20/04/2024 - Edição 540

Artigo da Semana

Marcos Nobre: Bolsonaro, o hacker do sistema político

Publicado em 12/07/2022 12:00 -

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Ao contrário de presidentes do “antigo normal”, Jair Bolsonaro não arbitra conflitos, apenas veta tudo o que é prejudicial à sua base mais direta de apoio. Bolsonaro permite que cada feudo dentro do governo e do Estado estabeleça suas próprias diretrizes, sem coordenação com os demais. Ele só chega quando os conflitos já se acirraram a tal ponto que a situação saiu do controle, quando já não têm mais solução possível e adequada. Foi assim que vetou, por exemplo, a recriação da CPMF e enterrou uma reforma da Previdência que não poupasse militares e policiais. E assim por diante.

Os problemas de coordenação se mostram nesses vários aspectos, portanto: Bolsonaro instalou primeiramente um governo sem quadros aptos, incapaz de elaborar e implementar uma agenda transversal, sem condições de produzir sinergia e eficiência entre ministérios, agências governamentais e estatais. Um governo altamente disfuncional, em suma, que vive do parasitismo do funcionamento corriqueiro do Estado e de suas políticas públicas de médio e longo prazo. Não que dificuldades de coordenação e implantação de agendas transversais não existissem antes de Bolsonaro, pelo contrário. Mas antes dele o sistema político tinha encontrado, aos trancos e barrancos, uma solução mais ou menos funcional para o problema.

O governo de Bolsonaro só ganhou alguma funcionalidade à maneira do “antigo normal” ao selar o acordo com o Centrão, a partir de meados de 2020. Foi um acordo implantado progressivamente ao longo do segundo semestre do ano – passando inteiramente por cima da presidência de Rodrigo Maia (então no DEM-RJ, hoje no PSDB) em seus últimos oito meses de mandato – e sacramentado definitivamente com a eleição de Arthur Lira (PP-AL) para a presidência da Câmara dos Deputados, em fevereiro de 2021. Mas foi um acordo que não suspendeu nem modificou a tática antissistema que caracteriza a atuação de Bolsonaro. A tática foi mantida tanto em relação ao funcionamento do próprio Executivo quanto nas relações entre Executivo e Legislativo, e se acirrou nas relações entre Executivo e Judiciário.

Derrotas de propostas do governo no Congresso servem de combustível à própria tática antissistema de Bolsonaro. Somente do ponto de vista do “antigo normal político” é que são consideradas como “fraqueza” ou “debilidade” do presidente. No sentido do “normal antissistema”, só podem ser consideradas autênticas derrotas congressuais aquelas relativas a propostas destinadas a favorecer a base de apoio de Bolsonaro. E, para além dessa base, tudo o que é considerado essencial para seu esforço de se reeleger. Mas, raciocinando nos novos termos estabelecidos por Bolsonaro, é difícil apontar casos de efetiva derrota nesse novo sentido.

Daí também a necessidade de interpretar de maneira inteiramente nova quaisquer contagens tradicionais de “sucesso legislativo da Presidência”. Sob Bolsonaro, houve uma divisão de poder com benefícios mútuos para o Executivo e o Legislativo, com convergência integral de interesses em torno de um único ponto, a ser examinado em maior detalhe adiante: dar cabo da Operação Lava Jato. Para além disso, o projeto autoritário de Bolsonaro não tem convergência evidente com os interesses do pemedebismo[1] a não ser na tática de não governar e de cuidar apenas de sua própria base, o que tem como principal consequência deixar para “os políticos” todo o resto – ou seja, governar, basicamente, já que ele próprio não pode governar no sentido do “antigo normal” sem perder sua imagem antiestablishment.

Sirva de exemplo disso a reforma da Previdência, aprovada e promulgada pelo Congresso em novembro de 2019. Quando Paulo Guedes entendeu que Bolsonaro não iria mexer um único dedo para aprovar qualquer reforma, estabeleceu imediatamente diálogo direto com Rodrigo Maia. O então presidente da Câmara aceitou conversar, mas exigiu o empenho pessoal do presidente como condição. Recebeu insultos e esculachos em massa nas redes como resposta. Insultos e esculachos que ecoavam e amplificavam a frase lapidar de Bolsonaro de março de 2019: “Eu, no fundo, não gostaria de fazer a reforma da Previdência.”

No mais, a entrega de parte relevante do orçamento não obrigatório ao Congresso foi barganhada em troca do atendimento às três necessidades básicas de Bolsonaro: não acolhimento de nenhum pedido de impeachment; aprovação de itens e programas para permitir que sua candidatura pudesse chegar viva à eleição presidencial de 2022, em condições de alcançar uma vaga no segundo turno; não interferência do Congresso com a criação de comissões parlamentares de inquérito (CPIs), assim como no aparelhamento em curso da Procuradoria-Geral da República, da Polícia Federal e do Judiciário de maneira mais ampla, não apenas para a defesa do mandato de Bolsonaro, mas de sua família. Dissonâncias do acordo, quando surgiram, vieram do STF. A resposta do bolsonarismo foi acuar o Supremo em ataques permanentes nas redes; a resposta de Bolsonaro e do Congresso foi ignorar, procrastinar e descumprir decisões do STF.

A outra ponta dessa mesma história está na criação de figuras como o chamado orçamento secreto e o Sistema de Deliberação Remota (SDR),[2] a partir de 2020, no contexto da coadaptação com o Centrão. As dificuldades objetivas impostas pela pandemia de Covid foram utilizadas como oportunidade, tanto pelo Executivo como pelo Legislativo, para diminuir ou mesmo suspender mecanismos antes aparentemente consolidados de transparência e de accountability. Sobre o funcionamento remoto do Congresso, dispomos do acompanhamento feito pelo Observatório do Legislativo Brasileiro, que também pesquisa o sucesso legislativo do presidente e outros temas que serão abordados na sequência.[3]

A primeira comparação importante a fazer é aquela entre o governo Bolsonaro antes e depois do acordo com o Centrão, o que coincide, grosso modo, com a divisão entre o período pré-pandemia e o período pandêmico.[4] O modelo não leva em conta os efeitos eventualmente positivos do fracasso de iniciativas da Presidência para a tática antissistema. O que faz com que o estudo em questão considere como agravante da situação precária do governo, por exemplo, o fato de Bolsonaro ter deixado o partido pelo qual foi eleito em 2018, o PSL, o que, na interpretação que proponho aqui, tem antes o efeito positivo de mostrar sua posição antiestablishment até mesmo quando se trata de estar filiado a um partido. Feita a ressalva, nota-se que o primeiro ano do governo Bolsonaro registrou na Câmara dos Deputados a pior taxa de sucesso dos últimos cinco mandatos presidenciais; o mais baixo número de medidas provisórias aprovadas em vinte anos; um número incomparavelmente maior de decretos legislativos iniciados na Câmara para derrubar decretos presidenciais relativamente aos dois mandatos de Lula e aos dois governos de Dilma Rousseff; uma taxa de votações nominais muito mais alta do que nas gestões anteriores comparadas, o que indica maior grau de dissenso tanto dentro da casa legislativa como na relação dele com o governo, além de um grau de consenso nessas mesmas votações em que a presidência de Bolsonaro só se compara àquela de crise permanente do segundo mandato de Dilma. Ou seja, no geral, em comparação com o período pré-pandêmico, o período pandêmico examinado mostra um aumento do conflito em plenário, com maior polarização.

