29/03/2024 - Edição 540

Judiciário

Justiça pró-morte

Publicado em 14/06/2022 12:00 -

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Aline estava na fila de espera do SUS para a inserção do DIU quando descobriu que estava grávida. Fazia menos de um ano que a jovem enfrentara um adoecimento severo na primeira gestação, que culminou em um AVC no parto. Uma epopeia que a deixou paralisada por seis meses e desencadeou uma série de surtos psicóticos. Com esse histórico, uma nova gravidez era mais do que indesejada: era um grande risco à sua vida. Amparada pela lei, ela reuniu os documentos necessários e recorreu ao Judiciário de Alagoas para fazer valer um direito garantido às brasileiras desde 1940. Mas, contrariando dois laudos médicos, Ministério Público e juiz decidiram que ela tinha condições de parir.

A história da alagoana de 22 anos começou em 2020. Na madrugada de 14 de maio, aos sete meses de gestação, Aline chegou ao hospital se queixando de insônia e dor na nuca. Logo que foi atendida, começou a ter convulsões. Nada fazia a sua pressão baixar, nem mesmo o remédio. O quadro se agravou diante de outro diagnóstico: mãe e bebê haviam contraído covid-19. Durante o parto prematuro, uma cesárea, Aline foi intubada e a infecção do coronavírus provocou um AVC: um coágulo se formou, bloqueando o fornecimento de sangue para uma parte do seu cérebro.

Ela passou sete dias na UTI, outros sete na enfermaria e recebeu alta. As sequelas do AVC, no entanto, paralisaram a metade esquerda do seu corpo. Durante seis meses, o déficit motor não permitia que ela sequer pegasse sua bebê no colo ou a amamentasse. Para piorar, a criança passou semanas internada, e Aline peregrinava dia após dia rumo à maternidade. Ela entrava e saía do hospital sem que ninguém lhe oferecesse qualquer tipo de acolhimento ou apoio psicológico. No puerpério, começou a ter uma série de surtos psicóticos. André, seu companheiro, deixou o emprego como jovem aprendiz e se dedicou aos cuidados da filha e de Aline.

Ao buscar atendimento psiquiátrico, a primeira coisa que Aline ouviu era que precisava procurar um método contraceptivo com urgência, de preferência o DIU, porque não tinha condições de engravidar. O dispositivo, que é inserido por um profissional de saúde dentro do útero, não depende da ação da mulher para funcionar, o que representa uma vantagem em relação a métodos como a pílula, e dura de cinco a 10 anos, a depender do modelo escolhido.

Os remédios controlados que a jovem deveria tomar – o anticonvulsivante e ansiolítico Clonazepam e o antipsicótico Olanzapina – têm uso proibido durante a gravidez, pelo risco de malformação fetal. Fora isso, o quadro de eclâmpsia, pressão alta durante a gestação seguida de convulsões, acendia um alerta sobre o risco à vida da gestante durante um próximo parto.

A jovem entrou com dois pedidos de inserção do DIU e aguardou na fila do SUS por quase um ano. Nada aconteceu. Às vésperas do aniversário de sua filha, Aline descobriu uma segunda gravidez. Com o seu histórico, bastariam apenas dois laudos médicos atestando o risco de vida para que ela pudesse realizar o aborto de forma legal e segura pelo SUS. Bastariam, no mundo ideal.

De acordo com o artigo 128 do Código Penal, de 1940, a mulher tem direito ao aborto no Brasil em apenas duas situações: quando a gestação decorre de estupro ou quando a gravidez representa risco à vida da mulher. Mais recentemente, em 2012, a ADPF 54 permitiu o abortamento em caso de anencefalia, ou seja, quando não há desenvolvimento cerebral do feto.

No caso de risco à vida, nenhum médico poderia se recusar a realizar o procedimento. O Código de Ética Médica estabelece que o profissional tenha autonomia no exercício da profissão, não sendo obrigado a prestar serviços a quem ele não deseje, salvo na ausência de outro médico ou em casos de urgência. O texto é reiterado na norma técnica de atenção humanizada ao abortamento, publicada em 2004 pelo Ministério da Saúde. De acordo com o documento, não cabe objeção de consciência do médico em caso de aborto por risco à vida da mulher.

