28/03/2024 - Edição 540

Especial

Vivendo a tristeza

Publicado em 09/04/2015 12:00 -

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Cerca de 350 milhões de pessoas sofrem com a depressão no mundo. Um número que só aumenta e que virou um problema de nossa era: só nos Estados Unidos, o consumo de antidepressivos aumentou 400% em 20 anos. Mas, historicamente, depressão é um conceito que surgiu outro dia. Por séculos, ela era uma doença misteriosa chamada apenas de melancolia. "Perdi toda a alegria e descuidei-me dos meus exercícios habituais", disse Hamlet logo após o assassinato do pai. Se vivesse hoje, o personagem de Shakespeare certamente entraria na mira dos médicos. Ele seria enquadrado no DSM-V, a bíblia da psiquiatria, que identifica e diagnostica os transtornos mentais. Hamlet, sob os olhos da medicina contemporânea, teve depressão.

Dos tempos de Shakespeare para cá, muita coisa mudou. Tristeza não é doença. Depressão é, com sintomas reconhecidos, padronizados e tratamentos específicos. E uma indústria que desenvolveu remédios para combater esse mal que deve crescer ainda mais. A Organização Mundial da Saúde aposta que em 2030 a depressão já será a doença mais comum do mundo, à frente de problemas cardíacos e câncer.

Vivemos uma espécie de epidemia de mal-estar: há mais pessoas deprimidas do que nunca. Ironicamente, justo em uma época em que a busca pela felicidade é algo quase obrigatório. Você conhece alguém que não queira ser feliz? Soa bizarro e anacrônico. Nosso estilo de vida gera angústia e tristeza – que podem levar à depressão. É grave, ficamos vulneráveis a ela, com o risco maior de cair no abismo: passar a barreira dos sintomas leves e entrar numa depressão profunda. É como se a vida fosse uma calçada esburacada – nem todo mundo que tropeça cai e se arrebenta. Dá para controlar a queda, se segurar etc. Mas quem desaba no chão corre o risco de não se levantar mais: 15% das pessoas com depressão grave cometem suicídio.

O medo da depressão e a busca incessante por felicidade fizeram muita gente fugir da tristeza como se ela fosse uma peste dos nossos tempos. Quem quer ter isso? Quem quer ficar perto de alguém que tem? Isso impulsionou o desenvolvimento de remédios com efeitos colaterais cada vez menos nocivos. Mas também levou a uma certa banalização. "Eu tenho a impressão de que todo mal-estar virou depressão", diz Mário Corso, psicanalista e autor do livro A Psicanálise na Terra do Nunca. "É uma coisa da nossa época. Depressão é a palavra que serve para tudo, as pessoas não sabem o que têm e dizem que estão deprimidas", explica.

Tanya Luhrmann, antropóloga especializada em psicologia da Universidade Stanford, nos EUA, acha que há um clima de exagero. "Estou certa de que nós damos muito remédio às pessoas e que tristeza comum é tratada com medicação", diz. Saber a diferença entre tristeza e depressão é essencial. "A tristeza tem motivos, a depressão não tem motivo nenhum", explica Corso. Na tristeza, choramos pela morte de alguém. Ficamos tristes, mas a dor passa, por mais que a saudade não. Na depressão, a dor não passa. A pessoa não sente mais prazer em nada. E foi nessa zona cinzenta de desinformação que nasceu a farra das farmácias. A busca por um comprimido mágico que promete milagres, transformando dor em felicidade, levou muita gente a desaprender a lidar com a tristeza.

Indústria da depressão

Sigmund Freud conhecia um remédio legal para curar depressão. Chamava-se cocaína. Usuário e entusiasta da droga, ele a receitava para pacientes que sofriam de tristeza recorrente e sem explicação. Antes disso, os estimulantes mais receitados eram morfina e heroína – até descobrirem que ambas viciavam e tinham efeitos colaterais perigosos. Mas aí, veja só, viram que cocaína também era um problema. Em 1914, os EUA foram o primeiro país a proibi-la. Só na década de 1950 surgiu um substituto eficaz contra esse vazio da alma. Como na origem de tantos outros remédios, miraram aqui e acertaram ali.

A Organização Mundial da Saúde aposta que em 2030 a depressão já será a doença mais comum do mundo, à frente de problemas cardíacos e câncer.