Quando se olha para o Centrão, nota-se – conforme o texto O Centrão na Câmara e o Governo Bolsonaro, de Debora Gershon e Júlio Canello –[5] sempre uma taxa de apoio ao governo mais elevada do que o apoio médio geral, além de um ligeiro crescimento dessa taxa a partir de 2020, movimento que ganha em significação, entretanto, quando se considera que foi feito em sentido inverso aos realizados pelos demais partidos. Confirmando a ideia de um aumento no grau de dissenso no período pandêmico, nota-se que, sob a presidência de Arthur Lira, o alinhamento governista dos deputados tomados individualmente se ampliou, assim como o desalinhamento, indicando aumento na polarização. Porém o mais importante é ressaltar que a probabilidade de aprovação de um projeto é tanto maior se o proponente pertencer ao Centrão. Foi dessa maneira que a adesão do bloco ao governo Bolsonaro mostrou sua força.

É certo que essa correlação positiva entre aprovação de projetos e pertencimento ao Centrão está demonstrada nos últimos vinte anos. Mas, de um lado, a taxa em 2020 foi a maior desde 2003. E, de outro, revela o protagonismo do mesmo Centrão em uma Câmara dos Deputados muito mais polarizada em plenário. Não se trata de ver aqui continuidade sob esse aspecto entre os governos Michel Temer e Jair Bolsonaro, nem entre o Bolsonaro do início de seu mandato e aquele que celebrou o acordo com o Centrão a partir da chegada da pandemia ao país. Afirmar esse tipo de continuidade me parece um equívoco, antes de tudo porque a função dos supostos “protagonismo” ou “independência” do Legislativo é completamente diferente em cada caso. É um amálgama a ser desfeito, em suma.

No caso de Temer, o que estava em jogo era a unidade contra a Lava Jato, o que incluiu a Câmara recusar duas vezes, no plenário, pedidos de abertura de impeachment do presidente. Já no caso de Bolsonaro o que está em causa é a deliberada ausência de governo, guiada por sua tática antissistema. Ainda assim, essa coadaptação teve duas versões diferentes: as das presidências da Câmara de Maia e de Lira. Essa diferença pode ser apresentada mediante um breve retrospecto da posição da Câmara em relação ao orçamento e, em particular, no que diz respeito às emendas impositivas.

Com Eduardo Cunha (então no PMDB-RJ, hoje no PTB) na presidência da Câmara foi aprovado, em março de 2015, o chamado orçamento impositivo para emendas parlamentares individuais. Naquele momento, as limitações estavam em que metade dos montantes deveria ser destinada à área da saúde e com teto de 1,2% da receita corrente líquida (cerca de 10 bilhões de reais, em valores de 2015). Esse movimento foi feito como preparação para a declaração de guerra de Cunha contra Dilma Rousseff. No caso das duas extensões da prática do orçamento impositivo no governo Bolsonaro, os sentidos foram diferentes.

A primeira extensão foi feita para alcançar também as emendas das bancadas estaduais, em junho de 2019 (limitado, nesse caso, a 1% da receita corrente líquida). Em seguida, a partir de 2021, a extensão foi feita com base em uma utilização inusitada e original de uma prática já existente: foi mudada a função e ampliado o alcance das chamadas emendas de relator. Adotadas habitualmente apenas para corrigir erros ou omissões de ordem técnica do projeto de lei orçamentária, passaram a ser usadas de maneira a criar o que veio a ser chamado de orçamento secreto.

O sentido da utilização do orçamento impositivo – e de sua versão bolsonarista, o orçamento secreto – permite distinguir os dois momentos do governo Bolsonaro, antes e depois da chegada da pandemia ao país. Rodrigo Maia teve uma atuação muito mais colegiada, abrindo mão de usar todos os poderes que tinham saído da caixa de Pandora aberta por Eduardo Cunha em 2015. Esse padrão de atuação prosseguiu mesmo sob Bolsonaro, mas com um sentido diferente. Maia, que ocupou a presidência da Câmara entre julho de 2016 e fevereiro de 2021, recorreu ao orçamento impositivo basicamente como estratégia de defesa do Legislativo, após constantes ofensivas de Bolsonaro contra o Congresso.

Ocorre que, nos últimos oito meses de sua gestão, Maia foi atropelado pelo acordo de Bolsonaro com o Centrão e ficou completamente no escuro em relação à real distribuição de recursos governamentais para parlamentares. Essa tarefa – como se soube depois – já tinha sido assumida pela dupla Arthur Lira e Ciro Nogueira (PP-PI), este em aliança com o PL, que, em março de 2021 (um mês após a eleição de Lira para a presidência da Câmara), viria a fazer da deputada federal Flávia Arruda (PL-DF) secretária de Governo responsável pela articulação política (ela deixou o cargo neste ano).

