19/04/2024 - Edição 540

Artigo da Semana

Ser policial não é (não deveria ser) pra qualquer um

Publicado em 07/06/2022 12:00 -

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Nas últimas semanas, pelo menos dois episódios envolvendo suposta violência/abuso de autoridade policial me chamaram a atenção: um torcedor do Brasil de Pelotas que se envolveu numa briga chegou aparentemente bem no hospital, conduzido por policiais, e acabou sendo internado na UTI em estado grave após entrar numa sala reservada com os PMs (outros também detidos alegam que os militares lhes bateram e ameaçaram); em outro caso, uma cena ainda mais chocante: um indivíduo é colocado no porta-malas da viatura e lá morre sufocado com spray de pimenta. A cena foi filmada, mas não recomendo a sua assistência.

Em ambos os casos, as vítimas estavam comprovadamente cometendo ilegalidades. No primeiro, o torcedor se envolveu numa briga. No segundo, se tratava dum motociclista que trafegava sem capacete.

Um dos motivos que me afasta dos estádios é justamente a real possibilidade de me ver em meio a uma confusão generalizada, mesmo eu, um pacifista convicto. Dou um boi pra não entrar numa briga. E uma boiada pra reforçar meu argumento. O repórter esportivo Cristiano Silva, da Rádio Guaíba e ex-integrante de torcida organizada, é enfático ao defender: “não leve sua família, seus filhos aos estádios. É perigoso.” É a posição de alguém que não só gosta de futebol como o entende e mais: vive dele!

Esses brigões, que nem sei se merecem o título de torcedores, são de fato lamentáveis personagens do evento futebol, que movimenta a economia e gera empregos, além de ser mais uma opção de lazer aos trabalhadores tão massacrados com jornadas de trabalho exaustivas. Merecem os arruaceiros serem punidos por seus crimes.

Já no caso do motociclista sem o aparelho de autoproteção, o que teria motivado a ação enérgica dos policiais rodoviários federais é que ele teria resistido às ordens dos agentes. Segundo familiares, o homem sofria de problemas psiquiátricos.

Com todo respeito e pesar aos familiares da vítima da “câmara de gás”, vamos por um momento supor que o homem tenha ameaçado os policiais (embora estivesse desarmado) e que eles não tivessem como saber que o condutor tinha problemas mentais (parece que carregava a receita dos remédios controlados consigo); e no outro caso, vamos também partir do princípio de que o torcedor internado tenha puxado briga inclusive com outros que só queriam assistir à partida (talvez com seus familiares). Mesmo com essas premissas de pior dos casos, com certeza não se justifica a ação dos policiais. A valorosa Brigada Militar, a polícia militar gaúcha, que em 1961, sob o comando do então governador Leonel Brizola, se colocou ante o Palácio Piratini para garantir a democracia do nosso país, com certeza não compactua com ações desmedida e gratuitamente violentas não só com suspeitos de crimes como por eventuais condenados mesmo. Quanto à ação da Polícia Rodoviária Federal, também não se espera essa postura para conter uma pessoa exaltada. Será que dois policiais em tese bem treinados não dariam conta de conter um indivíduo sem precisar lhe jogar gás no organismo (ainda que ele não tivesse morrido acho o uso do artefato no mínimo questionável, em algumas situações)?

O senso de justiça felizmente atinge a todos. Natural que, ao nos depararmos com alguma situação de covardia, como são os crimes, queiramos “fazer justiça com as próprias mãos” ou torcer que alguém o faça. Só que, ao eventualmente fazermos isso, estaremos nós cometendo um crime. Os policiais, por sua vez e por mais paradoxal que seja, não só não podem ainda mais fazer isso, como devem eles próprios garantir a integridade também dos supostos transgressores.

Além disso, os maniqueísmos são sempre perigosos, pois tendem a observar somente um lado do evento. O que parece correto para um pode não o ser para outro. Daí a importância das leis, normas e regras de conduta para se ter o parâmetro de como agir.

E aqui faço uma provocação: os policiais designados para manter a ordem e a segurança em manifestações conseguem fazê-lo com a imparcialidade institucional que deveriam ter ao usar uma farda e um armamento fornecido e licenciado pelo estado?

Na turbulenta eleição que se afigura, terão nossos policiais a serenidade e integridade que se espera deles nas suas ações que infelizmente devem tomar nas lamentáveis ocorrências que venham a acontecer?

Ser policial, no Brasil, é um ato de coragem, honradez e que merece um reconhecimento social que muitas vezes tem por apenas uma parcela da população e não pelo ente federado mantenedor. E outra parte das pessoas, por algum ressentimento, percepção errada, trauma ou outro motivo vê na polícia uma inimiga. A discutir as suas razões para isso.

Mas, dada essas circunstâncias, conclui-se que não basta ter coragem e querer fazer o bem (seja lá o que isso for) para ser policial. É necessário uma ética talvez acima da média, pois o agente certamente se defrontará com eventos que desafiarão seu autocontrole, suas convicções equivocadas, seus preconceitos inconscientes, suas ideologias, entre outros.

Delmar Bertuol – Professor de história da rede municipal e estadual, escritor, autor de “Transbordo, Reminiscências da tua gestação, filha”


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