“Há um equívoco por parte dos profissionais de saúde de tentar dizer às pessoas que a medicina está tão moderna que não existem mais mortes durante a gravidez”, me disse Jefferson Drezett, obstetra e um dos maiores especialistas em aborto legal do país. “As mortes indiretas, por complicações da gravidez ou pelo agravamento de questões de saúde anteriores a ela, compõem algo em torno de 30% da mortalidade materna brasileira, que é toda morte durante a gravidez, parto ou puerpério”. Em países em desenvolvimento, 60% das mortes materno-fetais são causadas por síndromes hipertensivas  gestacionais, que englobam doenças como eclâmpsia, hipertensão gestacional e HELLP, uma complicação da eclâmpsia.

Direito Aline tinha, o que faltava era o acesso. A jovem decidiu não levar a gravidez adiante, mas não sabia sequer que tinha direito ao aborto legal. Chegou até a pensar em se matar, tamanho o sofrimento causado pela ausência dos remédios psiquiátricos e o medo do adoecimento físico que poderia enfrentar. Foi quando descobriu a existência do Milhas Pela Vida das Mulheres, uma associação sem fins lucrativos que oferece financiamento parcial ou total da viagem de gestantes de baixa renda ao exterior para realizarem o aborto de forma legal e segura.

“Não é necessário pedir ao estado ou ao Judiciário para exercer algo que já está na lei”, afirma Juliana Reis, idealizadora do Milhas. “Mas a realidade é a seguinte: se a mulher não chega em coma ou à beira da morte no hospital, esse excludente de ilicitude não é exercitado no Brasil hoje”.

Desde 1948, a Organização Mundial da Saúde define saúde como o estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doença. Logo, a privação de medicamentos psiquiátricos durante a gestação, que chegou a levar Aline a ter ideações suicidas, já seria um indicativo de risco à sua vida. “Pelo menos no que tange ao acesso ao aborto, o Brasil não trabalha com a definição de saúde dada pela OMS. O nosso texto legal não fala em preservar a saúde da mulher, fala apenas da iminência de morte”, comentou Reis.

Feto em primeiro lugar

Assim que chegou, o caso de Aline foi encaminhado para o núcleo jurídico do Milhas para a produção de um pedido de alvará de interrupção da gravidez. “É um caso complexo, que não se enquadra automaticamente nas condições de risco para a vida da mulher. Necessita de uma análise médica mais aprofundada. Não é porque ela teve eclâmpsia na primeira gestação que vai se repetir”, comentou Reis. “Não é uma doença específica. É o histórico médico, são as sequelas”.

O processo foi aberto em 24 de maio de 2021. Aline estava na 14ª semana da gestação. As advogadas forneceram uma infinidade de documentos à justiça: dois laudos médicos, o prontuário da internação da primeira gravidez de Aline, com informações sobre as sequelas da covid-19 e do AVC, um ultrassom e exames que comprovavam a eclâmpsia anterior.

“No laudo, as médicas falam que, em casos como o da Aline, a probabilidade de morte decorrente de eclâmpsia é muito maior. Isso é um dado da literatura médica. Fora o fato de que ela estava em surto psicótico e teve que interromper o uso dos medicamentos por conta da gravidez”, lembrou Gabriela Salvan, uma das advogadas que assistiu Aline. As pessoas em surto psicótico costumam perder o contato com a realidade, tendo alucinações ou delírios. “O que esse tempo de espera significa para uma gestante num quadro psicótico? É a intensificação de um sofrimento muito cruel”.

A equipe anexou até mesmo um relato de André, para mostrar que ele concordava com o procedimento. “É um cuidado que temos como profissional, devido à urgência da situação e por conta de um Judiciário machista”, comentou a advogada Beatriz Magrani Sampaio.

Nada disso foi suficiente para a justiça de Alagoas. “O juiz fez algo que eu nunca tinha visto: pediu um laudo do IML”, contou Salvan. “Perícias são normais. É possível que se peça, mas essa não é a prática”.

