28/03/2024 - Edição 540

Entrevista

‘A gente precisa do Estado presente na região’, diz procurador jurídico da Univaja

Publicado em 27/06/2022 12:00 -

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O procurador jurídico da Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari), o advogado Eliesio Marubo, concedeu entrevista à Agência Pública em Tabatinga (AM) às vésperas de embarcar para Brasília. Ele chega à capital federal nesta quarta-feira, 22 de junho, dias depois de participar de um intenso esforço de buscas pelo indigenista Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips. Eliesio vai se juntar ao irmão Beto Marubo e a uma comissão de enviados do movimento indígena para uma agenda repleta de encontros com instituições do Estado brasileiro. Além de encontros com a comissão formada por parlamentares da Câmara dos Deputados e do Senado, a delegação da Univaja já fez encontros com membros do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) na terça-feira, 21 de junho, e Beto Marubo junto a procuradora da República, Eliana Torelly, coordenadora da 6ª Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal, se reuniram com o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, em agenda privada ontem. 

A comissão do Javari ainda se dispõe a abrir diálogo com o governo federal. Antes do início da agenda pública com a presença de Eliesio, ainda na segunda-feira, 20 de junho, representantes indígenas e indigenistas do Vale do Javari se reuniram com o deputado José Ricardo (PT-AM) presidente da Comissão criada pela Câmara e outros parlamentares, como Joênia Wapichana (REDE-AP). Na reunião, algumas pautas foram levadas ao conhecimento dos parlamentares, entre elas a cobrança para que o inquérito policial sobre a morte de Bruno e Dom seja conduzido de forma séria pelas autoridades e que o assassinato do servidor da Funai, Maxciel Pereira, em 2019, seja solucionado e o motivo da demora da resolução do crime, apontado.

Os representantes dos povos do Vale do Javari também reivindicaram atuação do Congresso para garantir a segurança dos servidores da Funai, indígenas e indigenistas, além de ressaltarem que a Univaja deve ser ouvida durante todo o processo de investigação das comissões.

O objetivo da visita no momento é se valer da comoção e cobertura midiática internacionais causadas pelo assassinato de Bruno Perera e Dom Phillips  para recolocar em pauta uma antiga reivindicação do movimento indígena do Vale: o fortalecimento das instituições do Estado na região onde vive a maior população de indígenas isolados ou de recente contato no planeta. 

Na entrevista, Eliesio relembrou as buscas nos rios do Vale do Javari, criticou o comunicado da Polícia Federal que afirmou que os executores de Bruno e Dom agiram sozinhos e não tinham relação com organizações criminosas antes mesmo da conclusão das investigações e cobrou a presença do Estado inclusive nas comunidades ribeirinhas onde vivem os principais suspeitos do duplo homicídio.

 

Como você soube do desaparecimento de Bruno e Dom? 

Eu estava em Benjamin Constant (AM). Tinha ido a Benjamin para almoçar lá. Logo de manhã cedo já tinham reportado o desaparecimento deles, do Bruno e do Dom. Por volta das 9h, 10h isso aconteceu [em 5 de junho]. O Orlando [Possuelo, indigenista membro da Univaja] falou que eles tinham desaparecido. E eu disse inicialmente: ‘olha, vamos ver, porque a gente não pode disparar o protocolo de segurança se isso não for verdade. Dá duas horas de carência, que é o tempo que vocês verificam se é isso ou não’. Deu às duas horas, eles não apareceram, não conseguiram contato. Aí saiu a primeira embarcação com o Orlando e não encontraram. Quando o Orlando chegou em Atalaia, ele me ligou. A gente ficou preocupado e acionamos o protocolo de segurança que era ir com os seguranças atrás deles. E eu já acionei o Batalhão da PM e o comandante destacou imediatamente três policiais. Eu fretei uma lancha daqui de Tabatinga que levou os policiais, a gente encontrou em Benjamin e seguiu. A gente fez o caminho de volta que eles iriam fazer. Também não encontramos nada. Voltamos por volta das dez da noite e começamos a imaginar o pior. 

