25/04/2024 - Edição 540

Mato Grosso do Sul

Em estado movido pelo agro, guarani-kaiowá lutam por terras

Publicado em 01/07/2022 12:00 -

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A cada novo pedido de socorro que chega às lideranças guarani-kaiowá em Mato Grosso do Sul, o medo de mais mortes aumenta. O alerta mais recente partiu do território Kurupi, no município de Naviraí: indígenas dizem ser perseguidos por uma viatura enquanto buscam lenha nas redondezas.

O local fica a cerca de 150 quilômetros de outro ponto de tensão, onde familiares ainda choram a morte do guarani-kaiowá Vitor Fernandes, de 42 anos, enterrado em Amambai no último dia 27.

Fernandes integrava o movimento pela retomada do território tradicionalmente ocupado pelos indígenas no estado. Fazia um mês que ele e 30 famílias ocupavam uma dessas áreas, onde atualmente se encontra a fazenda Borda da Mata. Uma ação de despejo, sem mandato judicial e com policiais militares da tropa de choque, vitimou Fernandes, além de deixar pelo menos outros nove indígenas gravemente feridos por armas de fogo e projéteis de borracha.

O caso está sendo chamado por entidades indigenistas e de direitos humanos de Massacre de Guapoy, em referência ao nome do território ancestral ao qual tentam retornar (Guapo'y Mirim-Tujury).

"Conflito é quando os dois lados estão bem armados e lutando de igual pra igual. No nosso caso, é massacre. Porque nossos parentes [indígenas] não têm armamento, não têm fuzil, não têm helicóptero. Nossa arma é nossa reza, nosso cocar, nosso maracá", comenta sobre o cenário Natanael Vilharva Caceres, representante do Movimento Guarani-Kaiowá e historiador.

Questionada pela DW Brasil, a Secretaria de Segurança Pública de Mato Grosso do Sul não respondeu às perguntas enviadas até o fechamento desta reportagem.

Terra indígena perdida

Como outros povos indígenas, a história dos guarani-kaiowá envolve expulsão de seus territórios, avanço da fronteira agrícola e décadas de tentativas de retorno às terras em que viviam até o início do século passado.

Considerados um subgrupo dos guarani, eles vivem hoje em Mato Grosso do Sul e em parte do território paraguaio. Antes da chegada dos colonizadores, habitavam uma área de 40 mil quilômetros quadrados na fronteira entre Brasil e Paraguai.

Até a Guerra do Paraguai, entre 1864 e 1870, os guarani-kaiowá mantiveram o domínio sobre o território, mas a fixação de soldados na região mudou o panorama. A chegada, por exemplo, da Companhia Matte Larangeira, em 1891, fez com que indígenas fossem usados como mão de obra, o que significou uma "imposição definitiva do contato e dependência", afirma o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Guarani-Kaiowá Guyraroká, documento da Fundação Nacional do Índio (Funai) publicado em 2001.

No fim da década de 1940, a Matte Larangeira perdeu o monopólio, e as fazendas de gado se expandiram. É quando a "terra é efetivamente ocupada e, conforme dizem os kaiowá, 'não tinha mais lugar para o índio'", recupera o relatório.

Expulsos do território tradicional, os guarani-kaiowá foram confinados em oito reservas criadas pelo então Serviço de Proteção aos Índios (SPI), entre 1915 e 1928. A área, no entanto, foi drasticamente reduzida: as reservas vão de 20 a 36 km².

"O Estado arrancou os guarani-kaiowá do território tradicional e criou essas reservas artificiais, embora algumas delas sejam pedaços diminuídos de territórios ancestrais. E foi levando indígenas de muitas regiões, causando um caos, misturando lideranças, confinando gente, fazendo com que eles não conseguissem mais viver a cultura deles”, afirma Matias Benno Rempel, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

Superlotação em reservas

Nas reservas, a superlotação é um problema para o modo de vida indígena. Em Dourados, por exemplo, são 18 mil pessoas em 30 km². Em Amambai, onde ocorreu o último episódio com morte, são quase 10 mil indígenas em 24 km². Estima-se que 40 mil guarani-kaiowá vivam somente em Mato Grosso do Sul.

"São áreas pequenas, que não comportam nem a metade da população indígena", diz Caceres. "Precisamos dos nossos territórios para nossa sobrevivência física e cultural de modo digno. É o nosso tekoha", complementa, referindo-se ao termo que significa "o lugar onde podemos ser nós mesmos".