O Marsilid surgiu como uma tentativa de encontrar a cura para a tuberculose, mas quem o tomava ficava um tanto alegre. Ninguém sabia explicar por quê. Até que em 1965 o psiquiatra americano Joseph J. Schildkraut elaborou a primeira teoria para explicar os efeitos do remédio e, de quebra, as causas da depressão. Ele dizia que a tristeza é um descompasso bioquímico no cérebro ligado à serotonina, dopamina e noradrenalina, os neurotransmissores que regulam o humor e as sensações de prazer e recompensa. Se os níveis dessas substâncias estivessem baixos, era indício de depressão. Bastaria então tomar algo que aumentasse a taxa, e tudo ficaria lindo. E o princípio ativo do Marsilid era a iproniazida, que eleva, justamente, o nível de serotonina.

Foi uma mina de ouro para a indústria farmacêutica. Tratar doenças mentais deixou de ser coisa só de gente extremamente doente, à beira do hospício. O marketing dos laboratórios passou a mirar também em mães estressadas, trabalhadores cansados e qualquer cidadão propenso a uma fase deprê na vida. Desde a década de 1960, surgiram vários remédios que traziam bem-estar, sempre com ação direta na química cerebral. Mas as vendas nunca decolavam, porque os efeitos colaterais eram muito fortes, como inquietação, insônia e dificuldade em urinar.

Só em 1988 surgiu um medicamento que não só mudou de vez as cifras da indústria como conseguiu extravasar o universo das gôndolas das farmácias e virar um ícone cultural: o Prozac. Com efeitos colaterais bem menores, a "pílula da felicidade", como foi chamada na época, entrou para a lista dos medicamentos mais vendidos no mundo. Desde então, surgiram cerca de 30 remédios destinados a combater a depressão. Mas nenhum deles ficou famoso como o Prozac, que, segundo a fabricante Eli Lilly, foi vendido a 90 milhões de usuários nesses 25 anos, enchendo os cofres da empresa. Em 2000, um ano antes de a patente expirar, ela faturou mais de US$ 2 bilhões com o remédio, cerca de 50% a mais que a Pfizer ganhou no mesmo ano com o Viagra.

Dos anos 90 para cá, o antidepressivo ficou comum. Para toda tristeza ou desânimo, ele passou a ser considerado um tratamento em potencial. Mas o Prozac não teria sido um megahit da década tão grande quanto Carla Perez ou Jurassic Park se não houvesse quem o receitasse.

Tudo que era tipo de médico passou a indicar antidepressivos. Tristeza aqui, melancolia acolá, tome remédio goela abaixo que melhora. Só que, como era de se esperar, nem sempre os diagnósticos batiam com o problema. Além do fato de antidepressivos nem sempre surtirem efeito, agora a própria teoria que explica seu funcionamento está sendo questionada. Cinquenta anos depois, a teoria dos baixos níveis de serotonina não é mais tão forte. Alguns desses remédios, em vez de elevar a concentração da substância, abaixam ainda mais. Para complicar, nem todo cérebro deprimido tem pouca serotonina. Mesmo assim, ainda se acredita que a depressão é, sim, um desequilíbrio químico. O problema é que não se sabe ao certo quais são os neurotransmissores envolvidos.

Ou seja, não que fosse má-fé da classe médica receitar antidepressivo a torto e a direito. É que depressão é uma doença conhecida há pouco tempo e ainda muito misteriosa. Ela não é como o câncer, em que um exame de imagem mostra a regressão ou o aumento de um tumor, e uma biópsia revela o estágio e o grau da doença. Não há resultados impressos para mostrar se o tratamento teve resultado.

Existe a suspeita ainda que a culpa do caos químico no cérebro seja do estresse. Em resposta à tensão do ambiente externo, o corpo produz mais cortisol e outros hormônios do estresse. O excesso pode alterar a bioquímica cerebral e causar depressão. Se o problema for mesmo esse, então a infelicidade crônica pode ser uma resposta ao nosso estilo de vida. Estamos mais tristes, também, por causa da nossa sociedade.

Dor na alma

Os evolucionistas acreditam que a depressão é uma característica do nosso cérebro, provocada por algo que nos ajudou a sobreviver: somos um bicho sociável. Esse instinto de socialização e cooperação facilitou a vida dos nossos ancestrais – conseguir comida em grupo era bem mais fácil. Mas ele abriu a porteira para a depressão, porque nosso humor sempre foi influenciado por esse convívio em sociedade.