Segunda-feira de manhã [6 de junho] nós acordamos cedo, entramos em contato com a procuradora Aline [Morais Martinez, procuradora da República em Tabatinga (AM)]. Ela disse que já estava sabendo, que o Orlando tinha entrado em contato. Ela disse que já tinha ligado para a Marinha. Falei com a Marinha, a Polícia Federal e o Exército. E na terça-feira [7 de junho] a gente foi pra Atalaia e instalamos a sala de situação para controlar tudo de lá. Inicialmente, as autoridades não deram muita trela pra situação e a gente passou a pressionar os chefes deles pra que eles fizessem alguma coisa. Na terça-feira à noite [7 de junho], nós entramos na Justiça em uma Ação Civil Pública que tramita em Manaus obrigando o Estado brasileiro a se fazer presente e começar as buscas. Saiu a decisão na quarta [8 de junho]. Na quarta pela manhã, não tínhamos ainda nada, apesar da decisão vigente. Nós começamos a dar publicidade para essa decisão da Justiça Federal. Aí foi quando começou a aparecer o Exército, as Forças Armadas e cada qual tava fazendo um trabalho ainda conforme o seu entendimento, não era uma busca ordenada. Enquanto isso, nossa equipe a partir de segunda-feira [6 de junho] passou a fazer acampamento no local de busca onde a gente tinha conversado com as pessoas locais e eles tinham indicado que a partir de determinado ponto eles tinham sido avistados pela última vez e a gente começou a busca a partir desses locais. Esse acampamento passou a funcionar full-time lá. Na quarta-feira [8 de junho], o comandante do 8º Batalhão da PM destacou uma equipe de cinco policiais e ficaram junto da nossa equipe desde então. Na quinta-feira [9 de junho], apareceu os helicópteros. E as buscas continuaram até a gente localizar os corpos do Bruno e do Dom. No domingo [12 de junho], os Matis encontraram os pertences pessoais do Dom.  Aí teve a prisão do Pelado, do irmão…

Como foi esse primeiro momento em que só vocês estavam realizando as buscas? Como foi lidar com a inoperância dos órgãos do Estado?

Foi bem estranho. O Exército, por exemplo, disse que ia fazer busca na cidade de Atalaia do Norte e na estrada de Atalaia do Norte, um local totalmente inadequado. A Marinha ficava no rio andando pra cima e pra baixo, não entrava nos ‘furos’, nas partes alagadas. A Polícia Federal passou a entrevistar pessoas de forma indiscriminada e de forma não programada, a gente inclusive reportou isso pra imprensa. Em nenhum momento, as autoridades se juntaram conosco para fazer buscas na região. Isso aconteceu nos últimos dias. Acredito que a partir da sexta-feira ou do sábado. Foi quando acharam as mochilas que eles passaram a ir pros locais de busca, mas eles faziam outras buscas diferentes das que estávamos fazendo.

Por que você acha que houve esse distanciamento dos indígenas nas buscas?

Acredito, mas isso é suposição minha, que eles colheram informações e acharam que era outro local. Passaram a buscar em outros lugares. Eles em nenhum momento trocaram informações conosco. Sabiam das informações que estávamos passando ao delegado natural [Alex Perez, delegado da Polícia Civil de Atalaia do Norte], mas somente isso. Eles não conversavam entre eles. A Univaja inclusive patrocinou uma conversa entre a Polícia Civil, o Ministério Público Estadual e os policiais federais para que eles conversassem entre si, se juntassem através do trabalho deles de inteligência e tudo mais. Foi a partir daí que eles passaram a conversar mais e trocar informações. 

Você disse, na saída do encontro com o PGR Vladimir Aras, que a Univaja enviou inúmeras denúncias a diversas instituições reportando situações de invasões do território indígena e atuação do crime organizado no Vale do Javari. Quais foram as respostas das autoridades?