Com Lira, o caráter impositivo do orçamento se tornou uma apropriação secreta do orçamento. Os nomes podem ser os mesmos, mas a função da “imposição” em cada um desses momentos é inteiramente diversa. Todos esses resultados são compatíveis com outras decisões de Lira, como aquela tomada no início de março de 2022 de manter o Sistema de Deliberação Remota por tempo indeterminado. É o coroamento de um processo de centralização de poderes que foi descrito com precisão no balanço feito pelo Observatório do Legislativo Brasileiro:

A gestão de Lira tem sido caracterizada por alto grau de centralização decisória, mesmo após a suspensão parcial do SDR, que resultou em maior concentração dos trabalhos legislativos nas figuras dos líderes e do presidente da Mesa, devido à suspensão do trabalho das comissões. Ao longo de sua gestão, Lira tem manejado o regimento interno de forma surpreendente, atropelando ritos, levando à votação projetos cujo teor não foi previamente compartilhado com os deputados, criando comissões especiais para encurtar o tempo de debate, substituindo comissões especiais por grupos de trabalho e amparando a aprovação de emendas de plenário em desacordo com as regras regimentais.[6]

À base de apoio do governo no Legislativo, o não governo de Bolsonaro abriu espaço para que se tornassem impositivas não apenas emendas parlamentares individuais e de bancada, mas também as de relator e de comissão, sem exigência de intermediação da Caixa Econômica Federal, implementadas diretamente por ministérios e empresas estatais, sem necessidade de identificação de autoria. Para o sistema político de maneira mais ampla, o grande interesse foi posto em um presidente antissistema que precisa de proteção contra iniciativas judiciais. É a pessoa certa no momento certo para matar a Lava Jato.

E, no entanto, a questão é saber como Bolsonaro conseguiu esse feito, quando tanto Dilma como Temer tentaram a mesma façanha e não conseguiram. A Operação Lava Jato foi desmontada e o grande artífice dessa desmontagem foi Bolsonaro – com o auxílio decisivo da Vaza Jato, da Procuradoria-Geral da República e do STF, com certeza. Por necessidade de proteção para si mesmo e sua família, sem dúvida. Incluindo a necessidade de proteção contra um possível impeachment, o que o levou a fazer o acordo com parte do Congresso para evitá-lo. Mas também pela avaliação de que Lula seria o candidato ideal para o enfrentamento em 2022. E, sobretudo, porque o desmantelamento da Lava Jato não interessava apenas à parcela do Centrão que aderiu a Bolsonaro, mas ao conjunto do sistema político.

Foi suprimida a origem de parte da instabilidade desse sistema que pode ser atribuída à operação ao longo do período 2014-2019. Restou, evidentemente, toda a instabilidade produzida pelo projeto autoritário de Bolsonaro. Mas é possível dizer que um elemento mobilizador e catalisador importante, instrumentalizado por esse projeto autoritário, já não existe. O que é o mesmo que dizer que o Brasil está “apenas” diante de uma ameaça autoritária como ocorre em outros lugares, sem o componente peculiar que o distinguia.

A concertação que foi o pilar do processo de coadaptação do sistema político e do governo Bolsonaro conseguiu alcançar seu objetivo imediato e, mais importante, manter investigados e réus fora da cadeia e politicamente atuantes. Ao mesmo tempo, conseguiu minar o poder de mobilização da Lava Jato. No âmbito da operação, nenhum político, grande empresário ou operador de partidos foi preso do quarto mês do governo Bolsonaro em diante. E, a partir de março de 2019, o STF pela primeira vez desde 2014 começou a tomar uma série de medidas que puseram em causa procedimentos e decisões da Lava Jato.

Durante muito tempo – até a chamada Vaza Jato, em junho de 2019, talvez – foi ampla a tolerância social com a ausência de curvas visíveis nas decisões judiciais. Tolerância em perfeita consonância com a posição que assumiu o Judiciário de tutelar o país em meio à crise política. E só pôde se colocar nessa posição porque as instituições entraram em colapso, entre elas o próprio Judiciário, inclusive.

Desde a instabilidade do segundo governo Dilma, a aliança Bolsonaro-Moro foi a primeira a dar ao sistema político a tranquilidade que buscava desde 2014. O preço cobrado por Bolsonaro foi o direito inconteste de malhar o sistema político dia sim e outro também. Já Moro começou a delirar que um dia poderia ser presidente.

Sergio Moro sempre insiste no destino trágico da Operação Mãos Limpas, modelo para a Lava Jato. Repete que a operação italiana foi sufocada pelo sistema político com a eleição do primeiro-ministro Silvio Berlusconi, em 1994. Moro disse que aceitou fazer parte do governo a fim de impedir que a Lava Jato tivesse esse destino. Mas, no fundo, pelo tempo que durou sua aliança com Bolsonaro, Moro foi tanto o principal líder como o coveiro da operação, foi um Antonio Di Pietro – o promotor que encabeçou a Mãos Limpas – e Berlusconi em uma única pessoa.

A imagem não pretende de maneira alguma tirar de Bolsonaro o título de Berlusconi brasileiro. O presidente se tornou um Berlusconi muito mais eficiente graças ao apoio de Moro. No fundo, Berlusconi necessitou de dois mandatos como primeiro-ministro (pouco mais de oito meses a partir de 10 de maio de 1994 e, da segunda vez, de junho de 2001 a maio de 2006) para verdadeiramente enterrar a Mãos Limpas. Em seu primeiro mandato, ele aprovou, em julho de 1994, o chamado Decreto Biondi, “que impedia a prisão preventiva para pessoas submetidas a investigações por crimes de corrupção, concussão e outros”.[7] É necessário precisar, entretanto, que o decreto “não trouxe modificações no Código Penal em relação aos crimes contra a administração pública (ou, mais geralmente, para aqueles imputados aos réus da Tangentopoli)”.[8]

E isso é importante porque o combate à Mãos Limpas foi longo. O esforço do sistema político mostrou-se relativamente constante, mas coube a Berlusconi, em seu segundo mandato, completar o serviço, em especial porque, “em abril de 2002, foi praticamente abolido o crime de falsificação contábil; em dezembro de 2005, foram reduzidos de forma considerável os tempos de decurso a partir dos quais a prescrição extingue um crime”.[9]

Berlusconi se elegeu em 1994 com uma plataforma liberal em economia e um discurso anticomunista, invocando divisões típicas do período da Guerra Fria, tal como Bolsonaro em 2018. E se elegeu com um discurso em defesa da Operação Mãos Limpas, que ele desmantelou em seguida, assim como fez Bolsonaro com a Operação Lava Jato. Berlusconi chegou ao poder para proteger a si mesmo da Justiça. Bolsonaro teve que fazer o mesmo quase simultaneamente à sua vitória na eleição, sobretudo para proteger seu primogênito, Flávio. Assim como na Itália de 1994 com Berlusconi, no Brasil de 2018 a eleição de Bolsonaro apresentou-se como um meio de evitar a vitória bastante provável da esquerda.

