhante. Entretanto, não é assim. Elas são notificadas de que há dívida, entram com recurso administrativo, depois com recurso judicial e depois eventualmente poderão pagar, ou não. Quer dizer que existe tecnologia e maneira de fazer essa cobrança de uma forma mais efetiva, mas não existe vontade política de colocar isso em prática.


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