Nós enviamos documentos ao Ministério Público e à Polícia Federal a partir de diversas reuniões que nós tivemos com ambos. Mas nós não tivemos respostas sobre quais inquéritos foram abertos, a partir de quais denúncias. Sei que nós informamos a eles o que a gente estava fazendo. Até porque a gente sentia uma certa tendência por parte da Funai de tentar criminalizar as funções da Univaja e por essa razão nós abrimos o diálogo com o Ministério Público para que ele acompanhasse enquanto fiscal da lei todas as nossas ações para que não houvesse esse tipo de ação. Nós já tínhamos esse histórico dentro do movimento indígena, como aconteceu com os Guardiões lá no Pará e no Maranhão. Houve uma tentativa de criminalizar as ações deles e nós não queríamos isso, nós abrimos o diálogo com a Polícia Federal e com o Ministério Público para que eles acompanhassem o resultado do nosso trabalho, que consistia em levantar as informações que nós levantávamos para que eles fizessem o trabalho de polícia.   

Desde quando vocês começaram a enviar os ofícios ao MPF e à Polícia Federal?

A partir da instalação da EVU [Equipe de Vigilância da Univaja], que foi instalada a partir do dia 20 de novembro de 2021. A partir daí, a gente passou a dar essas informações detalhadas com qualificação, identificação de pessoas, mapas, lugares, locais onde havia maior concentração. No mapa, nós identificamos 60 pontos de invasão, pontos sensíveis à entrada de invasores [no território da Terra Indígena Vale do Javari]. Informamos quem eram as pessoas, os acusados [do assassinato de Bruno e Dom] estavam entre essas pessoas. Foram informações detalhadas desde essa época até o desaparecimento do Bruno e do Dom. Antes da EVU nós já enviávamos informações, mas a resposta das autoridades era que não havia uma qualificação das denúncias. Foi por essa razão que nós instalamos a EVU, para qualificar as informações e dar com maior precisão e clareza essas informações.

E o que a Funai alegava para se contrapor a esse trabalho da EVU?

A Funai alegava que nós não tínhamos competência para fazer fiscalização. Mas o tempo inteiro a gente se contrapunha com a Funai dizendo que a gente não fazia fiscalização, mas monitoramento. E o monitoramento já é feito pelas próprias comunidades a partir de uma série de entendimentos a partir da Constituição e de mecanismos internacionais que o Brasil é signatário. Então o monitoramento da terra indígena por parte das comunidades indígenas é feito a partir desse entendimento e a própria Funai reconhece isso, ela tem um manual que detalha e conceitua o que é fiscalização e o que é monitoramento. E a gente faz monitoramento desde então. Eles sempre confundiram essas atividades. Inclusive na parte de apreensões de ilícitos dentro da terra indígena. A EVU nunca fez nenhum tipo de apreensão. O que acontece é que algumas comunidades já revoltadas com a inoperância da Funai, alguns indígenas e comunidades resolveram, diante de alguns ilícitos, atuar por conta própria. Mas isso não tem nada a ver com o trabalho da EVU ou da Univaja. A gente sempre pautou nossas ações a partir do levantamento e qualificação de informações para colocar à disposição da Justiça.

Qual balanço você faz das investigações do assassinato de Bruno e Dom até agora?

Nós temos como entendimento não comentar sobre o inquérito policial. Entendemos que é um trabalho da polícia fazer esse trabalho de investigação. Agora, nós não concordamos com determinadas afirmações das autoridades. Por exemplo, como eles chegaram nos suspeitos, como realizaram determinadas prisões, como eles têm entendido que a conclusão do inquérito tem sido a partir de informações que eles têm levantado. A gente acredita que é possível e que tem elementos a partir das denúncias que eu já mencionei, que há elementos para indicar a existência de uma quadrilha na região que atua exatamente com ilícitos ambientais para auferir lucros. E lucros muito altos. A gente está falando de milhões de reais. E naturalmente que o trabalho da EVU foi confundido com a presença do Estado e o Bruno, que não tinha nada a ver e não era a pessoa mais importante da EVU, foi confundido e foi pensado que era ele quem comandava, quando não era nada disso. Pode ser, e aqui novamente é suposição, que tenham cometido esse crime contra ele achando que ele era uma pessoa importante na EVU, mas ele era apenas um consultor na Univaja.