O Milhas deslocou então uma advogada para acompanhar a perícia ao lado de Aline e André. Em menos de dois minutos, Aline foi convidada pelo perito a sair da sala por não saber responder uma ou outra pergunta sobre a própria saúde. Entrou o marido em seu lugar. A maior parte da perícia, que durou cerca de 10 minutos, se deu em um interrogatório com André e a advogada. Apenas seu marido foi ouvido. Aline não pôde falar por si e nenhum exame médico foi feito. “A pressão dela não foi aferida, ninguém perguntou o que ela achava de tudo isso”, criticou Juliana Reis, do Milhas.

O laudo foi emitido em 7 de junho de 2021 e conclui que o estado de saúde de Aline era “bom e compensado, sem riscos iminentes de morte materna”. O mesmo documento afirmava que as possibilidades de sobrevivência seriam altas se a gestante recebesse um atendimento multiprofissional. Quatro dias depois, foi anexado aos autos do processo.

“A cada passo se intensificava o grau de lesão que a negligência estatal causou nessa família”, comentou Gabriela Salvan. “Aline precisou de atendimento médico do início ao fim, desde a primeira gravidez, e em nenhum momento ela teve esse atendimento”.

Em 7 de julho, o Ministério Público se manifestou contra o aborto. Reconheceu as possíveis complicações numa segunda gestação, mas defendeu um “tratamento multidisciplinar” como solução, em defesa ao “direito constitucional da vida do feto”. As agentes do Milhas não acreditavam que o juiz fosse discordar da manifestação do MP.

A morosidade da justiça se contrapunha à urgência do caso de Aline, que, sem poder prosseguir com o tratamento psiquiátrico, seguia sofrendo com surtos psicóticos. A sentença só saiu em 31 de julho, dois meses depois da abertura do processo: “ausente a comprovação de que o aborto é a única alternativa que permitirá a continuação da vida da gestante, não há como acolher o pedido de autorização de interrupção da gravidez”.

“O juiz considerou que havia ‘apenas’ uma alta probabilidade de falecimento, e não certeza de que ela iria falecer. E, segundo ele, a lei abrange os casos em que não há outra forma de salvar a vida da mulher”, relatou Salvan. A colega Beatriz Sampaio destacou o equívoco: “A lei fala de risco à vida da gestante. A lei não fala de certeza de morte. A gente seguramente pode oferecer um laudo atestando o risco, mas ninguém aqui pode prever o futuro”.

Trajetórias de morte

A associação começou, então, a preparar a viagem de Aline para a Colômbia. O país descriminalizou o aborto até a 24ª semana em 21 de fevereiro deste ano, mas desde 2006 garante o direito ao procedimento em casos de risco à saúde da mulher, incluindo à sua saúde mental – motivo pelo qual o Milhas pela Vida das Mulheres começou a ajudar brasileiras a viajarem para lá em 2019. Hoje, além da Colômbia, o projeto oferece a possibilidade de realizar o procedimento na Argentina e no México, onde o aborto passou a ser permitido em dezembro de 2020 e setembro de 2021, respectivamente. No país caribenho, Aline conseguiu, enfim, passar pelo procedimento de forma segura e voltar ao Brasil já com o DIU.

Em quase três anos de atuação do Milhas, as advogadas não se lembram de nenhum caso de risco à vida da gestante que tenham judicializado e visto terminar com uma sentença favorável à interrupção da gravidez. O primeiro caso com desfecho positivo só aconteceu em janeiro de 2022. O Milhas não precisou entrar com uma ação judicial. Em compensação, a gestante, que tinha um caso grave de diabetes mellitus, percorreu três estados para encontrar um centro de saúde que aceitasse realizar o aborto, mesmo tendo em mãos dois laudos médicos que atestavam o risco que a gravidez representava à sua vida. Os laudos se baseavam no protocolo nº 69 da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia, a Febrasgo, que estabelece a diabetes mellitus avançada como uma das doenças passíveis de justificar o aborto legal.

“A história que você me conta não é nenhuma novidade. Conheci essa mesma história com outros nomes, outros personagens, de outras maneiras. Já recebi mulheres de quase todos os estados deste país porque, em alguma medida, tiveram o procedimento negado e acabavam identificando o Pérola Byington como uma referência”, afirmou Jefferson Drezzet, que coordenou por mais de 20 anos o serviço de aborto legal do hospital paulistano.