Para o Ministério Público Federal (MPF), a densidade demográfica é comparável a um verdadeiro confinamento humano. "Em espaços tão diminutos, é impossível a reprodução da vida social, econômica e cultural", afirma o órgão em ações que cobram a demarcação das terras no estado.

Sem espaço nas reservas, famílias acampam há duas décadas em barracões de lona às margens da rodovia BR-163. "Outras famílias ficam nos 'fundos' dos nossos territórios sagrados, mas não ocupam. São fazendas onde têm monocultura de cana, soja ou pasto", explica Caceres.

Na beira da rodovia, eles não têm água, enfrentam períodos de fome, correm risco de atropelamento. "Crianças morrem por motivos banais, por falta de atendimento", complementa Rempel.

Em 2007, o MPF firmou com a Funai um termo de ajustamento de conduta para que o órgão cumprisse as etapas para delimitação das terras indígenas, que guiariam a demarcação das áreas de ocupação tradicional. Como nada ocorreu conforme o acordado, o MPF ajuizou uma ação em 2010 cobrando a execução. Desde então, nenhum dos procedimentos de demarcação foi concluído.

Expansão agrícola e alta da violência

Segundo o monitoramento da violência feito pelo Cimi, a situação em Mato Grosso do Sul piorou nos últimos anos. "Isso tem muito a ver com a bancada ruralista no Congresso", comenta Rempel.

No estado, a área de agricultura saltou de 2,4 milhões de hectares em 2015 para 3,8 milhões em 2021, segundo dados do governo estadual. A soja é a principal cultura e commodity de exportação, seguida pela celulose.

Forças particulares que atuam nas fazendas estariam por trás da investida contra indígenas. "Os guarani-kaiowá vivem um genocídio estrutural. Há uma constante de ataques contra essas comunidades, de falta de território, abandono completo pelo Estado. Há forças de segurança agindo em propriedades privadas envolvidas", afirma Rempel.

Só em 2015 e 2016, o Cimi testemunhou 33 ataques paramilitares em comunidades indígenas. Em agosto de 2015, o guarani-kaiowá Simião Vilhalva foi morto com um tiro na cabeça numa área retomada do tekoha no município de Antônio João. No ano seguinte, Clodiodi Rodrigues de Souza, agente de saúde indígena, foi morto quando cerca de 40 caminhonetes, três pás carregadeiras e mais de cem pessoas – muitas encapuzadas, uniformizadas e armadas – atacaram os guarani-kaiowá numa região de retomada.

Esse último caso, que ficou conhecido como o Massacre de Caarapó, começou a ser julgado em janeiro deste ano, após o MPF apresentar denúncia contra cinco fazendeiros, ainda em 2016.

A retomada mais recente, no tekoha Guapoy, aconteceu depois da morte do guarani-kaiowá Alex Lopes, de 17 anos. "Ele estava catando lenha quando foi alvejado com mais de cinco tiros. Morreu na hora. Isso revoltou muito os parentes. Eles decidiram partir para a retomada, já que estamos aguardando uma decisão judicial há anos", diz Caceres.

Procurada, a Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul não comentou o cenário de confrontos até o fechamento desta reportagem.

Investigação e memória

O confronto que vitimou o guarani-kaiowá Vitor Fernandes neste mês mobiliza a Defensoria Pública da União e o MPF. "A situação é bastante grave, de violação de direitos humanos. O que a gente verificou foi uma violência desmedida contra crianças, jovens e idosos, além de uma tentativa de criminalização das vítima"”, disse à DW Brasil Daniele Osório, defensora pública federal que acompanha o caso em Mato Grosso do Sul.

Segundo Osório, o número de pessoas feridas é maior do que o identificado pela polícia. "Eles estão feridos nas comunidades, não querem se identificar porque têm medo da criminalização", explica, mencionando que o caso está sendo investigado pela Polícia Federal.

Após o enterro de Fernandes, que ocorreu no local onde ele foi morto, após um acordo assinado com a fazenda Borda da Mata, os indígenas decidiram voltar para a área de onde haviam sido expulsos. Apesar do medo, eles afirmam que não vão deixar o local.

"A memória dos povos indígenas está presente nas florestas, nos rios, que fazem parte da nossa vivência, do nosso local de viver. Queremos que nossa história não seja apagada", diz Caceres, que acabou de defender um mestrado sobre as tradições orais de seu povo na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).