Você poderia explicar para um público leigo e sem contato com a região como funciona esse esquema de pesca ilegal? Quão lucrativo é esse negócio?

É um negócio altamente lucrativo. Essas pessoas que aparentemente são simples, na verdade, são parte de uma estrutura, de uma organização criminosa que se utiliza delas para fazer a pesca e a caça ilegal dentro da terra indígena.

O financiamento dessas ações é extremamente caro. A título de informação, a logística de uma viagem de Tabatinga ou de Atalaia para a terra indígena pode custar a partir de 250 mil reais e o lucro dessa atividade ilegal pode gerar a partir de 500 mil reais. Pra que essa estrutura chegue dentro da terra indígena são necessários muitos barcos, muita gasolina, uma grande quantidade de gelo, toneladas, e isso passa por algum lugar. É uma estrutura muito grandiosa e eles são a parte final dessa estrutura que faz esse tipo de atividade, inclusive para exportação, o que é público e notório. A exportação desse pescado, o excedente que não é utilizado internamente, vai para o Peru, para Colômbia. Gera muito dinheiro. É possível que uma expedição dessas gere mais de um milhão de reais. Se esse pescado é vendido na Colômbia, por exemplo, ele é vendido em pesos colombianos, uma moeda mais valorizada que o real, quando vai se auferir o lucro para as organizações criminosas esse valor tende a aumentar bastante. São muitas pessoas que fazem isso. Os ribeirinhos são uma parte.

Você achou precipitada a declaração da Polícia Federal de que não houve mandantes do assassinato de Bruno e Dom?

A própria polícia reconheceu que essa foi uma declaração prematura. Qualquer pessoa e qualquer leigo que acompanhou a conjuntura e o desenrolar do desaparecimento do Dom e do Bruno pode fazer essa afirmação de que não poderia ter sido concluído a partir da prisão de apenas duas pessoas. Porque como eu disse, tem muitas outras pessoas envolvidas, essa cadeia não foi desmontada. Com a prisão dos dois, caso a Polícia Federal e a Polícia Civil concluam esse inquérito só com a prisão dos dois eles estão deixando que toda uma organização criminosa atue na região e certamente outros Dons e outros Brunos ainda pela frente.

Talvez a polícia entenda que no caso específico não haja mandantes, que tenha sido um ato de ímpeto dos suspeitos, mas que possa existir uma organização criminosa com a qual essas pessoas se relacionem. Como você avalia essa hipótese de investigação?

É um raciocínio muito simples e muito lógico. A partir dessa conjuntura de informações, esse escopo probatório que nós estamos fornecendo para o Ministério Público e para a Polícia Federal a partir de 2021 até o último dia em que se confirmou o assassinato do Bruno e do Dom, essas informações dão conta que não apenas os acusados, mas também outras pessoas se beneficiam desse sistema ilegal. Naturalmente que os acusados foram mandados, enviados para fazer isso através de alguém que tem um interesse muito maior na manutenção de uma atividade muito maior. Naturalmente que é possível que exista um mandante, outras pessoas.

Passado esse momento de investigação e das buscas, entramos agora numa fase em que vocês estão fazendo uma série de demandas não só para que se evitem novas tragédias como essa e que se garanta o território das populações indígenas do Vale do Javari. Qual é o resumo das reivindicações de vocês?