Outra semelhança foi a crise econômica. Não que a catástrofe brasileira do período 2015-16 (7,2% de retração no biênio) seja remotamente comparável com o que aconteceu na Itália. Ainda assim, é bastante significativa a queda do crescimento do PIB italiano de 3,4% em 1989 (com uma média de 2,7% ao ano na década) para 2% em 1990, 1,5% em 1991, 0,8% em 1992 e -0,9% em 1993, segundo dados do Banco Mundial. Também a relativa desorientação do sistema político aproxima os dois casos. Na Itália, a brusca mudança geopolítica que veio com a derrocada do bloco soviético “desorientou os blocos de poder que anteriormente haviam impedido as investigações de passar dos primeiros estágios”.[10] No Brasil, foi a formação de uma oposição extrainstitucional que usou a Lava Jato como escudo comum para desestabilizar de maneira duradoura o sistema político.

As diferenças importam aqui mais do que as semelhanças. É certo que, nos dois casos, como em outros lugares do mundo que passaram e passam por crises semelhantes, os partidos fizeram de tudo para retomar o controle do sistema político. E, tanto no caso da Mãos Limpas como no da Lava Jato, a luta pela retomada do controle da política pelo sistema político se confundiu com a luta pela sobrevivência de lideranças partidárias históricas. Mas o sistema partidário brasileiro não foi implodido – apenas aumentou sua fragmentação e disfuncionalidade – e a maioria dos grandes caciques foi preservada, o que não aconteceu na Itália. Ao contrário do Brasil dos anos 2020, a Itália do início dos anos 1990 não parecia imediatamente ameaçada pela ascensão da extrema direita. E, sobretudo, Bolsonaro se mostra um Berlusconi da era digital. A eleição de Berlusconi foi o auge da era televisiva da política. A de Bolsonaro marcou a entrada definitiva do Brasil na era da política digital.

Não foi em termos estritamente italianos, portanto, que a Lava Jato foi enterrada. Berlusconi não poderia ter dito em 1994 o que Bolsonaro disse em outubro de 2020: “É um orgulho, é uma satisfação que eu tenho, dizer a essa imprensa maravilhosa nossa que eu não quero acabar com a Lava Jato. Eu acabei com a Lava Jato, porque não tem mais corrupção no governo. Eu sei que isso não é virtude, é obrigação.” A Lava Jato como conjunto de processos judiciais continuará usando o mesmo nome, mas sua marca perdeu inteiramente a força. Foi enterrada e não ressuscitará. O impulso antissistema que carregava foi quase que inteiramente apropriado por Bolsonaro e seu partido digital.

A obrigação de acabar com a Lava Jato mostra como a demissão de Moro não foi apenas um bônus para a negociação com o Centrão iniciada por Bolsonaro no momento em que se convenceu de que a pandemia poderia levá-lo às cordas do impeachment. Para que uma negociação como essa seja bem-sucedida, é fundamental manter a Polícia Federal sob estrito controle. Essa é a peça-chave do plano de sobrevivência de Bolsonaro e do sistema político.

Em 2020, após o afastamento de Moro, Bolsonaro teve de recuar temporariamente do objetivo de se apossar sem nenhum pudor da PF. O primeiro nome que escolheu para o cargo de diretor-geral da instituição, Alexandre Ramagem, foi barrado pelo STF – e Bolsonaro colocou o escolhido na chefia da Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Mesmo assim, Bolsonaro tentou reverter a decisão do ministro Alexandre de Moraes, embora já tivesse ele mesmo anulado a nomeação e escolhido outra pessoa, Rolando Alexandre de Souza, para o posto, em 4 de maio de 2020. O presidente sabia que a tentativa seria inócua. Mas seu objetivo era tão somente deixar claro ao novo diretor-geral que a posição dele na PF era temporária e apenas a estrita obediência poderia garanti-lo no cargo. Souza permaneceu menos de um ano no posto.

A pessoa escolhida a seguir para a diretoria-geral da PF foi Paulo Maiurino, que só tomou posse em 8 de abril de 2021. Ou seja, após a sacramentação do acordo com o Centrão e a eleição de Lira para a presidência da Câmara. E após a nomeação do novo ministro da Justiça, Anderson Torres, policial federal de carreira, empossado dois dias antes. Torres havia sido secretário de Segurança Pública do Distrito Federal e, logo após se tornar ministro, filiou-se ao PSL. No final de fevereiro de 2022, o próprio Maiurino foi demitido – por telefone, sendo substituído por Márcio Nunes de Oliveira. O que mostra um dos mais consistentes padrões do governo Bolsonaro, tanto em relação aos ministérios militares quanto em relação à PF: não manter pessoas nomeadas para esses cargos estratégicos por muito tempo, a fim de evitar que organizem redes dentro e fora do governo.

Mas é um padrão que se estende, por razões adicionais a essas, ao conjunto dos cargos a serem preenchidos. Bolsonaro opera exatamente como cartolas de clubes de futebol: se o time vai mal no campeonato, troca-se o técnico. Dito de outra maneira, Bolsonaro combina diferentes raciocínios de tipo persecutório em um só modo de atuação: protege-se contra a possibilidade de a pessoa utilizar sua posição na comunidade policial e de informação para prejudicá-lo, evita a formação de redes e de núcleos dentro do governo que possam lhe fazer frente, além de se desviar de qualquer responsabilização. Se as coisas vão mal, a culpa é do técnico, e não do cartola.

Conhece-se relativamente pouco sobre a organização digital bolsonarista quando o padrão de comparação é a eleição de Donald Trump e o trumpismo de maneira mais ampla.[11] O que aprendi da leitura do trabalho dos laboratórios e centros de pesquisa, especialmente com a equipe do NetLab/UFRJ nesse caso, é que o bolsonarismo dispõe de uma esfera pública alternativa relevante, controlando uma importante rede de desinformação e propaganda, fazendo uso extensivo de robôs conforme a necessidade e as exigências do momento. Com a ocupação da Presidência da República, a partir de 2019, Bolsonaro investiu ainda mais pesadamente na criação de um ecossistema sustentável, tanto em termos financeiros como de mobilização. Esse movimento foi o que permitiu o encerramento de contas no Twitter e no Facebook e a migração em massa para o Telegram, caracterizado pelo total anonimato do usuário e pelo uso autorizado da automação.

Foi contra a ideia mesma de partido que se criou aos trancos e barrancos essa cultura política digital antissistema, tornada por Bolsonaro anti-institucional a partir do momento em que venceu a eleição presidencial. A selvageria dessas novas formas de fazer política tem a ver não apenas com a falta de modelo institucional, mas também com a selvageria própria do mundo digital em seu nascimento – continuamos à espera da promessa do “contrato social” que irá nos retirar do “estado de natureza” digital. No mundo todo, a sociabilidade digital nasceu junto a três fenômenos de enorme amplitude: a crise econômica iniciada em 2008 e que até agora não encontrou solução ou perspectiva; a rápida expansão das grandes plataformas digitais; e as crises de representação dos sistemas democráticos, identificadas como uma crise do conjunto das instituições políticas. Foi um encontro claramente explosivo para as instituições, tal como haviam funcionado até ali.