Juliana Reis também lembra de outro caso simbólico que atendeu no Milhas. Fernanda, do interior do Tocantins, procurou o projeto em 2020 após ter sido vítima de um estupro. Ela já era mãe de quatro filhos, um deles no espectro autista. O projeto pagou a viagem dela até Palmas para tentar realizar o procedimento no serviço de aborto legal, mas pouco depois ela desistiu de interromper a gravidez. No final de 2021, Fernanda voltou a pedir ajuda do Milhas.

Quando desistiu de fazer o aborto, ela imediatamente solicitou a laqueadura tubária pelo SUS. A Constituição Federal estabelece que homens e mulheres com capacidade civil plena com mais de 25 anos ou, pelo menos, com dois filhos vivos podem realizar laqueadura ou vasectomia. Fernanda tinha 34 anos e era mãe de cinco filhos. O procedimento foi negado.

Ela passou a tomar a pílula anticoncepcional até ser diagnosticada com dois tumores no pulmão e precisar abrir mão do método durante o tratamento. “Ela aceitou entrar com ação na justiça. A gente brigou por ela, mas o tempo ia passando, então decidimos preparar a viagem para a Colômbia”, lembrou Reis.

“Eu me sinto envergonhado, como cidadão e profissional de saúde, que depois de 82 anos o estado brasileiro não tenha dado respostas adequadas e minimamente humanizadas para o aborto. Não estamos falando de uma lei de um ou dois anos, que ainda estamos correndo atrás para regulamentar ou implantar”, comentou Drezett. “Parece que essas situações são uma piada para o estado brasileiro. Ele trata como se não tivesse consequências”.

O caso de Aline não viola apenas o artigo 128 do Código Penal, mas uma série de portarias, normas e tratados internacionais. Na Conferência do Cairo, em 1994, o Brasil se comprometeu, nas circunstâncias em que o aborto não divergisse da lei, a garantir que as mulheres teriam acesso ao procedimento de forma segura.

“O estado precisa ser responsabilizado forte, dura e exemplarmente”, repreendeu Drezett. “Quando a gente nega esse procedimento, não estamos impondo só sofrimento, desrespeito, violando direitos. Estamos empurrando essa mulher para uma trajetória de morte. A mulher convencida de que não vai manter a gestação vai interrompê-la na medida que ela puder”. E a forma que ela pode nem sempre é segura.

Só no primeiro semestre de 2020, o número de mulheres atendidas pelo SUS em razão de abortos malsucedidos – tenham sido provocados ou espontâneos – foi 79 vezes maior que o de interrupções de gravidez previstas pela lei: foram 80,9 mil procedimentos inseguros contra 1.024 abortos legais.

Cerca de 250 mil mulheres acabam nos leitos do SUS a cada ano por abortos inseguros, e pelo menos uma mulher morre a cada dois dias por essa mesma causa – a maioria, de grupos vulneráveis, como negras, indígenas, de baixa renda e nordestinas. E o número pode ser muito maior do que o registrado, já que muitas mulheres não contam ao profissional de saúde que realizaram um aborto, por medo de retaliações. Com isso, o médico só registra a causa terminal, hemorrágica ou infecciosa, sem especificar o que levou ao quadro.

Desde 2019, o Milhas Pela Vida das Mulheres já recebeu mais de 6.500 pedidos de ajuda, mas não tem estrutura para atender a todos. Até o fim de maio deste ano, o direito de escolha havia sido garantido pela associação a cerca de 850 mulheres. Grande parte delas se encaixavam nos casos em que o aborto é garantido pela lei vigente. Mas, como Aline, tiveram seus direitos negados. No Brasil, apenas 1% dos abortos por razões legais é justificado por risco de morte da gestante. De acordo com a Febrasgo, esse percentual é extremamente baixo diante da prevalência de doenças crônicas sistêmicas que podem configurar risco de morte materna.

“Quando o Executivo brasileiro não movimenta um dedo para garantir o que é de direito das mulheres, ele não está sendo um governo pró-vida”, afirmou Drezett. “Ele está sendo um governo pró-morte”.


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