O movimento indígena no Vale do Javari tem sido pautado pelo diálogo com as instituições e com o Estado brasileiro. A história do movimento indígena na região indica isso e a literatura corrobora com esse entendimento. A partir disso, nós estamos abrindo diálogo com as autoridades para que a gente possa fortalecer as instituições na região. Esse fortalecimento perpassa inclusive pela reformulação de algumas ações da própria Funai, do Ministério Público e das forças policiais. O diálogo que a gente está abrindo agora com o Parlamento brasileiro, com o Poder Judiciário e com o Poder Executivo é exatamente usando esse pressuposto que a gente já utiliza há algum tempo, que é o diálogo com essas instituições para fazer com que essas instituições participem da vida regional, uma vez que, como eu já mencionei inúmeras vezes nas muitas entrevistas que dei, o Estado é ausente na região. Ele é ausente justamente pela ineficiência das instituições. Quando a gente vai conversar com os três poderes para que eles façam o fortalecimento das instituições é exatamente isso. É para que a gente possa conversar, por exemplo, com o Poder Legislativo e fazer por exemplo um destaque orçamentário ou fazer um remanejamento de despesa repassando dinheiro para Funai, porque esse é um grande gargalo: a falta de atuação da Funai. Quando a gente vai dialogar com o Poder Judiciário, é justamente fazer com que as investigações não sejam paralisadas a partir de um delegado que está aqui na região e não quer oferecer os serviços que ele deveria fazer. Com o Poder Executivo, nós queremos fazer um diálogo para que ele realinhe o entendimento dele, se afaste um pouco do entendimento ideológico e passe a fazer com que os órgãos atuem de acordo com sua função precípua, sua teleologia, sua finalidade dentro do Estado brasileiro. A gente precisa que a Funai atue, que o Exército faça a segurança e garanta a soberania nacional, que a Polícia Federal realize as investigações da forma que determina o Código de Processo Penal, a gente precisa que o Estado esteja presente na região. Esse diálogo que a gente está abrindo agora com os três poderes é para pedir exatamente isso. São questões que a gente já tem conhecimento, como é o caso da própria Funai. A inoperância da Funai passa por falta de servidores, falta de orçamento. Quem vai fazer isso [o fortalecimento da Funai], é o poder Legislativo que vai indicar orçamento, o poder Executivo que vai indicar a abertura de concurso e o remanejamento de servidores, por exemplo.

Vocês pensam em medidas que também tragam esses ribeirinhos que moram nas comunidades vizinhas à TI Vale do Javari para a legalidade?

A história do movimento indígena na região do Vale do Javari é marcada pelo diálogo não só com as instituições do Estado, mas também com os nossos vizinhos, os ribeirinhos. No passado, nós organizamos os ribeirinhos, ajudamos a criar uma organização representativa deles e fazer o diálogo com o poder público local, para que fossem criadas políticas públicas que direcionassem o interesse dessa população. Em decorrência disso, com o passar do tempo, foi criada uma área de manejo para que eles fizessem o manejo de pescado e daquilo que eles necessitam para sobreviver e gerar renda na região. Acontece que houve uma politização desse processo, esse plano de manejo foi esvaziado por uma política local de Atalaia do Norte e eles acabaram perdendo a concessão desse plano de manejo. A Univaja, na iminência de que eles perdessem o manejo de pescado na região, a gente passou a abrir diálogo com eles para tentar incentivá-los a retomar essa atividade e auxiliá-los nos diálogos com as instituições para que esse plano fosse retomado. Na medida que eles tenham um plano de manejo vigente, com o auxílio de técnicos específicos, por exemplo, eles deixam de invadir a terra indígena, de criar ilícitos. Quando eu digo que a gente quer abrir diálogo, é exatamente isso: para que a gente possa incluir não só a questão indígena, mas do ribeirinho também. Aquele ribeirinho que não é faccionado [que não pertence a organizações criminosas], que quer fazer produção sustentável, ele pode fazer isso a partir de um plano de manejo e de uma política pública, mas é necessário que as instituições estejam alinhadas para que eles possam gozar dessa política pública que atenda o interesse deles. 

Vocês já têm uma pauta específica de reivindicações fechada para as reuniões em Brasília?

Nós queremos fazer a indicação de alguns pontos, alguns requerimentos já estão aprovados. Mas era necessário ouvir as autoridades, para que eles trouxessem também alguns pontos e para esclarecer algumas questões sobre as políticas públicas e a atuação de determinados órgãos na região. Por que determinados órgãos foram mais omissos que outros? Isso tudo precisa ser esclarecido. Precisamos apurar não só a responsabilidade daqueles que estão sendo investigados no inquérito criminal, mas também dos agentes políticos, que de alguma maneira há muita evidência de que foram omissos. 