O “lavajatismo” é um caso exemplar desse tipo de desenvolvimento. Mas ele não apresentou uma candidatura viável na eleição de 2018. Alvaro Dias, do Podemos, não foi um representante verossímil do lavajatismo e teve desempenho desastroso em suas intervenções, em especial nos debates televisivos.

Pode-se fazer um exercício contrafactual para tentar ter ainda mais claro o quadro em que se desenrolou esse conjunto de processos. Pode-se pensar em caminhos alternativos para a canalização dos eventos. Pode-se pensar no que teria ocorrido caso Sergio Moro ou Luciano Huck tivessem se candidatado à Presidência em 2018. Mas nenhuma dessas coisas aconteceu. Aconteceu Bolsonaro e cabe entender as especificidades desse caso.

A eleição para a Presidência da República de um militar defensor de uma ditadura de 21 anos não ocorreu em todos os lugares em que a extrema direita chegou ao poder no mundo. Também não foram todos os lugares que viram a extrema direita chegar ao poder depois da prisão e interdição do candidato favorito na eleição presidencial. A devastação ambiental como política de governo não ocorreu em todos os lugares em que a extrema direita chegou ao poder. Estes são apenas alguns exemplos da especificidade do processo brasileiro.

Mas essas características por si sós não me parecem constituir a peculiaridade do caso brasileiro. Não são estruturantes, por assim dizer. Se fôssemos fazer uma comparação nesses termos, teríamos de pensar em algo como a tentativa fracassada de golpe militar na Turquia, em 2016.

No caso brasileiro, muito mais estruturante da situação foi, por exemplo, a maneira como se deu a formação e o gerenciamento de coalizões de governo desde o lançamento do Plano Real até Junho de 2013, com seu pemedebismo peculiar. Como peculiar do caso brasileiro é a formação de uma oposição extrainstitucional, em conjunção com a especificidade da Lava Jato. Como peculiar é a transmutação de parte relevante dessa oposição extrainstitucional em um partido digital que instrumentaliza a institucionalidade democrática com o objetivo de aboli-la.

É, portanto, da peculiaridade do partido digital bolsonarista que temos de falar. E, no entanto, até onde sei, sabemos relativamente pouco dessa organização tão decisiva, como disse antes. Temos os depoimentos e documentos da chamada CPMI das Fake News.[12] E temos o chamado inquérito das fake news no STF, dirigido pelo ministro Alexandre de Moraes, do qual alguma medida é tornada pública de tempos em tempos e um ou outro relatório da PF vaza parcialmente. Mas pouco se sabe, fora isso.

No entanto, é possível fazer algumas comparações com o caso dos Estados Unidos. A atuação bolsonarista se assemelha, sob muitos aspectos, à estratégia do Tea Party. Esse movimento de extrema direita se organizou no fim dos anos 2000 em defesa de uma pauta ultraliberal que incluía cortes de impostos e redução do tamanho do Estado, de maneira mais ampla, posicionando-se contra políticas públicas de apoio aos mais pobres e programas públicos de saúde de caráter universal, além de defender o fim da regulação da iniciativa privada, a garantia da liberdade de portar e usar armas de fogo, o desmantelamento de sindicatos ligados ao setor público, políticas migratórias altamente restritivas e valores familiares tradicionais e pró-vida.

Em suas investigações sobre a extrema direita nos Estados Unidos, no livro Strangers in Their Own Land: Anger and Mourning on the American Right (Estrangeiros na própria terra: raiva e luto na direita americana), Arlie Hochschild chegou à conclusão de que “o Tea Party não era tanto um grupo político oficial, mas uma cultura, uma maneira de ver e de sentir um lugar e suas pessoas”. Utilizando um método investigativo denominado “história profunda” (deep story), Hochschild chegou a inúmeras conclusões que me parecem iluminadoras do caso do bolsonarismo. Entre elas, destaco uma que corresponde em muitos aspectos ao que pesquisas qualitativas sobre o bolsonarismo mostram: “Você é um estranho em seu próprio país. Não se reconhece no modo como as outras pessoas veem você. Tem que lutar para se sentir visto e prestigiado. E, para se sentir prestigiado, você precisa se sentir – e sentir que é visto – como alguém que está progredindo. Mas, por razões que ignora e não por alguma falha sua, você está regredindo.”

Esse tipo de investigação de cunho sociológico e antropológico é essencial. Também por deslocar a associação automática entre interesses econômicos e escolhas políticas. Hochschild parte de paradoxos familiares como:

Pequenos produtores rurais votando com a Monsanto? Proprietários da farmácia da esquina votando com a Walmart? A livraria local votando com a Amazon? Se eu fosse proprietária de um pequeno negócio, sem dúvida acolheria de braços abertos impostos mais baixos para empresas, mas será que o faria para fortalecer os monopólios que levariam ao fechamento do meu negócio? Eu não conseguia entender [essa atitude].

No mesmo sentido, a autora apresenta dados de diferentes fontes para mostrar que, em 2010, se uma pessoa vivesse em um distrito (county) com grande exposição à poluição tóxica, maiores eram as chances de ela “acreditar que americanos ‘se preocupam demais’ com o meio ambiente e que os Estados Unidos fazem ‘mais do que o suficiente’ sobre o assunto”. De forma semelhante, essa mesma pessoa teria mais chances de descrever a si mesma como uma republicana convicta.

Dito isso, é evidente que esse tipo de pesquisa necessita encontrar sua contrapartida econômica,[13] assim como sua contrapartida institucional, que é mais diretamente o foco deste texto. Com esse objetivo, pode ser muito útil recorrer à história da relação do Tea Party com a institucionalidade, tal como reconstruída por Theda Skocpol e Vanessa Williamson, em The Tea Party and the Remaking of Republican Conservatism (O Tea Party e a recriação do conservadorismo republicano). As autoras não se cansam de ressaltar alguns elementos estruturantes do nascimento e da história posterior do movimento: o seu caráter de base, de terreno; o repúdio a Barack Obama; o surgimento do canal de tevê Fox News; a incapacidade da mídia tradicional e mainstream de entender o fenômeno e as consequências dessa incompreensão fundamental para os desenvolvimentos subsequentes.