Após morte de Bruno e Dom, violência contra indígenas aumenta no MS e na BA

Após o brutal assassinado do indigenista Bruno Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips, no Vale do Javari, Estado do Amazonas, novos episódios de violência contra populações indígenas foram registrados em locais do Mato Grosso do Sul e do Sul da Bahia. Para lideranças desses povos, isso mostra que, mesmo após a comoção internacional provocada pelos assassinatos, as tradicionais instituições brasileiras seguem funcionando normalmente.

Uma tentativa de despejo extrajudicial na retomada dos Kaiowa e Guarani conhecida como Guapoy, em Amambai (MS), envolvendo o Batalhão de Choque da Polícia Militar, resultou em pelo menos uma morte confirmada até agora, do indígena Vitor Fernandes, 42 anos, além de ao menos 10 feridos.

A Secretaria de Justiça do Estado alegou que não se tratava de despejo, mas sim de uma ação legítima da PM. O Ministério Público Federal realiza esta semana uma perícia antropológica no local para buscar determinar com mais exatidão os fatos ocorridos.

Quase ao mesmo tempo em que ocorria a ação em Guapoy, houve denúncia de ação da PM em tentativa de despejo não autorizado contra os Kaiowa e Guarani da comunidade de Kurupi/Santiago Kue, em Naviraí. Os ataques contra o grupo vêm se sucedendo nos últimos dias, segundo nota do Conselho Indigenista Missionário.

Em 26 de fevereiro deste ano, na área de Laranjeira Nhanderu, dos Kaiowa e Guarani, uma ação semelhante havia, segundo denúncia do movimento indígena, envolvido a Polícia Militar, deixando três indígenas feridos. Em 1o de agosto de 2019, aconteceu outro despejo extrajudicial com participação da PM, segundo o movimento indígena, no município de Aquidauana, contra uma comunidade do povo Kinikinau.

Há diversos outros casos recentes em que houve denúncia de emprego de policiais militares nesse tipo de ação contra retomadas Kaiowa e Guarani, todas no município de Dourados (MS) e próximas à área mais populosa que habita esse povo, a problemática Reserva de Dourados, com quase 20 mil habitantes: em 3 de fevereiro deste ano, na retomada de Aratikuty; em 10 de novembro de 2021, na retomada Avaete; em janeiro de 2020, na área conhecida como Nhu Verá – neste caso, os policiais teriam inclusive "escoltado" paramilitares contratados por fazendeiros.

Não há, até o momento, notícia sobre alguma investigação mais significativa sobre esses episódios, apesar do saldo de dezenas de feridos e ao menos um morto.

Há outros 'Brunos' atuando na Funai, o que gera insatisfação

Em um episódio anterior, em agosto de 2018, em outra retomada chamada Guapoy, em Caarapó, segundo as denúncias do movimento indígena, o Batalhão de Choque da PM, acompanhado de uma unidade especial especializada em combate ao crime organizado, o DOF, atacou com helicópteros, deixando o saldo de seis indígenas feridos, três atropelados e um idoso Kaiowa com transtornos mentais preso, Ambrósio Alcebíades, de 70 anos. Nesse caso, uma Ação Civil Pública do Ministério Público Federal pede, atualmente, reparação de danos morais coletivos para a comunidade, no valor de R$ 1 milhão, em função da "grave ofensa a direitos humanos e fundamentais" que a ação policial representou.

Poderíamos, porém, dizer que a utilização de policiais militares para realizar o despejo de indígenas de áreas que eles ocupam para pressionar pelos processos de demarcação de terras é uma espécie de tradição no Mato Grosso do Sul. O relatório da Comissão Nacional da Verdade, de 2014, e o filme "Martírio", de Vincent Carelli, mostram um exemplo antigo, de 1985, na área que hoje é reconhecida como Terra Indígena Jaguapiré.

Como também mostrou o relatório da CNV, a utilização de funcionários da própria Fundação Nacional do Índio (Funai) e do antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) para realizar despejos era ainda mais comum. Era possível encontrar denúncias de funcionários envolvidos nesse tipo de ação em estados como Mato Grosso do Sul ou Paraná até há poucos anos – este repórter presenciou depoimentos a respeito entre os anos de 2009 e 2010.