Você acha que é necessário que se responsabilize a omissão do Estado por meio, por exemplo, de uma ação civil pública ou algum outro mecanismo?

Certamente. A intenção do processo judicial, administrativo é também didática. Ele precisa ser didático com aquele agente público que não atendeu os interesses públicos. O organograma e o comando do serviço público é exatamente o interesse público e nós teríamos que apurar por que eles não estão atendendo esse interesse, mas sim o interesse de particulares. É importante que a comissão [formada no Poder Legislativo] faça levantamento de informações para quem sabe apurar num processo judicial ou administrativo. 

Muito se fala sobre o abandono da gestão Bolsonaro em relação às pautas socioambientais. Como foi a gestão Bolsonaro aqui no Vale do Javari?

É bom que a gente frise mais uma vez que o movimento indígena do Vale do Javari sempre esteve aberto ao diálogo. Nós inclusive não nos vinculamos às questões ideológicas dos governos. No governo do PT, nós apresentamos muitas demandas e cobramos muito do governo para que ele atuasse em determinadas ações. A própria pauta da Funai foi iniciada no governo do PT, a gente não está tirando a culpa deles, não. Eles também foram nocivos à nossa região. Claro que com o governo Bolsonaro houve um esvaziamento muito maior além do que já estava acontecendo. Antes e durante o governo do PT, também já estava acontecendo esse esvaziamento. Mas na gestão Bolsonaro foi muito pior não só porque ele repetiu o que o PT já vinha fazendo, que era a omissão, como também ele incentivou grupos que exploram ilegalmente a terra, como o garimpo. É o caso, por exemplo, da manifestação do vice-presidente afirmando que os acusados que mataram Dom e Bruno estavam apenas fazendo uma atividade corriqueira deles quando não é isso. O governo quando se posiciona através de um mandatário favorável à uma atividade ilegal, ele está sinalizando que os grupos organizados que trabalham com ilícitos atuem livremente. Isso acontece não só no Vale do Javari, mas no Brasil inteiro. Nós sentimos muito mais com o governo do Bolsonaro do que com o governo do PT, mas essa pauta não vem de agora. E nós não estamos aqui para nos alinhar com quem quer que seja, com um governo de esquerda ou de direita. Nós temos uma demanda independente de quem esteja no poder do momento e nós estamos apresentando.

O que você espera dessa série de reuniões em Brasília?

A nossa pretensão a partir daqui é fortalecer esse diálogo que nós temos e abrir conversa que até então nós não tínhamos conversado. Tenho muita expectativa que nós possamos abrir diálogo, por exemplo, com o Poder Executivo para que ele nos ouça de forma institucional, ouça as demandas que nós temos a apresentar. É preciso que as instituições, e eu não estou falando de governo, é preciso que as instituições brasileiras se façam presentes na região. A expectativa é que as instituições passem a atuar conforme o conjunto normativo vigente e passem a atuar na região. Que o Ministério Público investigue e apresente as denúncias, que a Polícia Federal faça a parte do poder de polícia, que o Executivo execute uma política indigenista condizente com o ordenamento jurídico brasileiro, que o Exército brasileiro faça a proteção dos nacionais. É somente isso que a gente quer. 

Quando houve a morte do Maxciel vocês também tentaram sensibilizar as instituições e qual foi o resultado desse esforço?Eu sempre olho pra história do movimento indígena. Tanto quanto agora, no passado nós também fizemos esse diálogo. Naturalmente que não houve a repercussão que está acontecendo agora. O mesmo caminho nós fizemos naquela época, quando houve a morte do Maxciel, e vamos fazer agora com a morte do Dom e do Bruno, também quando estava ocorrendo a demarcação da terra. A nossa história fala por si. Nós sempre pautamos nossa atuação pelo diálogo. Estamos dizendo tudo que dissemos no passado.


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