O aspecto que interessa mais diretamente aqui é a relação do Tea Party com o Partido Republicano, no qual se alojou. Nas eleições legislativas intermediárias de 2010, a força do Tea Party fez com que os republicanos retomassem o controle da Câmara dos Deputados. Não por acaso, o ícone daquela eleição intermediária, o ex-congressista Newt Gingrich, agora atuando (também não por acaso) na nova fase da Fox News, reaparece defendendo a ideia de que o Tea Party devia se tornar formalmente um partido, quebrando o bipartidarismo secular do país.

Não foi esse o caminho escolhido pelo movimento. O exemplo das duas candidaturas de Ross Perot à Presidência – como independente, em 1992, e como representante da tentativa de implantar um terceiro partido, em 1996 – foi determinante para essa decisão. Apesar de seu conservadorismo sob alguns aspectos relutante (em comparação com a pauta do Tea Party), apesar do relativo sucesso nas duas vezes em que foi candidato – 18,9% dos votos populares em 1992 (mas nenhum no colégio eleitoral); 8,4% dos votos populares em 1996 (e novamente nenhum no colégio eleitoral) –, a experiência Perot parece ter mostrado ao Tea Party que eram reduzidas as chances efetivas de uma terceira força organizada em termos partidários (ou como candidatura independente).

A decisão foi por influir no dia a dia do Partido Republicano, o que incluiu, por exemplo, apoiar candidaturas ultraconservadoras em geral e tomar comitês locais da legenda. Ao mesmo tempo, integrantes do Tea Party não se identificam como “republicanos”, mostrando-se antes “céticos ou mesmo sarcásticos em relação a republicanos do establishment”, nas palavras de Skocpol e Williamson. Desde 2012, o Partido Republicano foi se tornando cada vez mais radical, até ser tomado majoritariamente por forças de extrema direita, em especial durante e após a campanha vitoriosa de Trump, em 2016.

No Brasil, o multipartidarismo e a altíssima fragmentação partidária não exigem de um movimento nos moldes do Tea Party a necessária tomada de um partido específico para alcançar poder institucional, como no caso do bipartidarismo norte-americano. O pemedebismo que domina o multipartidarismo brasileiro é, na verdade, o ambiente mais propício para a utilização meramente instrumental da institucionalidade. E é isso o que caracteriza de modo mais profundo a relação do bolsonarismo com a institucionalidade: ela é meio e não fim para o tipo de organização digital que o movimento criou. Trata-se, portanto, de um movimento que hackeia o sistema político conforme a necessidade do momento, do objetivo tático mais imediato. Não foi por outra razão que Bolsonaro, no exercício da Presidência, pôde se manter sem partido durante dois anos. Como não foi por outra razão, em sentido contrário, que Trump foi obrigado a hackear o Partido Republicano nos Estados Unidos e nele permanecer.

É preciso ficar claro que o fato de Bolsonaro não ter criado ou tomado um partido grande não o torna menos perigoso, e sim mais. O fato de Trump ter sido obrigado a hackear o Partido Republicano e nele permanecer põe algum freio em seu golpismo. Uma utilização meramente instrumental dos partidos, como faz Bolsonaro, é muito mais efetiva como estratégia contra a institucionalidade democrática. Se conseguir em algum momento fechar o regime no Brasil, Bolsonaro poderá evidentemente institucionalizar sua ditadura por meio de um partido. Mas aí já estaremos falando de uma coisa muito diferente.

Apesar de as reformas eleitorais de 2017 e 2021 tenderem a diminuir a fragmentação partidária com o tempo, esses efeitos ainda vão demorar a chegar até o ponto de impedirem a tática anti-institucional do partido digital bolsonarista. Mesmo que não sejam revertidas por contrarreformas eleitorais futuras, essas são mudanças que não têm ainda peso para alterar radicalmente a situação num futuro próximo. Por muito tempo ainda haverá diversos partidos à disposição para hackeamento por parte do partido digital bolsonarista.

Em 2018, o bolsonarismo hackeou o PSL. Esse hackeamento, especificamente, esteve ligado de maneira importante à tática de Bolsonaro de conseguir apoio no âmbito das novas direitas. Era de fundamental importância “normalizar” sua candidatura. Essa tentativa de desdiabolização implicava convencer que suas referências ideológicas iam além dos círculos autoritários, saudosos da ditadura militar, alcançando setores mais amplos da direita. Conseguir fincar pé nas novas direitas era especialmente significativo. Não apenas por causa dos impulsos antissistema de muitas das iniciativas nesse campo, mas também por representar uma nova direita, justamente.

Bolsonaro se desfiliou do PSL com menos de um ano no exercício do mandato de presidente, em novembro de 2019. Também esse movimento conta pontos em sua tática antissistema: afinal, é um presidente que nem partido tem. Muitas das pessoas que se elegeram em 2018 coladas ao impulso de sua candidatura a presidente estavam já espalhadas por diferentes siglas, inclusive o PSL. A tática aí foi, no geral, a de manter todos esses quadros nos partidos em que se encontravam. O que os unia era o partido digital bolsonarista, e não a legenda onde estavam.

Em novembro de 2021, dois anos depois de sua desfiliação do PSL, Bolsonaro se filiou ao PL. O importante aqui é ressaltar que esse movimento se deu sem qualquer prejuízo para ele em termos de perda de base de apoio, de aprovação ou de intenção de voto. Na verdade, até ganhou alguns pontos positivos na virada de 2021 para 2022. Essa grande operação política foi realizada durante a fase mais aguda da pandemia, quando Bolsonaro celebrou o pacto com o Centrão.

O partido digital bolsonarista conseguiu convencer sua base de que o acordo era necessário para que Bolsonaro se mantivesse no poder, vivo para continuar combatendo o “sistema”. Mesmo que para isso tivesse de se aliar a tudo o que sempre denunciou como sendo o pior no “sistema”. Justamente por não se identificar com nenhum partido, por conseguir caracterizar sua relação com a institucionalidade como de instrumentalização mútua, é que Bolsonaro conseguiu convencer que não tinha mudado, que continuava “o mesmo”. Conseguiu convencer sua base social de que os fins bolsonaristas justificam os meios “sistêmicos”.