Quando o cérebro se desenvolveu, 200 mil anos atrás, ninguém precisava tomar grandes decisões. Ele foi adaptado para lidar com comunidades pequenas, de até 70 membros. A pessoa não precisava se encontrar na vida, ela já nascia inserida em um contexto mais bem definido. Suas opções eram poucas, determinadas por etnia, grupo social, família etc. Não havia tantas opções e decisões. E aí, quanto mais complexa a vida ficou, maior a propensão à depressão. Hoje, são zilhões de escolhas, é difícil ter certeza sobre qual será a melhor – e qual tomamos só para ser aceitos nessa vida em sociedade. Qual o melhor emprego, a melhor namorada, a melhor cidade para se viver. O cérebro às vezes parece incapaz de lidar bem com isso. Não é à toa que muitos depressivos se queixam de ter surtado por só atender às vontades alheias, em vez de seguir os próprios desejos.

Em comunidades mais simples, os índices de depressão são menores. Um exemplo são os kaluli, etnia da Papua-Nova Guiné que vive da caça, pesca e agricultura de subsistência. O antropólogo Edward Schieffelin, da Universidade College de Londres, entrevistou 2 mil kaluli em dez anos de pesquisa. Só uma pessoa apresentou sinais de depressão – uma taxa 20 vezes menor que a do Brasil.

Schieffelin acredita que a explicação esteja no estilo de vida. Os kaluli usam muito o corpo, se alimentam de comidas naturais e se expõem mais ao Sol. A verdade é que todos precisamos de ar livre. A luz solar aumenta a produção de hormônios que deixam você mais disposto, mais animado. "Existe uma relação já comprovada entre a falta de sol e a depressão. Não é à toa que nos países do norte europeu o índice de depressão é maior que aqui", explica Raphael Boechat, psiquiatra e professor da Universidade de Brasília. Ao mesmo tempo em que estão entre os países mais felizes do mundo, graças à excelente qualidade de vida, os países escandinavos têm altos índices de depressão.

A psicanálise leva a questão um pouco mais longe. No livro O Tempo e o Cão, a psicanalista Maria Rita Kehl culpa nossa sociedade consumista pelo vazio da alma. A máxima do nosso tempo é vencer. E vencer significa ser feliz. No meio do caminho, escolha uma profissão, tenha amigos, compre um carro, financie uma casa, case, viaje, vá ao shopping, torça para um time, compre, use, abuse, jogue, desfile, passeie, julgue, brilhe, dance, transe, descanse. A publicidade teria transformado a felicidade em uma sucessão de frases imperativas que nos faz consumir. Só que isso não preenche nada. E o vazio continua aqui dentro. O depressivo, descreve Kehl, não consegue ver graça em nada disso, em nenhuma dessas conquistas.

"Junto com a medicação, o que se vende é a esperança de que o depressivo possa rapidamente normalizar sua conduta sem ter de se indagar sobre seu desejo", afirma a psicanalista. É como se buscasse uma pílula para se ajustar à vida. Um desejo de ser normal.

O uso de antidepressivos pode ter se tornado algo banal e muitas vezes irresponsável. Mas sua popularização derrubou parte do medo de tratar a depressão. Ficou mais fácil sair do armário e aceitar isso como uma doença real. Os remédios deram aos depressivos uma dose de esperança. E essa esperança ajuda tanto que pessoas que tomam só água com açúcar achando que é antidepressivo relatam melhora de humor.

O psiquiatra americano Irving Kirsch analisou 38 testes clínicos com 3 mil participantes que, separados em grupos, lidaram com a depressão de quatro formas distintas: antidepressivos, remédio placebo, psicoterapia e nenhum de tratamento. Ele constatou que, enquanto em média 75% dos sintomas de quem tomou remédio melhoraram, 50% dos efeitos nos que só tomaram pílulas de açúcar foram reduzidos. Ou seja, só 25% da melhora seria mérito do remédio. Ainda assim, a função dos remédios não pode ser ignorada: quando a tristeza foge do controle, qualquer esperança serve como alento.

Outras questões da vida moderna também deixam o corpo mais cansado. A enxurrada de informação com que lidamos todo dia não deixa o cérebro descansar, o que aumenta as chances de pane. Viver em um ambiente desgastante, com mais tempo dedicado a trabalho que a lazer é um atalho para a depressão. Para piorar, essas mudanças são acompanhadas cada vez mais pela solidão.

Segundo o IBGE, mais de 12% das casas brasileiras só tem um morador – há dez anos, era menos de 9%. O número de solteiros também aumentou: 48% (ou 72 milhões) dos brasileiros acima de 15 anos, uma alta de quase 16% em dois anos. Se somarmos a divorciadas e viúvos, a parcela da população fora de um relacionamento sério chega a 60%. É muita gente. E os picos de depressão estão nesses grupos mais solitários: solteiros, divorciados e viúvos. Em uma realidade tão propensa à depressão, é preciso, antes de tudo, saber lidar com a tristeza.