A reestruturação do órgão, com a realização de novos concursos públicos, a partir de 2010, trouxe para dentro da fundação uma nova geração de servidores, que se confrontou com esse tipo de prática "tradicional". Gente como Bruno Pereira, que até hoje luta para cumprir com dignidade seus deveres profissionais, segundo a Constituição de 1988 e o Estado de direito – e não conforme tradições tortas, advindas de nossos 522 anos de colonização europeia.

Situação indígena no Sul da Bahia também é tensa

No Sul da Bahia, nos últimos dias, vídeos divulgados nas redes sociais mostram que há risco de conflito na região de Mata Atlântica habitada pelos Pataxó, entre as Terras Indígenas Barra Velha e Cahy Pequi, nas proximidades do Monte Pascoal.

Inspirados pelos fazendeiros de "Mato Grosso", segundo o narrador do dito vídeo (presume-se que falem de Mato Grosso do Sul), um grupo de dezenas de pessoas de bem armadas, em caminhonetes, expulsou indígenas de uma das duas áreas ocupadas na semana passada. De acordo com o Cimi, a ação anunciada em uma das gravações foi executada na noite de 26 de junho.

Os Pataxó, por sua vez, divulgaram vídeos em que denunciam o plantio de eucalipto pela empresa Suzano em áreas que integram o território indígena já reconhecido por meio de relatório de identificação da Funai.

Em um desses comunicados, aparecem áreas que seriam de eucalipto queimando ao fundo, enquanto uma das lideranças indígenas entoa um forte discurso: "Hoje nós estamos expulsando a Suzano do município de Prado, da Terra Indígena Cahy Pequi/Comexatiba, entorno do Monte Pascoal. Fora Suzano! Nós estamos botando fogo no eucalipto e destruindo tudo! (?) Não vai ficar um pé de eucalipto nessa terra sagrada!".

A nota do Cimi sobre os episódios na região dos Pataxó também menciona denúncia feita pelos indígenas de que há indícios de que policiais militares estariam participando das ações de despejo sem autorização judicial. Segundo as fontes ouvidas pela entidade, alguns dos envolvidos na ação de expulsão teriam se identificado como policiais.

Atual governo prometeu não demarcar mais terras indígenas

Em ambos os casos, Mato Grosso do Sul e Bahia, é notório que as ações indígenas buscam pressionar o governo federal pela retomada dos trabalhos de demarcação de terras. Nessas regiões, segundo já comprovaram numerosos estudos antropológicos e históricos, as áreas de ocupação tradicional indígena foram massivamente concedidas a não indígenas durante o século 20, ou, no caso de algumas áreas da Bahia, transformadas em parques nacionais.

Parte da dificuldade, portanto, é que os atuais ocupantes não indígenas desses locais, hoje munidos de títulos de propriedade, levam a discussão à Justiça, que, em muitos casos, tarda décadas para tomar decisões. Segundo o Cimi, na nota citada acima, a TI Cahy-Pequi é a que teria atualmente maior número de contestações judiciais no Brasil: 156.

Aqui, um parêntese para uma explicação "antropológica": no Brasil, tradicionalmente, quando um grupo de indígenas disputa na Justiça uma área que reivindica como sua terra de ocupação tradicional, mas onde está atualmente instalada uma fazenda, o fazendeiro permanece no local usufruindo da terra e de todos os seus bens, inclusive podendo utilizar o recurso financeiro obtido com sua atividade rural para pagar advogados que postergam por anos sua permanência no local.

Já os indígenas geralmente são estimulados a esperar pela decisão da Justiça morando na beira da estrada, ou em algum terreno mínimo, de forma precária e dependendo de benefícios sociais para poder sobreviver enquanto esperam – às vezes, literalmente, por décadas – a decisão do Judiciário.

O governador de Mato Grosso do Sul, Reinaldo Azambuja (PSDB), é fazendeiro e, antes de eleger-se, em 2014, quando ainda era deputado federal, notabilizou-se como um dos participantes do Leilão da Resistência, iniciativa em que os ruralistas da região arrecadaram fundos para o pagamento de empresas de segurança privada para conter as ocupações promovidas pelos povos indígenas do estado – protestando, a seu modo, contra essa tradição que descrevi acima.

Em 2020, o governador foi indiciado pela Polícia Federal por corrupção passiva, lavagem de dinheiro e formação de organização criminosa – denúncias acolhidas pelo Ministério Público Federal logo em seguida. O político é acusado de ter recebido R$ 67,7 milhões em propina dos sócios da empresa JBS, Joesley e Wesley Batista. A conferir como as instituições funcionarão neste caso.


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