O tripé partidário de apoio à reeleição de Bolsonaro ficou composto, então, por PL, PP e Republicanos. Após o final da chamada “janela partidária”, em 1º de abril de 2022, o PL se tornou o maior partido da Câmara, com 78 deputados (antes eram 33) – acima do PT, com 56 deputados –, enquanto o PP passou a ser a terceira maior bancada, com 52 deputados (antes eram 38). A bancada do Republicanos passou a contar com 41 deputados (antes eram 30), tornando-se a sexta maior. O momento escolhido para a filiação de Bolsonaro ao PL foi importante porque dá tempo suficiente para a construção de alianças nacionais e o estabelecimento de palanques estaduais. Ao contrário de 2018, na eleição de 2022 Bolsonaro tem um governo a defender e adversários a bloquear.

Ao construir seu tripé de apoio partidário e ocupar espaços nas articulações estaduais, Bolsonaro foi muito bem-sucedido em bloquear de maneira decisiva a ascensão de quaisquer outras candidaturas competitivas da direita, que ficaram sem terreno para crescer. A construção de seu tripé também foi um contraponto ao aparecimento de um dos possíveis novos pilares do sistema político, o União Brasil, resultado da fusão do PSL e DEM. Essa fusão teve como efeito um impulso de reorganização relevante do sistema, fazendo com que outros partidos buscassem alianças e coordenação em nível nacional. Se esses movimentos se concretizarem, projetarão um quadro de organização do futuro Congresso Nacional em três pilares: PL-PP-Republicanos (além de PTB e PSC), PT-PSB-PV-PCdoB (além de Solidariedade, Psol e Rede) e União Brasil, inclusive mediante fusões com partidos menores ou que não tenham perspectivas de influência sem se reunirem a uma força maior, como o PSDB e o MDB. Existe ainda a possibilidade de um quarto pilar, caso o PSD consiga eleger um número de parlamentares que possa colocá-lo nesse patamar.

Nada dessa movimentação torna o partido digital bolsonarista mais institucionalizado ou menos preocupante. Não apenas pela posição anti-institucional que o caracteriza, mas também por sua relação umbilical com as Forças Armadas e, especialmente, as forças de segurança. Para não mencionar o crescimento do número de pessoas armadas, com estímulo oficial, ao longo do governo Bolsonaro. Com frequência, lideranças de motins policiais são não apenas bolsonaristas, mas têm o apoio de bolsonaristas com mandatos eletivos, como foi o caso do motim no Ceará, em fevereiro de 2020.[14] Não fosse pela chegada da pandemia, no mês seguinte, provavelmente teríamos visto, ainda naquele ano, uma série de motins semelhantes, que teriam servido como ensaio geral do tipo de fechamento do regime com que Bolsonaro ameaça o país de diversas maneiras.

Não tendo acontecido em 2020, aconteceu em 7 de setembro de 2021 o ensaio geral de golpe do bolsonarismo. Não que as forças de segurança tenham comparecido em peso aos atos, armadas e mesmo fardadas, como tanto se temia. Pelo menos não dessa vez. Mas o ensaio geral serve também para isso.

É inegável que os atos reuniram uma quantidade expressiva de pessoas. E isso num momento em que o número de casos, internações e mortes por Covid estava em queda, mas ainda se registrava média diária de 250 mortes. Em um contexto de “tudo é política”, no qual negar os fatos deixou de ser privilégio da extrema direita, foi de grande importância o registro do jornalista Luigi Mazza de que o Sete de Setembro bolsonarista “encheu” as ruas. Mas, ao analisar um levantamento da consultoria de dados Arquimedes sobre perfis e interações nas redes, feito a pedido da Piauí, a avaliação me parece equivocada ao contrapor o fato de as ruas terem ficado cheias a uma atuação nas redes em sentido contrário.[15] Acho essa segunda parte da avaliação equivocada porque não considera o elemento que me parece o mais fundamental: o sentido e o objetivo dos atos.

Foram atos muito bem preparados, que seguiram um roteiro bastante semelhante a convocações bolsonaristas anteriores. Mas não foram atos dirigidos somente ao eleitorado bolsonarista nem aos bolsonaristas em sentido amplo, entre eles simpatizantes, entusiastas e fanáticos. Foram dirigidos diretamente ao núcleo duro do bolsonarismo, aquele grupo de pessoas dispostas justamente a praticar atos de violência e de quebra direta da ordem democrática.

A pesquisa Datafolha divulgada em 17 de setembro de 2021 permitiu interpretar que esses adeptos fiéis (chamado de grupo heavy) seriam 11% da população. Ao mesmo tempo, pesquisas qualitativas feitas pela cientista social Esther Solano indicam uma hiper-radicalização dessa base fanática. Do ponto de vista mais amplo da atuação nas redes, que visa um público mais abrangente do que o núcleo duro bolsonarista, o monitoramento contínuo da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas (Dapp/FGV) registrou, em março de 2022, não só a manutenção da liderança de Bolsonaro, mas, principalmente, a retomada da distância que o separa das demais candidaturas.

É nesse sentido preciso que os atos do Sete de Setembro bolsonarista foram muito bem-sucedidos, sob todos os aspectos. E é também por isso que são de uma gravidade extrema. Mas tudo isso talvez não seja o mais espantoso no que se refere ao partido digital bolsonarista. O mais espantoso talvez seja como sabemos pouco a seu respeito quando se pensa no tamanho do desafio que é enfrentá-lo – apesar de toda a relevância que tem, apesar da evidente ameaça que representa.

O NetLab/UFRJ realizou um precioso estudo sobre esse evento, uma pesquisa que o delimitou no quadro mais amplo de uma tática de mobilização de médio prazo em que a convocação para o Sete de Setembro bolsonarista foi precedida e se superpôs à batalha pelo chamado “voto impresso auditável”, uma pauta de mobilização reforçando a outra. Uma vez que o projeto do “voto impresso” foi derrotado em votação na Câmara, em 10 de agosto de 2021, a movimentação nas redes bolsonaristas concentrou todos os seus recursos na convocação para as manifestações de Sete de Setembro. No caso do Twitter, por exemplo, o estudo mostrou a grande importância dos bots (ou robôs), perfis automatizados que representam apenas 16,5% dos perfis analisados, mas são responsáveis por 39% das publicações. Ainda assim, a participação de humanos é muitíssimo relevante, já que corresponde ao restante dos perfis.

Mais importante ainda: o estudo concluiu que a mobilização mostrou alto grau de profissionalismo e de capilaridade, sendo não apenas uma campanha patrocinada, mas que envolveu políticos locais e veículos de pequeno porte em seus ataques às instituições democráticas. A última conclusão é a mais preocupante de todas, já que aponta a relativa inação do campo democrático a essa campanha coordenada: “Cluster progressista se atém a críticas genéricas ao bolsonarismo, sem desenvolver narrativa própria de valorização das instituições e da Constituição”, diz o Relatório Técnico NetLab/UFRJ: Casos do Voto Impresso e 07 de Setembro 2021. Dificilmente se encontrará um resumo mais preciso da situação em que nos achamos.