O lado bom da tristeza

Vamos deixar claro uma coisa: nem toda tristeza é ruim. Muitas fazem parte desse jogo em que você entra no momento em que nasce. Ficar sem presente no Natal, sofrer pelo galã da escola, ser reprovado no vestibular, perder um emprego, levar um pé na bunda, brigar com um amigo, encarar a morte de alguém e tantas outras mais fazem parte da vida. Todo mundo lida com elas, em maior e menor escala. "Se existe um lado bom é que a tristeza nos torna um pouco mais sábios do que no momento da euforia, quando a gente fica meio abobado. É uma boa hora para fazer um balanço", diz o psicanalista Mário Corso. A crise nos obriga a sair da zona de conforto e abre o caminho para avaliarmos a vida por novos ângulos e tomar rumos diferentes.

O problema é quando você não consegue superar a crise. Sem saber como reagir à dor, mergulha numa tristeza que paralisa.

Grupos de apoio são uma boa saída para aprender a encarar o lado amargo da vida – mesmo que você não esteja numa depressão profunda. Essas terapias em grupo funcionam tão bem quanto sessões com psicólogos que seguem a linha cognitiva-comportamental, que tenta ajudar o paciente a ver as coisas de outra forma, ou interpessoal, que foca nos problemas do presente. Essas duas são as formas de psicoterapia com os melhores resultados no tratamento da depressão. Ou seja, não dá para apostar todas as fichas nos remédios. Eles podem resolver o lado bioquímico, mas o modo de lidar com os problemas ainda é contigo.

Andrew Solomon, autor de O Demônio do Meio-Dia, um livro autobiográfico sobre depressão, diz que tudo pode funcionar, até tomar remédio de ponta cabeça. Basta acreditar nos efeitos positivos. E foi por isso que ele encarou diversas terapias alternativas, desde tomar chá de uma planta chamada erva-de-são-joão, hipnose, homeopatia até participar de um ritual religioso em uma tribo africana. Alguns melhoraram o ânimo do escritor, outros nem tanto.

Além de Solomon, outras pessoas estão procurando alternativas para tratar a depressão. No Brasil, um grupo de pesquisadores viu na ayahuasca uma oportunidade. O chá à base de plantas amazônicas usadas em rituais religiosos, que dá um efeito de bem-estar e tranquilidade, tem princípios ativos que agem direto no cérebro e pode render no futuro novas linhas de antidepressivos. "Os efeitos terapêuticos observados com a ayahuasca são praticamente imediatos, enquanto que as medicações disponíveis demoram duas semanas no mínimo", explica Jaime Hallak, professor de medicina da USP Ribeirão Preto e coordenador da pesquisa.

Outra promessa farmacêutica é a cetamina, usada como anestésico desde os anos 60. Os 120 pacientes do psiquiatra americano Carlos Zarate que tomaram a droga tiveram melhoras rápidas e significativas. Em vez de alterar os níveis de serotonina, dopamina e noradrenalina, a substância regula a concentração de outro neurotransmissor, o glutamato – isso, por si só, já é inovador: seria o primeiro antidepressivo, desde o Marsilid, a não interferir na taxa dos dos três neurotransmissores de sempre. Além disso, há novas tecnologias que apresentam outras duas possibilidades: estimulação magnética transcraniana, ondas eletromagnéticas que estimulam partes do cérebro – algo como o filho prodígio do eletrochoque – e o neurofeedback, em que o paciente faz atividades para treinar o cérebro, e sensores mostram em tempo real os efeitos que restauram o equilíbrio do órgão.

Mas não importam as técnicas, terapias ou remédios que você use, os perrengues da vida vão voltar. Triste? Lembre-se: é assim com todo mundo (e muito mas mais intenso com os depressivos). Tentar encarar as adversidades ainda é essencial para sair mais forte de cada crise. "Eu detestava estar deprimido, mas foi também na depressão que aprendi os limites do meu próprio terreno, a plena extensão da minha alma", escreveu Andrew Solomon. "A experiência da dor, que é especial em sua intensidade, é um dos sinais mais seguros da força da vida". Conhecer seus próprios limites e não ultrapassá-los torna a vida mais leve – você passa a viver no seu tempo, sem forçar a barra. É encontrar uma rotina que se encaixe em você. E não o contrário.


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