É o que mostra o segundo ato da contagem regressiva do golpe iniciada em 7 de setembro de 2021. Em 21 de abril de 2022, Dia de Tiradentes, mártir da Independência, Bolsonaro emparedou a última instituição que ainda resistia a seu projeto autoritário. Com apoio do Congresso e das Forças Armadas, assinou o decreto que suprimiu a pena de prisão imposta pelo STF a um golpista contumaz de sua base de apoio. Uma vez mais, sem qualquer reação à altura por parte da sociedade.

O campo democrático continua jogando amarelinha eleitoral enquanto Bolsonaro monta o octógono de MMA do golpe. Que ele dará como for possível. Conseguindo a reeleição e fechando o regime desde dentro, produzindo um caos social duradouro, aguardando o fracasso de seu sucessor e as eleições de 2026, ou dando um golpe em moldes mais clássicos. Perdendo ou ganhando a eleição em 2022, o bolsonarismo já ganhou. Derrotá-lo será tarefa para muitos anos.


Trecho do livro Limites da Democracia: De Junho de 2013 ao Governo Bolsonaro, a ser lançado neste mês pela editora Todavia.

[1] No modelo político que prevaleceu no Brasil de 1994 (ano da criação do Plano Real) a Junho de 2013, partidos funcionam como empresas de venda de apoio parlamentar a governos de coalizão. Se um indivíduo ou grupo considera que não foi devidamente contemplado na distribuição dos quinhões, ou se simplesmente acha que pode conseguir mais, migra para outro partido ou acaba por fundar um novo, estimulando a fragmentação partidária. Cabe ao síndico do condomínio no poder conferir a homogeneidade possível a esse arquipélago de interesses, estabelecendo agendas transversais de governo. Essa função foi desempenhada nesse período por PSDB e PT. A esse modo de operar, que a ciência política brasileira convencionou chamar de presidencialismo de coalizão, chamo de pemedebismo, em homenagem ao partido que, durante pelo menos três décadas, foi o líder do cartel de empresas de venda de apoio parlamentar, o PMDB, que, a partir de 2018, mudou seu nome para MDB.

[2] São sessões com participação online dos parlamentares em que eles podem votar oficialmente.

[3] Disponível em: www.olb.org.br. As premissas de funcionamento do Observatório continuam sendo as do paradigma do presidencialismo de coalizão, tal como estabelecido no país desde a década de 1990, e por essa razão a interpretação que propõe dos dados que produz e analisa não são inteiramente coincidentes com as que apresento aqui. Porém o mais importante segue sendo – como no caso de qualquer investigação orientada pelo paradigma do presidencialismo de coalizão – a alta qualidade dos dados produzidos e das análises realizadas.

[4] Valho-me do estudo Conflito Partidário na Câmara dos Deputados, de Fabiano Santos, Júlio Canello e Leonardo Martins Barbosa, em Congresso Remoto: A Experiência Legislativa Brasileira em Tempos de Pandemia, livro organizado por Fabiano Santos (Eduerj, 2021). Sistematizo aqui os dados apenas para o caso da Câmara.

[5] Publicado em Le Monde Diplomatique Brasil, nº 176 (março de 2022).

[6] Ciências Sociais Articuladas – Balanço de 2021 na Câmara dos Deputados: A Gestão de Arthur Lira (PP). Postado em 20 de dezembro de 2021.

[7] Piercamillo Davigo, em Itália: Um País Resignado?, texto do livro Corrupção: Lava Jato e Mãos Limpas, organizado por Maria Cristina Pinotti (Portfolio-Penguin, 2019).

[8] P. Davigo, em L’Occasione Mancata: Mani Pulite Trent’anni Dopo (Laterza, 2021). Tangentopoli (“propinópolis”) é um nome alternativo a “Mãos Limpas”.

[9] Gherardo Colombo, em Corrupção e Responsabilidade, no livro já mencionado Corrupção: Lava Jato e Mãos Limpas.

[10] Idem.

[11] Até onde sei, falta contar concretamente, por exemplo, toda a história das conexões do bolsonarismo nascente com os movimentos de extrema direita pelo mundo. A pesquisa e os relatos de Benjamin Teitelbaum em Guerra pela Eternidade: O Retorno do Tradicionalismo e a Ascensão da Direita Populista (editora da Unicamp) mostram a ligação de Bolsonaro com o tradicionalismo por meio de Olavo de Carvalho, assim como a relação deste com Steve Bannon a partir da ascensão de Bolsonaro à Presidência. Mas não tenho conhecimento de uma reconstrução minuciosa da história pregressa do bolsonarismo nesses termos, especialmente a partir de 2014, em relação a suas fontes de financiamento, ao aprendizado de tecnologia digital e a suas redes ideológicas.

[12] Tendo funcionado de setembro de 2019 a março de 2020, a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) teve prorrogado o seu prazo, que foi então suspenso por tempo indeterminado em razão da pandemia. Até a conclusão da redação deste texto, a informação disponível era a de que a CPMI não seria retomada, sendo todo o material recolhido pela investigação destinado ao acervo do Congresso, sem que se saiba sobre a possibilidade de ter acesso público a ele.

[13] Entendo que a tese explicativa da “classe média espremida” (ou do “meio espremido”) ainda não encontrou elementos de comprovação razoáveis. Embora não se concentre nos elementos econômicos dos paradoxos próprios à extrema direita, Hochschild traz uma reformulação da questão que pode ser muito útil para investigações futuras: “Por um lado, o ideal e a promessa nacionais informam que atingir o topo da colina é conquistar o Sonho Americano – ou seja, é progredir. Mas, por outro lado, ficou difícil progredir.”

[14] Consulte-se a esse respeito o texto de Allan de Abreu, A polícia toma o poder, publicado em 16 de dezembro de 2020 no site da revista piauí, como na seguinte passagem, referente à “família policial”: “Essa base costuma ser aliada incondicional dos policiais, mesmo diante de ações ilegais, como o motim das tropas. Não à toa, nos últimos anos, tornou-se comum mulheres de PMs ocuparem os quartéis para protestar por melhores salários no lugar dos maridos, impedidos de protagonizarem atos desse tipo.”

[15] Nas ruas, Sete de Setembro encheu; nas redes, #flopou, publicado em 7 de setembro de 2021 no site da piauí.

Marcos Nobre – Sociólogo


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